Interpretação literária e interpretação legal: o caso da adesão à autorregularização

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George Steiner, grande crítico literário do século XX e XXI, ao tratar da interpretação de textos literários, afirmou que decorar um poema é encontrá-lo “na metade do caminho da viagem sempre inacabada de sua vinda ao mundo”. Para ele, a leitura deve ser um processo de colaboração. Compreender um texto e ilustrá-lo em nossa imaginação é sempre recriá-lo. O crítico defende que os maiores leitores de Shakespeare e Sófocles são os que dão vida às palavras desses autores1.

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A obra literária não é exaurida após sua publicação. Seu alcance será bastante variado e dependerá da colaboração – recriação – realizada pelos leitores. Shylock existe em milhares de formas, que mudam em função da experiência e percepção dos leitores ao longo dos séculos. Para muitos, este personagem não passa de um usurário desagradável; para outros, retrata o sofrimento decorrente do preconceito e discriminação nas questões sociais e jurídicas.

Esta característica de incompletude da obra literária, sempre a reclamar a colaboração dos seus leitores, indica que a intenção do autor, apesar de relevante, não ocupa o papel principal na exegese literária. Este fato é consolidado no âmbito da crítica, que realiza a diferenciação entre a intencionalidade do autor e a intencionalidade do texto. João Alexandre Barbosa destaca que as intenções do autor às vezes ficam aquém do texto e este, frequentemente, se espanta com o que escreveu. Isto ocorre porque os “móveis da escritura, aquilo que entra na composição, não são sempre conscientes. Às vezes, trata-se de elementos inconscientes que entram nessa escritura; elementos, muitas vezes, acidentais”2.

A diferença muitas vezes dramática entre o que o texto diz e o que seu autor gostaria que ele dissesse é absolutamente compreendida no âmbito literário. É vista, inclusive, como sinal de perpetuidade de uma obra, já que somente os textos com significantes capazes de assumirem novos significados são relidos ao longo das décadas e séculos, oferecendo aos leitores novas e atuais facetas. O Mercador de Veneza, em que Shylock é apresentado como um ser detestável ou vítima, é um grande exemplo disto.

Todas as considerações acima podem ser aplicadas à interpretação jurídica. A Lei é vertida em linguagem natural e, portanto, sempre vaga e ambígua em alguma medida. Definir o que o Congresso Nacional, seu autor por excelência, quis dizer ao aprová-la é mais desafiador do que descobrir a intencionalidade do autor de uma obra literária. No último caso, é preciso debater sobre a consciência de um indivíduo, enquanto a Lei demanda investigação acerca da intenção de centenas, geralmente com noções de mundo, ideologia e cultura absolutamente diversas. Daí a importância, no Direito, de reconhecermos a intencionalidade do texto, dimensão dotada de certo grau de objetividade e verificabilidade (isto é, se seus significantes comportam, ou não, determinados significados e qual é mais adequado às soluções dos casos concretos).

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Exemplo recente e problemático é o caso da “autorregularização incentivada”, instituída pela Lei n° 14.740/2023. Por meio deste programa, os contribuintes poderão regularizar débitos tributários sem o pagamento das multas de mora e de ofício e juros, além de utilizarem precatórios e prejuízos fiscais para abater a dívida. Com relação aos débitos beneficiados, a norma estabeleceu um único requisito: precisam ser de tributos administrados pela RFB que ainda não tenham sido constituídos até a data de publicação da Lei. A Instrução Normativa RFB n° 2168/2023, que regulamentou a autorregularização, não estabelece redação contrária. Em seu art. 3°, incisos I e II, há a previsão de que podem ser incluídos no programa os tributos não constituídos até 30 de novembro de 2023 e constituídos entre 30 de novembro de 2023 até 1º de abril de 2024.

Tributo constituído é tributo lançado, conforme art. 142 do CTN. Constituição do crédito tributário nada tem a ver com vencimento do tributo. Débito vencido em dezembro de 2023, mas não declarado pelo contribuinte, ou exigido pela RFB, não está constituído. A data limite para o seu pagamento foi posterior a 30 de novembro de 2023, mas não terá existido sua constituição até esta data. O texto da Lei, se observado à luz do ordenamento jurídico em que está inserido, não permite a realização da confusão entre as figuras do vencimento e constituição do crédito. Somente a última, repita-se, está contida na redação aprovada pelo Poder Legislativo.

O vencimento como elemento limitador temporal dos débitos que podem ser incluídos na autorregularização pode, quando muito, ter povoado a intencionalidade do autor, esta região sempre mística e incerta. Adjetivos que são maximizados quando este autor é o Congresso Nacional.

Contudo, a RFB, ao elaborar perguntas e respostas3 para orientar os contribuintes na adesão à autorregularização, resolveu atribuir efeitos normativos ao misticismo e à incerteza e determinou que não poderão ser incluídos no programa os “débitos cujo vencimento original seja posterior ao dia 30 de novembro de 2023”, conforme item 3 do documento.

A RFB sustenta que a intenção criadora (autoral) da autorregularização foi permitir a negociação de débitos existentes até o momento da publicação do programa, que não seria atendida na hipótese de inclusão de débitos posteriores. Esta “intenção” é duvidosa, inacessível e, mais ainda, desprovida de correspondência mínima com a intencionalidade do texto, consubstanciada na Lei n° 14.740/2023.

Na literatura, a ausência de distinção entre o que diz a obra e o que gostaria de dizer o seu autor pode resultar numa fruição estética limitada e impedir a extração de novas e ricas versões, fundamentais para sua perpetuidade. Mas, neste caso, o prejuízo é sentido quase exclusivamente pelo leitor, punido pela sua leitura apressada e desinteressada. No âmbito legal, todavia, as consequências são piores e mais graves. Ao subjugar a intencionalidade do texto, com toda sua força literal, em benefício de uma suposta intencionalidade legislativa, desconhecida e incerta, são prejudicados os destinatários da norma, que sofrem, injustificadamente, restrições aos seus direitos.

Espera-se que o Poder Judiciário, leitor por excelência da obra jurídica, sempre em construção, possua a mesma sabedoria dos críticos literários e atribua autoridade à redação da Lei n° 14.740/2023, que estabeleceu a constituição do crédito tributário como a única limitação temporal para adesão à autorregularização.

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1 STEINER, George. Aqueles que queimam livros. Editora Âyiné. 2022.

2 BARBOSA, João Alexandre. Literatura nunca é apenas literatura. Depoimento apresentado no Seminário Linguagem e Linguagens: a fala, a escrita e a imagem. p. 24 e 25.