A partir de dezembro deste ano, os contratos dos prestadores de serviço do Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo santas casas e hospitais filantrópicos, passarão por revisões anuais. A ação está prevista na Lei 14.820, sancionada pelo presidente Lula (PT) em janeiro, que altera a Lei Orgânica da Saúde para estabelecer revisão periódica dos valores de remuneração dos serviços prestados ao SUS, “com garantia da qualidade e do equilíbrio econômico-financeiro”.
A legislação funciona como uma tentativa de não arrastar para o futuro a defasagem histórica acumulada desde 2013, ano da última revisão ampla dos valores previstos da Tabela de Procedimentos do SUS, instrumento utilizado pelo Ministério da Saúde como parâmetro de remuneração. As revisões deverão ser aplicadas sobre o valor total dos contratos.
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Apesar de considerada positiva, a nova lei é incapaz de solucionar as perdas acumuladas ao longo dos anos, conforme observa representantes do setor, assim como de resolver a urgente necessidade de atualização no modelo de financiamento. A Tabela SUS é considerada ultrapassada, tanto em previsão remuneratória quanto do olhar sobre a saúde, que segue compartimentado, enquanto deveria caminhar para a assistência integral.
Mirócle Veras, presidente da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB), aponta que os valores de repasse referenciados pela Tabela SUS não cobrem mais do que 50% do custo dos procedimentos realizados pelas cerca de 1.800 instituições que prestam serviço ao SUS atualmente. Principais afetados pela defasagem, as santas casas e hospitais filantrópicos são responsáveis por uma média de 60% dos procedimentos de alta complexidade oferecidos pelo SUS em todo o Brasil, podendo chegar a 70% quando se fala em procedimentos oncológicos (tratamentos de câncer), segundo a CMB.
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“Ela [a lei] atualiza, de acordo com a discussão, todo mês de dezembro, a defasagem inflacionária do ano. Nesse caso, vai surtir efeito para 2025. Mas existe uma defasagem muito grande, um desequilíbrio muito grande. O modelo atual é totalmente ultrapassado. Há muito tempo se discute uma nova forma de financiamento, mas o governo federal segue trabalhando com a Tabela SUS”, ressalta Veras.
No modelo atual, a contratualização para prestação de serviço é feita entre as instituições de saúde, municípios e/ou Estados. Vale destacar que o financiamento do SUS, conforme a Constituição, não é responsabilidade exclusiva do governo federal. Está submetido a uma intervenção tripartite, envolvendo a União, Estados e municípios.
Além da defasagem na cobertura do custo dos procedimentos, algumas instituições confederadas à CMB também convivem com atrasos nos repasses, o que compromete ainda mais a saúde financeira das unidades.
“O governo federal não repassa o recurso diretamente para nossas entidades. Vai para o Fundo Municipal ou Estadual de Saúde, e só depois é feito o pagamento com quem há vínculo, de acordo com o produzido. Há muitos repasses em atraso. Alguns chegam a até seis meses. O valor é repassado religiosamente pelo governo federal, mas cai em uma conta única do fundo, misturando-se aos demais recursos e, muitas vezes, a prioridade daquele município não é o pagamento das nossas instituições”, explica Veras.
“Só na Caixa Econômica Federal (CEF), as nossas instituições têm cerca de R$ 8 bilhões de endividamento, que se fez necessário para que as condições hospitalares continuassem seguindo com a sua missão de prestar serviço à sociedade. Só de juros nós pagamos R$ 150 milhões por mês”, completa.
Na tentativa de amenizar o desequilíbrio financeiro, santas casas e hospitais filantrópicos, de forma coletiva, têm buscado, ao longo dos últimos anos, outras formas de arrecadação de recursos. Uma dessas fontes é o Congresso Federal, que nos últimos anos garantiu a destinação de R$ 4 bilhões em emendas parlamentares às unidades. O Executivo federal também garantiu repasses pontuais nos últimos anos.
Para Antonio Britto, presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), a lei cria um clima de “esperança” entre as gestões dos hospitais, inclusive os particulares que prestam serviço ao SUS Brasil afora, mas é “uma ilusão acreditar que haverá correção de um passivo histórico de tantos anos”. Entre os grandes hospitais associados à Anahp que possuem contratualização para prestação de serviço, 42 unidades também realizam atendimentos filantrópicos.
“O setor vive dificuldades tão grandes que, se houver uma correção anual, isso já vai ser extremamente positivo. A defasagem aumenta ano a ano. Se pelo menos não aumentar mais, e daqui para a frente houver a correção, resolve um dos problemas”, avalia Britto.
A definição dos critérios a serem aplicados na revisão anual depende ainda da regulamentação da Lei 14.820, que aguarda a criação de uma Portaria no âmbito federal. A previsão é de que o grupo de discussão seja formado por representações do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass); do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems); do Ministério da Saúde e da própria CMB.
Ao JOTA, o Ministério da Saúde informou que a pasta “cumprirá estritamente a nova lei”, e que também “está realizando um estudo para subsidiar a implementação de um novo modelo de financiamento para a Atenção Ambulatorial Especializada à Saúde, com o objetivo de promover o cuidado integral, com foco na pessoa”.
Disse ainda que “a Tabela passa por atualizações mensais para incorporação de novos itens e alterações de atributos, que podem envolver reajustes de valores” e que “realiza, anualmente, as adequações nos valores dos procedimentos, de acordo com prioridades estabelecidas por estudos técnicos que avaliam o impacto nos serviços de saúde”. As adequações, no entanto, conforme apontam os prestadores, não conseguem acompanhar o custo real dos procedimentos, e ainda menos os custos com medicações, pagamento de equipes médicas, incorporação de novas tecnologias, entre outras necessidades.
Modelo ultrapasso diante das necessidades atuais
Adriano Massuda, médico sanitarista, professor e pesquisador em Saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV), além de secretário de Atenção Especializada do Ministério da Saúde desde março deste ano (sua nomeação ocorreu depois da entrevista ao JOTA para esta reportagem), explica que o pagamento por procedimentos, como prevê a Tabela, é resquício do modelo de gestão da saúde pública anterior à criação do próprio SUS. Antes de 1988, a saúde pública atendia exclusivamente os cidadãos que contribuíram para a Previdência Social, por isso a necessidade de estimar a remuneração por procedimentos que se aplicasse às mais diferentes regiões brasileiras.
À época, a oferta de saúde pública era centralizada e responsabilidade única do governo federal, baseada exclusivamente na assistência médico-hospitalar e em uma visão simplória da saúde, considerada basicamente a ausência de doença.
A partir da criação do Sistema Único de Saúde, no entanto, é instituído um serviço que se pretende universal, de responsabilidade descentralizada e participativa, cuja saúde compreende ações de promoção e prevenção, proteção, recuperação e reabilitação. A saúde passa a ser integral, sinônimo de qualidade de vida.
Para o especialista, a superação do pagamento por procedimento está na “criação de pacotes de cuidado, para que se busque remunerar o serviço de maneira a cuidar da atenção integral ao paciente, e não só a realização de uma cirurgia ou de um exame, de maneira pontual”.
“Uma revisão anual [dos valores] é algo a ser comemorado, porque isso força que o sistema de saúde seja melhor financiado”, pondera Massuda. A decisão, no entanto, segundo o pesquisador, cria outra necessidade, que é a também revisão anual do orçamento do SUS. “Se você tiver um recurso igual para uma remuneração cada vez maior, pode levar a uma limitação da produção assistencial”.
Ele alerta ainda que os reajustes precisam vir acompanhados de medidas para fortalecer a qualidade do cuidado prestado, a exemplo do estímulo para a ampliação da oferta em áreas em que exista demanda reprimida.