Em 18 de maio de 2023, um dia após o Dia Internacional de Combate à Homofobia, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), com a participação do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aprovou a adoção de procedimento simplificado para análise de pedidos de refúgio de pessoas LGBTQIAPN+.
O procedimento comum para o reconhecimento do status de refugiado no Brasil é regulado pela Lei 9.474/1997, a qual também estabeleceu o Conare como órgão responsável por operacionalizar o instituto do refúgio no país. Conforme a Resolução Normativa 29/2019, o órgão está autorizado a estabelecer procedimentos acelerados ou simplificados, bem como decidir pela dispensa da entrevista.
O procedimento simplificado no reconhecimento de refugiados não é, portanto, novidade. Foi adotado, por exemplo, em 2018, quando após o reconhecimento da crise humanitária na Venezuela, o Ministério da Justiça e o Conare, mediante a publicação da Nota Técnica Conjunta 12/2019, estabeleceram procedimento específico simplificado para o acolhimento de refugiados venezuelanos. Essa decisão foi tomada em conformidade com o inciso III do artigo 1º da Lei 9.474/1997, que considera como refugiada aquela pessoa que “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigada a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”.
Conforme os dados do Relatório Refúgio em Números 2023 editado pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), entre 2011 e 2022 a maioria dos casos de reconhecimento do status de refugiado no Brasil é de venezuelanos. Esses dados confirmam o acerto da adoção de procedimento simplificado para garantir o princípio humanitário de proteção integral de pessoas submetidas a contextos de grave e generalizada violação de direitos humanos.
De acordo com o inciso I do artigo 1º da Lei 9.474/1997, uma pessoa será também reconhecida como refugiada em virtude de “fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”. O Brasil, alinhado às diretrizes da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) reconhece as pessoas LGBTQIAPN+ como “membros de um grupo social específico” e, por consequência, podendo ser qualificadas como refugiadas devido a “fundado temor de perseguição com base na percepção social da orientação sexual ou identidade de gênero”.
Entre 2010 e 2018 foram 369 solicitações de refúgio no Brasil por motivo de temor de perseguição com base em questões relacionadas à orientação sexual e/ou identidade de gênero. A maior parte das solicitações era proveniente de países do continente africano, a saber, Nigéria, Gana e Camarões. No entanto, estima-se que o número de pessoas refugiadas LGBTQIAPN+ no Brasil seja maior, dado que a maioria das pessoas não revela sua orientação sexual e/ou identidade de gênero durante o processo de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado. Ao lado disso, cumpre destacar que, em 34,4% do total das solicitações analisadas pelo Conare em 2022, as pessoas solicitantes de refúgio registraram a opção de sexo “não especificado”. São dados que confirmam a necessidade de novos estudos e pesquisas em relação às solicitações de refúgio no Brasil baseadas na orientação sexual e/ou identidade de gênero.
A decisão do Conare de aprovar procedimento simplificado para o acolhimento pessoas LGBTQIAPN+ insere-se num contexto global em que direitos e liberdades fundamentais dos membros deste grupo social vêm sofrendo violações significativas. Conforme o Relatório 2020 sobre “Homofobia de Estado” editado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexos (ILGA), 69 países consideram ilegais atos ou relações sexuais consensuais entre pessoas adultas do mesmo gênero. A grande maioria criminaliza relações sexuais homoafetivas, com a imposição de punições que variam desde aplicação de multa, penas de prisão – inclusive, a de caráter perpétuo – até a pena de morte. Outros não criminalizam explicitamente relações sexuais consensuais entre pessoas adultas do mesmo gênero, porém consideram tais atos ilegais com base em normas contra atos de indecência grave ou prostituição, utilizadas seletivamente para atingir pessoas LGBTQIAPN+.
Um dos países que criminaliza relações sexuais homoafetivas é Uganda. Em maio de 2023, apesar das severas críticas de vários entes da sociedade internacional, o presidente Yoweri Museveni promulgou uma lei com duras penas para pessoas que mantiverem relações sexuais com outras do mesmo gênero. Segundo a lei, o envolvimento em tais atos de homossexualidade pode ser punido, inclusive, com a prisão perpétua. Além disso, o crime em questão penaliza a “homossexualidade com agravante”, ou seja, reincidentes podem ser condenados à morte.
Esse panorama configura violação ao direito internacional dos direitos humanos, notadamente o Princípio 33 dos Princípios de Yogyakarta mais 10 (PY+10), que enuncia o “direito de toda pessoa não ser sujeita à criminalização e qualquer forma de sanção que se derive direta ou indiretamente da sua orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou das suas características sexuais reais ou percebidas”.
A decisão do Conare de aprovar procedimento simplificado para o acolhimento pessoas LGBTQIAPN+ revela a atenção do governo brasileiro para este cenário internacional preocupante e suas possíveis repercussões sobre a dinâmica global de mobilidade humana. Contudo, a decisão carece ainda de nota técnica específica ou instrumento similar do MJSP juntamente com o Conare, de forma a detalhar como se dará a implementação do procedimento simplificado para o acolhimento de pessoas refugiadas LGBTQIAPN+.
Até lá vale registrar a importância da decisão, que demonstra, inclusive, a sintonia entre ministérios (Justiça e Direitos Humanos) no tema da proteção dos direitos humanos da população LGBTQIAPN+. O Brasil continua a ser o país com o maior número total de homicídios de pessoas travestis e transexuais. Que a decisão do Conare sirva para reforçar não apenas a posição de vanguarda da política migratória brasileira, mas também a urgência do fortalecimento das políticas públicas internas de proteção da população LGBTQIAPN+.