A revisão de acordos de leniência

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É lugar comum que o Poder Público tem aderido cada vez mais a formas consensuais de atuação administrativa. As imposições unilaterais de vontade pelo Estado têm dividido espaço com a dialeticidade entre as esferas pública e privada.[1]

Inobstante isso, mais recentemente, emergiram alguns questionamentos a propósito dessas formas dialógicas de atuação estatal, no sentido de investigar se elas são, de fato, horizontais em relação ao administrado ou se acobertam um caráter autoritário, imperativo, unilateral. Trata-se daquilo que chamamos em outra oportunidade de consensualidade abusiva[2], ou seja, seriam acordos bilaterais na forma, mas unilaterais na essência, considerando que o administrado se veria obrigado a aceitar disposições negociais impostas pelo Poder Público, com pouca ou nenhuma margem de negociação.

Um dos exemplos mais salientes desse fenômeno foram os questionamentos recentes direcionados a determinados acordos de leniência celebrados no bojo da Operação Lava Jato, discussão esta que foi inaugurada em alguns processos judiciais, entre eles a ADPF 1051, em trâmite perante o STF.[3][4]

Os partidos políticos autores da ação argumentam, em síntese, que: (i) a negociação entre acusadores e acusados não teria se dado de forma planificada, mas sim a partir de formas intimidatórias dos primeiros sobre os segundos; e (ii) que algumas das autoridades não tinham competência para a sua celebração à época dos fatos. Como pedidos, requerem que os referidos acordos de leniência sejam renegociados e que os futuros acordos respeitem a Constituição e as leis.[5]

No curso do processo, o relator, ministro André Mendonça, designou audiências de conciliação entre os interessados, públicos e privados, em uma tentativa de solucionar o feito pela via da autocomposição, intimando todos a participarem de uma mesa de (re)negociação dos acordos de leniência. Atualmente, ainda está em curso essa etapa conciliatória.

A partir desse cenário, é possível fazermos algumas reflexões em cima dos dilemas colocados em debate.

A primeira é que a proposta sugerida pelo relator, de solucionar o problema pela via dialógica, pode ser um bom rumo para as coisas. No lugar de o Judiciário anular ou rever acordos ele próprio, é desejável que se abra um caminho de diálogo entre as partes para discutir sobre possíveis alterações nos termos avençados. Só que dessa vez sob a chancela judicial, em uma negociação – agora sim – horizontal e livre de eventuais arbitrariedades. Em um aforisma: a consensualidade pode resolver os problemas da consensualidade.

Em segundo, curiosamente, até o momento, as discussões em sede de audiência não adentraram tanto no questionamento a propósito de se houve mesmo consensualidade abusiva ou não, mas caminharam no sentido de entender que os pagamentos previstos nos acordos estavam se tornando excessivamente onerosos para os particulares, em virtude das sucessivas crises econômicas sofridas pelo país, o que legitimaria a sua revisão, à luz dos arts. 26 §1º inciso I da LINDB e 54 do Decreto 11.129/2022.

A terceira consiste no fato de que uma das propostas em debate é a possibilidade de que os valores devidos pelas empresas sejam quitados mediante prestação de serviços para a reconstrução das cidades afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, conquanto vençam licitações para realizar essas atividades.

A revisão das obrigações pactuadas pode ser uma alternativa adequada para o dilema. Seria razoável, inclusive, que a contratação fosse direta, por dispensa de licitação, uma vez que se trata de situação emergencial (art. 75 inciso VIII da Lei 14.133/2021). Converter o pagamento em investimentos permite que o Poder Público aproveite a expertise técnica das empresas, além de seus recursos materiais.

Essa conversão não é, de tudo, desconhecida no Direito Administrativo Sancionador. É comum, por exemplo, que em determinados setores regulados exista a possibilidade de as concessionárias de serviços públicos substituírem sanções aplicadas por agências reguladoras em investimentos nas concessões, mediante acordos substitutivos.

Mas a situação atual inova em alguma medida em relação a isso, pois que: (i) decorre de uma revisão de acordo, e não da celebração de um acordo novo; e (ii) implica em investimentos em um outro setor, isto é, não se trata de realizar novas obras em uma infraestrutura previamente concedida a um particular, mas sim de permitir que se invista em uma obra independentemente de estar vinculada a uma concessão anterior.

Enfim, a alteração de obrigações nesses moldes pode representar um precedente relevante tanto para os casos de acordos que já nascem viciados, em razão de posturas desproporcionais adotadas pelo Poder Público – rectius: consensualidade abusiva – quanto para aqueles nos quais as obrigações pactuadas se tornam excessivamente onerosas com o passar do tempo, podendo servir de exemplo para situações futuras nesse sentido. E ainda: inaugura um novo capítulo nas discussões sobre consensualidade, eis que o debate se desloca para a realização de investimentos, mediante acordos, ainda que desvinculados de contratos anteriormente celebrados.

[1] CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Trad. Marçal Justen Filho, Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 163 e ss.

[2]CYRINO, André; ROGOGINSKY, Felipe Salathé. Consensualidade Abusiva
no Direito Administrativo. REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 10, p. 634-660, 2024.

[3] STF, ADPF 1051, Plenário, Relator: Min. André Mendonça.

[4] Além dele, cite-se o seguinte processo: STF, Pet. 12.357, Rel. Min. Dias Toffoli.

[5] Há outras questões incidentais na exordial, mas esses são os pontos fundamentais para a presente análise.