Esculpida no artigo 7º, XVIII, da Constituição Federal de 1988, com status de direito fundamental, a licença-maternidade é tema que ocupa posição de destaque nos debates acerca da gramática de direitos das mulheres inseridas no mercado de trabalho. Em síntese, o texto constitucional confere a toda mulher, após dar à luz, um período de cento e vinte dias de afastamento das atividades laborais para estar junto a sua prole, sem prejuízo do seu emprego ou do recebimento de salário.
Na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a licença-maternidade encontra-se regulamentada na Seção V (Da proteção à maternidade), especialmente nos artigos 392 e 392-A. Já no âmbito do serviço público, o tema é tratado de maneira geral pelos artigos 207 a 210 da Lei 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais), e reproduzido de forma similar pelos demais entes da federação
A interpretação do direito à licença maternidade deve ser sempre permeada por uma dupla perspectiva: a de gênero e a de convivência, uma vez que a sua concretização acaba por salvaguardar não apenas os interesses da genitora, mas também do recém-nascido. A partir deste ponto de partida, o Supremo Tribunal Federal vem, há mais de três décadas, desenvolvendo a sua jurisprudência a respeito do tema; e enfrentando situações, por vezes, específicas e inimagináveis pelo Poder Constituinte Originário quando da edição do artigo 7º, XVIII da CRFB88.
O último texto deste ano na coluna Direito dos Grupos Vulneráveis aprofundará algumas destas situações, a fim de que o tema, dada a sua importância, seja cada vez mais difundido aos quatro cantos do nosso país.
1) Abrangência do direito à licença-maternidade
São titulares do direito fundamental à licença-maternidade todas as mulheres inseridas no mercado de trabalho e que venham a dar à luz. A Constituição Federal de 1988 não realizou distinção alguma entre servidoras públicas e mulheres que exercem suas atividades laborais no mercado da iniciativa privada. O texto constitucional exige, portanto, uma única condição para a fruição do direito à licença-maternidade: tornar-se mãe. O Supremo Tribunal Federal já analisou, inclusive, algumas controvérsias a respeito da titularidade do direito em comento.
A primeira dizia respeito às mulheres que se tornaram mãe pela via da adoção. Mulheres que adotam crianças fazem jus à licença-maternidade nos mesmos termos das mães biológicas? Em que pese a resposta pareça-nos óbvia, a Corte Constitucional brasileira, ao analisar o Tema 782, reconheceu que mulheres que se tornam mães de crianças pela via da adoção fazem jus a licença-maternidade exatamente nos mesmos termos das mães biológicas, não sendo possível qualquer tratamento diferenciado entre as situações.[1]
Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal fixou tese pela impossibilidade dos prazos da licença adotante serem inferiores ao da licença gestante e, ainda, pela inviabilidade de adoção de prazos distintos a depender da idade da criança adotada. Além disso, a Constituição Federal de 1988 é clara ao proibir em seu artigo 227, §6º, o tratamento diferenciado entre filhos biológicos e filhos adotivos. Logo, a interpretação dada pela Corte observou o duplo viés mencionado na introdução deste texto e de observância obrigatória – na opinião deste autor – em assuntos relativos ao tema: a perspectiva de gênero e a perspectiva de convivência.
Passados cinco anos do julgamento, a Corte foi novamente provocada a se manifestar sobre o tema, desta vez em um recorte específico: mães gestantes/adotantes e integrantes das Forças Armadas. Valendo-se dos mesmos fundamentos constitucionais já expostos no Tema 782, a Corte refutou qualquer possibilidade de distinção em razão da via pela qual fora consumada a maternidade, se biológica ou socioafetiva.[2]
Em uma terceira ocasião, mais precisamente em outubro deste ano, o Supremo Tribunal Federal analisou a titularidade da licença-maternidade à luz da natureza jurídica do vínculo da mulher com a administração pública. Questionava-se sobre a possibilidade de gestantes contratadas pelo Estado por tempo determinado, ou ocupantes de cargo em comissão demissível ad nutum fazerem jus à estabilidade provisória e ao período de afastamento remunerado por cento e vinte dias.
Novamente à luz do duplo valor a ser protegido: a proteção integral da criança e da maternidade, o Supremo manteve a linha de raciocínio outrora desenvolvida em sua jurisprudência, fixando reconhecendo o direito ao gozo de licença-maternidade e à estabilidade provisória a todas as trabalhadoras gestantes independentemente do regime jurídico aplicável, se contratual ou administrativo, ainda que ocupe cargo em comissão demissível ad nutum ou seja contratada por tempo determinado.[3]
2) Licença-maternidade e cômputo de tempo para fins de estabilidade ou vitaliciamento
O tema “servidores públicos” está situado entre aqueles que compõem o âmago do Direito Administrativo e já foi objeto de deliberação pelo Supremo Tribunal Federal à luz do direito à licença-maternidade. Em março de 2021, o Tribunal foi instado a deliberar acerca da seguinte questão: é constitucional o cômputo do período de licença à gestante para fins de estágio probatório de servidor público?
Sustentava o governador de São Paulo (autor da ação) a inconstitucionalidade do diploma bandeirante impugnado – que admitia o cômputo do período de licença à gestante para fins de estágio probatório – sob o argumento de transgressão ao disposto no artigo 41 da Constituição Federal de 1988 (“São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público”). Para a unidade federada, o tempo de afastamento de determinada servidora pública após ter dado à luz não poderia ser caracterizado como “efetivo exercício” para fins de estabilidade.
Ao examinar a controvérsia, o Supremo Tribunal Federal elencou uma série de argumentos, todos permeados pela perspectiva de gênero, aqui resumidos de forma sintética: a) A expressão “efetivo exercício” prevista no art. 41 da Constituição da República não veda a contagem do período de licença à gestante para fins de estágio probatório, competindo ao legislador infraconstitucional a definição das hipóteses consideradas como efetivo exercício; b) a licença à gestante é direito fundamental relacionado à dignidade da mulher; c) A inclusão do período de licença-maternidade no curso de estágio probatório não pode ser interpretada fora do núcleo de direitos fundamentais. Por ele se assegura o direito fundamental da licença à gestante e o direito de conquistar, no período, direitos trabalhistas, até mesmo para os servidores, dotando os direitos constitucionais de máxima efetividade; e d) o disposto no art. 41 da Constituição da República, pelo qual se estabelece que a obtenção da estabilidade ocorre após três anos de efetivo exercício, deve ser interpretado em consonância com os princípios constitucionais da igualdade de gênero, proteção à maternidade, dignidade da mulher e planejamento familiar.
Com isso, o Supremo Tribunal Federal cristalizou acertadamente a seguinte tese: “É constitucional o cômputo do período de licença à gestante no período do estágio probatório da servidora pública pelo imperativo da máxima efetividade dos direitos fundamentais”.[4]
Em novembro de 2023 a temática ganhou um novo capítulo, avançando, desta vez, para as carreiras do Ministério Público. O Conselho Nacional do Ministério Público aprovou por unanimidade, proposta de resolução que garante às mulheres promotoras e servidoras do Ministério Público brasileiro e do próprio CNMP, o cômputo do período de licença-maternidade para fins de estágio probatório. A proposta apresentada pela presidente do órgão, Elizeta Ramos, acrescenta o novo entendimento do órgão ao texto da Resolução CNMP nº 250/2022, ato normativo que institui condições especiais de trabalho, por tempo determinado, para membras, servidoras, estagiárias e voluntárias do parquet que se enquadrem na condição de gestantes, lactantes e mães.
O avanço promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público chega em boa hora e reflete uma preocupação constante do órgão acerca da concretização da igualdade de gênero no âmbito do Ministério Público brasileiro.
3) Termo inicial da licença-maternidade e do salário-maternidade em casos envolvendo bebês prematuros ou mães que necessitam ficar internadas em unidade hospitalar após o parto
Seria irresponsabilidade deste articulista finalizar o último texto da coluna neste ano de 2023 sem abordar um dos temas mais importantes (e recentes) em matéria de proteção de direito das mulheres no âmbito do Supremo Tribunal Federal: a fixação do dies a quo para fins de fruição da licença maternidade em casos envolvendo o nascimento de bebês prematuros ou de mães que necessitam ficar internadas em unidade hospitalar após o parto.
Controvérsia interessante e com relevante aspecto prático chegou até a jurisdição constitucional brasileira: quando se inicia o prazo de cento e vinte dias para fruição da licença maternidade em casos envolvendo o nascimento de bebês prematuros? A indagação se justifica, especialmente, pelo fato de que, geralmente, bebês prematuros permanecem internados na unidade hospitalar por um período maior e privados de contato com a própria genitora.
Nestas situações, a realidade evidenciava que, mães de bebês prematuros ou recém-nascidos filhos(as) de genitoras que precisaram permanecer internadas no hospital após o parto, acabavam por ter reduzido o período de convivência de cento e vinte dias idealizados pelo Constituinte Originário no art. 7º XVIII da Constituição Federal. Além da convivência diminuta, a situação causava, inclusive, uma disparidade no gozo da licença-maternidade se confrontada com o início do prazo de licença-maternidade das mães de bebês não prematuros ou que não precisaram ficar internadas após dar à luz.
Ao resolver a questão a partir de uma sensibilidade ímpar, os ministros do Supremo Tribunal Federal deram interpretação conforme à Constituição aos artigos 392, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho e 71 da Lei 8.213/1991, concretizando, a um só tempo, a proteção a maternidade da genitora e o direito fundamental à convivência familiar da criança, a partir da fixação da seguinte tese: “o termo inicial aplicável à fruição da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade deve ser o da alta hospitalar da mãe ou do recém-nascido, o que ocorrer por último, prorrogando-se ambos os benefícios por igual período ao da internação”[5].
O desfecho promovido pela Corte ao tema é irretocável e digno de efusivos elogios na opinião deste autor, já que concretizada a igualdade na fruição dos cento e vinte dias de convívio entre todas as mães e seus filhos recém-nascidos, independentemente de quaisquer intercorrências médicas existentes em cada caso concreto.
Espero que tenham gostado do texto e das discussões promovidas aqui na coluna neste ano de 2023.
Um feliz ano novo e até ano que vem!
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 778889. Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 10/03/2016.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6603. Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. 14/09/2022.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 842844. Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. 05/10/2023.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 5220. Rel. Min. Cármen Lúcia Tribunal Pleno, j. 15/03/2021.
[5] STF, ADI 6327, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 24/10/2022