Voto de qualidade e a possibilidade do NJP na dispensa de garantia

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Fruto de grande negociação, a Lei 14.689/23 introduziu, na estrutura do processo tributário federal, significativas alterações ao instituto conhecido como voto de qualidade, particularmente no que diz respeito aos julgamentos realizados no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Limitemo-nos, porém, à dispensa na apresentação de garantias para a discussão judicial nos casos julgados favoravelmente à Fazenda Pública por voto (de minerva)[1]. Isso porque, em que pese a referida norma a tenha autorizado, fato é que a regulamentação da matéria, até a publicação deste artigo, ainda não foi realizada pela Procuradoria da Fazenda Nacional, representando, tal omissão, em grandes empecilhos práticos a sua aplicação.

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Para sua fruição, esclarecemos, é necessário que o contribuinte: (i) comprove sua capacidade de pagamento, a qual é aferida com base no seu patrimônio líquido – vide §2º do art. 4º da citada lei; bem como (ii) possua certidão de regularidade fiscal expedida em conjunto pela RFB e PGFN por mais de três meses, sejam eles consecutivos ou não, na janela de 12 meses que antecederem o ajuizamento da respectiva medida judicial – vide §1º do art. 4º.

Ocorre que, para essa constatação – tal como prevê o §5º do mesmo art., cabe ao procurador-geral da Fazenda Nacional disciplinar os procedimentos para a comprovação da determinação do que seria essa suposta “nova” capacidade de pagamento.

Sabemos, por óbvio, que, dentre as ações passíveis de manejo pelo contribuinte, a exigência de garantia prévia acomete apenas aos embargos à execução fiscal (salvo exceções de dispensa, é claro), mas, antecipando-se ao ajuizamento da execução fiscal para manter sua regularidade fiscal, alguma garantia costuma ser apresentada para a possibilidade de emissão da certidão, ou até mesmo a atribuição dos efeitos da suspensão da exigibilidade pelo juízo (depósito judicial ou liminar) e o posterior traslado desta para o feito executivo, de modo a destacar a urgência nessa regulamentação.

É nesse limbo que sugerimos uma possível solução, ao menos provisória, para uso dos contribuintes: a possibilidade de realização de Negócio Jurídico Processual (NJP) para a dispensa de garantia nas discussões judiciais tributárias federais nos casos decididos administrativamente por voto de qualidade.

Vejamos, a previsão constante no art. 190 do CPC[2] autoriza às partes a acordarem sobre o procedimento da forma que melhor lhes atenda, desde que a matéria seja passível de autocomposição. Para essa, parece-nos já existir consenso na jurisprudência a respeito do seu manejo nas demandas tributárias[3], especialmente nessa situação, que trataria de direitos tipicamente processuais.

Reforçando o espírito do legislador, temos a previsão expressa no §4º do art. 4º da própria Lei 14.689/23 acerca da possibilidade de celebração de negócio jurídico ou qualquer outra solução consensual com a Fazenda Pública credora que verse sobre a aceitação, a avaliação, o modo de constrição e a substituição de garantias.

Por sua vez, certo amparo é encontrado na própria Portaria 742/2018 da PGFN[4] que, ao estabelecer critérios para a celebração de NJP, definiu como matérias passíveis de autocomposição, a própria aceitação e liberação de garantias – vide inciso III do §2º do art. 1º.

E, ajustados os termos do acordo com a prévia definição do tipo da dispensa de garantia (se para cada processo que se enquadre no §2º do art. 4º da Lei 14.689/23 ou mais abrangente), o NJP seria celebrado ainda na fase pré-processual, antes do ajuizamento da primeira ação que trate do tema e, após o seu protocolo, a formalização do pedido de homologação judicial – vide art. 11 da Portaria PGFN 742/2018.

Assim, não vemos grandes dificuldades quanto a execução do NJP aqui proposto caso a PGFN utilize do seu sistema da capacidade de pagamento já existente (aplicado para as transações tributárias), aproveitando-lhe das informações de situação econômica e condições de pagamento integral dos débitos ao longo do tempo levantadas.

Tal uso, em nosso sentir, poderia abrir margem para uma classificação dos acordos em dois grandes grupos, a fim de otimizar a análise do órgão, sendo: (i) um voltado para os contribuintes com ratings A e B; enquanto o outro, (ii) voltado para os contribuintes enquadrados nos demais ratings.

Para o primeiro, entendemos que não só poderia ser realizado um único acordo (com duração estendida no tempo e não por processo) como se encontraria ali dispensada a exigência dos incisos I a III do §2º do art. 4º da norma, em razão do monitoramento já realizado pelo próprio órgão para aferição da evolução patrimonial a ser considerada em eventuais transações.

Como já informado pela PGFN[5], “o órgão estima capacidade de pagamento com base na situação econômica do contribuinte. Para isso, irá verificar as informações cadastrais, patrimoniais e econômico- fiscais do contribuinte perante a Administração Tributária Federal e os demais órgãos da administração pública”.

Assim, tendo, a PGFN, já realizado a análise de solvência para adimplemento dos créditos tributários e constatado a mais alta capacidade de pagamento para essa categoria, melhor interpretação não há além da que os requisitos dispostos nos incisos I a III do §2º da Lei do Carf já estariam supridos.

Noutro giro, caso sejam adotados critérios diferenciados para aferição da aludida Capag pelo mesmo órgão vislumbramos um possível comportamento da Administração Pública que conspira contra o princípio da razoabilidade, transparência, cooperação com os contribuintes, e até mesmo o princípio da vedação ao comportamento contraditório a que está sujeita.

Já para o segundo grupo (contribuintes com rating C em diante), entendemos que o NJP a ser celebrado precisa de um pouco mais de personalização, ao estabelecer os documentos, períodos e procedimentos exigidos para a demonstração de solvência exigida para os fins pretendidos pelo artigo 4º da Lei 14.689/23, em razão da saúde financeira consolidada do contribuinte.

Por fim, precisamos destacar um outro apontamento importante quanto ao requisito de inexistência de outros créditos para com a Fazenda Pública, presentes e futuros, em situação de exigibilidade, previsto no inciso IV §2º do art. 4º: é preciso afirmar que o dispositivo não abrange novos débitos julgados com voto de qualidade pelo Carf, sob pena de tornar inaplicável a dispensa de garantias prevista pelo art. 4º.

Como também, a condição de exigibilidade dos débitos, sejam eles presentes e/ou futuros, apenas será aferida quando do término do prazo previsto pelo artigo 8º da Lei 6.830/80, ao dispor que os contribuintes terão um prazo de cinco dias, a contar de sua citação em execução fiscal, para pagar o débito ou oferecer garantia, ou, se for o caso, iniciar sua discussão no âmbito do Judiciário.

Todos esses cuidados visam evitar restrições tanto ao direito aos contribuintes em discutir o débito na esfera judicial, quanto também ao próprio uso da dispensa de garantias conquistada (ainda que indiretamente).

Vale ainda dizer: embora não instituída como uma nova hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário no art. 151 do CTN, espera-se que, ao menos, a PGFN, quando da edição da norma regulamentadora, não eleja os casos aqui tratados (cuja garantia é dispensada) como óbice a emissão da CND.

Até mesmo porque, nessa árdua jornada em promover uma efetiva mudança do paradigma comportamental entre fisco e contribuintes, sabemos que nada prosperará se não houver, minimamente, a preservação da segurança jurídica nessas relações.

[1] Art. 4º Aos contribuintes com capacidade de pagamento, fica dispensada a apresentação de garantia para a discussão judicial dos créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972.

1º O disposto no caput deste artigo não se aplica aos contribuintes que, nos 12 (doze) meses que antecederam o ajuizamento da medida judicial que tenha por objeto o crédito, não tiveram certidão de regularidade fiscal válida por mais de 3 (três) meses, consecutivos ou não, expedida conjuntamente pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

2º Para os fins do disposto no caput deste artigo, a capacidade de pagamento será aferida considerando-se o patrimônio líquido do sujeito passivo, desde que o contribuinte:

I – apresente relatório de auditoria independente sobre as demonstrações financeiras, caso seja pessoa jurídica;

II – apresente relação de bens livres e desimpedidos para futura garantia do crédito tributário, em caso de decisão desfavorável em primeira instância;

III – comunique à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a alienação ou a oneração dos bens de que trata o inciso II deste parágrafo e apresente outros bens livres e desimpedidos para fins de substituição daqueles, sob pena de propositura de medida cautelar fiscal; e

IV – não possua outros créditos para com a Fazenda Pública, presentes e futuros, em situação de exigibilidade.

3º Nos casos em que seja exigível a apresentação de garantia para a discussão judicial de créditos resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade previsto no § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, não será admitida a execução da garantia até o trânsito em julgado da medida judicial, ressalvados os casos de alienação antecipada previstos na legislação.

4º O disposto neste artigo não impede a celebração de negócio jurídico ou qualquer outra solução consensual com a Fazenda Pública credora que verse sobre a aceitação, a avaliação, o modo de constrição e a substituição de garantias.

5º Caberá ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional disciplinar a aplicação do disposto neste artigo.

[2] Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

[3] Enunciado n. 256 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): A Fazenda Pública pode celebrar negócio processual.

[4] http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=97757

[5] https://www.gov.br/pgfn/pt-br/servicos/orientacoes-contribuintes/consultar-a-capacidade-de-pagamento