Há 20 anos, em 2003, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) registrava pouco mais de 29 milhões de passageiros voando no Brasil[1]. No ano passado, esse número ultrapassou os 82 milhões de pessoas[2], um crescimento de 182% em 20 anos.
Esse aumento demonstra não apenas o crescimento econômico de um país, mas igualmente uma democratização no uso de aviões como meio de transporte. Pessoas que antes não tinham acesso a esse meio de transporte, passaram a utilizá-lo, conseguindo acesso a um meio de deslocamento nem sempre mais confortável, mas certamente mais rápido e seguro.
Os efeitos da expansão do setor aéreo se evidenciam nos aeroportos: um ambiente antes ocupado por gente de maior poder aquisitivo, em sua ampla maioria de pele branca, passou a ser frequentado por pessoas de origem econômica mais modesta e com outras tonalidades de pele. Pretos, pardos e indígenas começaram a fazer check-in, despachar bagagens e transitar em salas de embarque. E isso é muito bom num país que se pretende democrático e plural.
Contudo, nosso sistema aeroportuário por vezes não tem sido capaz de lidar com a ampliação do volume e da diversidade de passageiros que o utilizam.
Em 21 de novembro, D. Vilma Nascimento, mulher negra, 85 anos, porta-bandeira histórica da Escola de Samba Portela e um dos esteios da agremiação, sofreu enorme constrangimento em uma filial da loja Dufry, no aeroporto de Brasília.
Ela retornava ao Rio de Janeiro depois de ter sido homenageada na Câmara dos Deputados, em função do Dia da Consciência Negra, 20 de novembro. Na loja, uma funcionária lhe solicitou que esvaziasse sua bolsa diante de toda a clientela, por suspeita de furto. Nada foi encontrado, e ela foi liberada sem qualquer pedido de desculpas[3]. A filha de D. Vilma, Danielle, filmou o acontecido, divulgando-o nas redes sociais.
Nas filmagens, são evidentes o constrangimento e o desconforto de D. Vilma enquanto colocava todos os seus pertences no balcão da loja. Evidente também é a indignação de mãe e filha ao serem submetidas a uma prática humilhante. A porta-bandeira queria que a abertura da bolsa fosse feita em frente à polícia, porém a partida de seu voo estava próxima, e ela colocou seus pertences no balcão. Nenhuma outra cliente da loja foi interpelada, conforme disse depois a família da artista[4]. A artista veterana ficou abalada com o acontecido, desmarcando compromissos que teria na capital fluminense mais tarde no mesmo dia[5].
Autoridades e personalidades públicas manifestaram sua indignação nas redes sociais. A Secretaria Nacional de Direito de Defesa do Consumidor – órgão do Ministério da Justiça – pediu esclarecimentos à concessionária do aeroporto, a Inframérica[6].
A gestão da crise teve um receituário clássico: nota da Inframerica, repudiando o acontecido[7]; nota da Dufry dona do estabelecimento, dizendo:
A Dufry Brasil, uma empresa do Grupo Avolta, pede publicamente desculpas pelo lamentável incidente ocorrido na loja do aeroporto de Brasília. A abordagem feita pela fiscal de segurança da loja está absolutamente fora do nosso padrão. Em razão da falha nos procedimentos, a profissional foi afastada de suas funções. Este tipo de abordagem não reflete as políticas e valores da empresa. A Dufry está reforçando todos os seus procedimentos internos e treinamentos, em linha com as suas políticas, para impedir que situações assim se repitam.[8]
Ressalte-se que a Dufry em sua nota de desculpas tende a atribuir à funcionária a responsabilidade pelo acontecido. A colaboradora seria um ponto fora da curva, uma anomalia dentro da política da organização, tendo por isso sido afastada de suas funções.
Mas é possível crer nessa afirmação? Se o procedimento adotado pela fiscal estava fora dos padrões da loja, por que ninguém a orientou? Na filmagem, quando D. Vilma inicia a retirada de seus pertences da bolsa, não há intervenção de ninguém da equipe. A loja certamente tem um/a gerente, mas nenhuma pessoa agiu no sentido de corrigir a abordagem inadequada da funcionária.
Evidentemente, é possível haver diversas explicações, mas a questão aqui é outra: a empresa deveria se responsabilizar pela atuação “fora do padrão” da fiscal. Aliás, em sendo verdade a alegação da companhia, a atuação de toda a equipe da loja deixou a desejar, pois as demais pessoas da equipe nada fizeram para evitar o procedimento incorreto. Então, por que a companhia se esquiva de suas responsabilidades no caso?
O fato é que a fórmula erro + afastamento de funcionária = reparação é ilusória. Essa linha de ação não contribui para resolver o tipo de constrangimento vivido por Donas Vilmas em aeroportos e outros estabelecimentos em todo o Brasil.
Melhor seria a empresa vir a público e admitir sua falha como corporação, assumindo responsabilidades no caso e se colocando como aliada da causa antirracista. Anunciar um reforço de seus procedimentos e treinamento internos é um começo, mas é preciso muito mais.
A história de D. Vilma traz à memória o caso de João Alberto Silveira Freitas, homem negro espancado até a morte num supermercado Carrefour de Porto Alegre por dois seguranças, na véspera do Dia da Consciência Negra em 2020, após um bate-boca com uma funcionária do local[9].
O grupo francês dono da marca terminou por assinar um Termo de Ajustamento de Conduta que resultou na destinação de 115 milhões de reais a ações de combate ao racismo[10], a empresa chegou a publicar uma nota em cadeia nacional lamentando a tragédia e anunciando medidas para rever os procedimentos em suas unidades[11].
Passados alguns meses, novas ocorrências de racismo foram denunciadas em outras unidades do Carrefour e do Atacadão, hipermercado também pertencente ao grupo[12].
A morte de João Alberto e o desrespeito a D. Vilma são a superfície de uma questão muito mais profunda. O fato de ocorrerem imediatamente antes ou depois do Dia da Consciência Negra é de um simbolismo fortíssimo. É como se nós, enquanto sociedade, ironizássemos a data de enfrentamento ao racismo.
Qual é o real empenho desta nação em combater esse mal? Se uma grande empresa reincide em práticas preconceituosas pouco tempo após se comprometer a combatê-las, o que isso diz sobre nós enquanto sociedade? O quão tolerantes somos em relação ao racismo?
Não é coincidência que tenhamos uma maioria de pessoas negras vítimas de letalidade policial, tampouco é um acaso que a comunidade preta e parda de nossas prisões seja desproporcionalmente maior do que a fatia de negros em nossa população, ou que a porcentagem mais elevada de pessoas pobres não seja branca. Vivemos num país em que a maioria negra é minoritária quando se trata de respeito aos direitos humanos.
Após 135 anos da abolição da escravatura no Brasil, são necessários avanços mais velozes e eficazes no combate ao preconceito racial. Precisamos aderir com mais empenho às diretrizes de nossa Constituição, que condena o racismo e procura construir uma democracia livre de preconceitos de toda natureza.
Há que se traçar políticas mais consistentes de conscientização de nosso povo quanto ao racismo, em todas as suas formas. E há que se criar incentivos – ainda que punitivos – às empresas que insistem em não tratar este tema com a devida importância. Precisamos, na condição de coletividade, despertar para o princípio de que a cor da pele não pode ser critério para respeito aos direitos humanos.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) tem buscado colaborar com este avanço, por meio de seu Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, o qual se dedica a tornar realidade a democracia sem preconceitos apregoada pela Carta de 1988.
Nosso empenho está voltado para fazer com que todos os ambientes públicos deste país pertençam a todas as pessoas. Para preservar a vida de um João Alberto, e de outros homens, negros ou não, num supermercado. Para permitir a D. Vilma, e a mulheres de qualquer tom de pele, a circulação em uma loja de aeroporto como a altiva dama que ela é, sem incômodos e com a dignidade intocada.
Neste fim de ano, aumenta frequência de viajantes nos aeroportos. Tudo o que eles deveriam enfrentar são filas, atrasos e os preços estratosféricos das lanchonetes. A preocupação com o tom de pele simplesmente não deveria existir. Voar tem de ser para todo mundo. Voar é para todo mundo, com respeito à dignidade de cada pessoa. Não nos esqueçamos disso. Todos a bordo.
[1] https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/dados-e-estatisticas/mercado-do-transporte-aereo/painel-de-indicadores-do-transporte-aereo/painel-de-indicadores-do-transporte-aereo-2003. Acesso em 21/12/2023.
[2] https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/dados-e-estatisticas/mercado-do-transporte-aereo/painel-de-indicadores-do-transporte-aereo/painel-de-indicadores-do-transporte-aereo-2022. Acesso em 21/12/2023.
[3] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/porta-bandeira-da-portela-sofre-racismo-em-aeroporto-den uncia-familia/. Acesso em 26/11/2023.
[4] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/11/24/governo-federal-notifica-aeroporto-de-brasilia-por-caso-de-racismo-contra-historica-porta-bandeira-da-portela.ghtml. Acesso em 26/11/2023.
[5] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/porta-bandeira-da-portela-sofre-racismo-em-aeroporto-den uncia-familia/. Acesso em 26/11/2023.
[6] Governo Federal notifica Aeroporto de Brasília por caso de racismo contra histórica porta-bandeira-da Portela | Distrito Federal | G1 (globo.com). Acesso em 26/11/2026.
[7] Governo Federal notifica Aeroporto de Brasília por caso de racismo contra histórica porta-bandeira-da Portela | Distrito Federal | G1 (globo.com). Acesso em 26/11/2026.
[8] https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/11/23/loja-afasta-funcionaria-apos-relato-de-abordagem-racista-contra-vilma-nascimento-porta-bandeira-da-portela.ghtml. Acesso em 26/11/2023.
[9] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-11-20/na-vespera-da-consciencia-negra-cliente-negro-e-espan cado-ate-a-morte-em-loja-do-carrefour-em-porto-alegre.html. Acesso em 26/11/2023.
[10] https://www.mprs.mp.br/media/areas/imprensa/arquivos/tac_carrefour_assinado.pdf. Acesso em 26/11/2023.
[11] https://vejasp.abril.com.br/cidades/carrefour-racismo-nota-televisao. Acesso em 26/11/2023.
[12] https://www.brasildefato.com.br/2023/04/22/carrefour-30-meses-apos-beto-freitas-casos-de-racis mo-expoem-comite-de-diversidade-da-marca. Acesso em 26/11/2023.