Vitória do patrimonialismo na reforma tributária?

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A reforma tributária ainda pode ser uma oportunidade ímpar para avançarmos em questões estruturais da sociedade brasileira, favorecendo uma maior equidade social, promoção da saúde e proteção ambiental. No entanto, setores empresariais cartelizados incidiram fortemente na tramitação da proposta do PLP 68/2024, que regulamenta a reforma e esteve em debate na Câmara dos Deputados, impedindo avanços. Agora que o texto segue para o Senado, um novo capítulo se abre para as possibilidades de mudanças, para torná-lo mais coerente com as garantias constitucionais.

Um importante mecanismo do novo sistema é o Imposto Seletivo, indicado para sobretaxar produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente. Ao contrário da alcunha de “imposto do pecado”, seu objetivo é simplesmente garantir que os custos coletivos gerados a partir destes produtos e serviços sejam minimamente compensados. No entanto, esse instrumento foi bastante enfraquecido em seu potencial, já que muitos produtos que deveriam entrar nesse rol, de acordo com as evidências científicas, ficaram de fora. É o caso dos alimentos ultraprocessados, dos agrotóxicos e das armas e munições.

Dos ultraprocessados, apenas os refrigerantes foram incluídos no Imposto Seletivo. A sua manutenção após a votação na Câmara é positiva, tendo em vista a forte pressão da indústria pela supressão. No entanto, todos os demais ficaram de fora, e parte inclusive com redução de impostos. Assim, urge que os alimentos mais consumidos pela população, como biscoitos, salgadinhos, guloseimas e embutidos, também entrem nessa lista.

Não fazê-lo é uma negligência com a saúde, indo na contramão de promover uma alimentação saudável e acessível. Além disso, o combate à insegurança alimentar precisa estar diretamente associado à saúde. Portanto, é crucial que o Senado mantenha a defesa de uma Cesta Básica composta por alimentos saudáveis e orientada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, com a isenção total dos alimentos naturais. 

No que se refere ao meio ambiente, celebramos a inclusão do carvão mineral no rol do Imposto Seletivo e reforçamos a importância de que essa conquista, fruto de reivindicações da sociedade civil, seja mantida no Senado. Para se ter uma ideia, em 2022, a produção de energia elétrica a partir da queima do carvão representou apenas 1,18% da energia gerada, mas foi responsável por 31,81% das emissões de gases de efeito estufa (GEE) de todo o setor, gerando grande impacto ambiental. 

Quanto às armas e munições, principal instrumento usado no alto nível de assassinatos do Brasil, na proposta atual a sua tributação pode acabar sendo muito menor do que a atual, constituindo verdadeiro incentivo à sua disseminação. Esses produtos foram feitos para matar e ferir, invariavelmente gerando custos coletivos que devem ser mitigados com a tributação seletiva. Armas e munições devem ter políticas de contenção, não de estímulo.

Além do Imposto Seletivo, outro mecanismo em discussão é o cashback, dispositivo para a devolução do imposto cobrado sobre os bens essenciais para famílias de baixa renda e inscritas no CadÚnico. Na Câmara, foi ampliado para todos os CPFs, não apenas para um único receptor por família, mas a faixa de renda que receberia tal benefício é ainda baixa frente à realidade da renda per capita nacional. A medida é fundamental num país como o nosso, sempre entre os dez piores resultados em desigualdade no mundo. 

O debate sobre tributação no Congresso afeta a vida de todas as pessoas no Brasil. Tão importante quanto a própria reforma é seu debate aprofundado e tramitação por todas as comissões pertinentes, sem atropelos ao processo democrático em nome de uma entrega ágil como vimos acontecer.

Esperamos que no Senado as demandas para o bem comum sejam reanalisadas. O que está em pauta é a possibilidade de mudança para um sistema que seja mais equitativo, socialmente responsável e inclusivo, com a necessária proteção à saúde e ao meio ambiente.