Virada jurisprudencial do STF no controle concentrado de constitucionalidade de decretos

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Nos últimos cinco anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito do controle de constitucionalidade de decretos presidenciais sofreu uma profunda mudança. Por décadas, a Corte se recusou a examinar a constitucionalidade de decretos regulamentares editados para execução das leis em sede de controle concentrado. De acordo com a jurisprudência tradicional, nesses casos, há apenas uma colisão entre a lei e o regulamento, cuidando-se de questão de mera legalidade a ser aferida no controle incidental ou concreto[1].

O tribunal somente admitia a aferição abstrata de constitucionalidade de decretos na hipótese de manifesta ausência de fundamento legal para a expedição do ato, quando este é caracterizado como “autônomo”[2]. Assim, excluía-se a possibilidade de verificar, em sede de controle concentrado, a compatibilidade de decretos regulamentares com a Constituição, porque se trataria de ofensa apenas indireta.

Essa jurisprudência, todavia, tem sido atenuada. A Corte compreendeu que, ao restringir demasiadamente o controle de decretos, acabava criando um verdadeiro ponto cego de controle. Especialmente em julgamentos ocorridos desde 2019, o STF tem conhecido e julgado o mérito de ADIs e ADPFs ajuizadas contra atos normativos do Poder Executivo que, a pretexto de dar fiel execução à lei, exorbitam flagrantemente do âmbito do poder regulamentar[3].

Na linha dessa virada jurisprudencial, o STF tem reconhecido que esses atos podem, a pretexto de dar fiel execução à lei, exorbitar do âmbito do poder regulamentar e ganhar contornos autônomos.

Formalmente, o preâmbulo ou “considerandos” de decretos, resoluções ou portarias podem até indicar que seu fundamento de validade é extraído diretamente de uma lei. Teoricamente, são editados pelo Poder Executivo sob o pretexto de densificar e viabilizar a execução de determinado diploma legal. Ou seja, aparentemente, possuem um lastro legal. Porém, materialmente:

exorbitam do poder regulamentar;
promovem nítidas inovações no ordenamento jurídico; e
apresentam densidade normativa primária e autônoma. Não se restringem, assim, à mera regulamentação secundária. Sua autonomia é material, nitidamente observada pela “vocação inovatória no ordenamento jurídico, o que inviabiliza a redução da controvérsia a mero conflito de legalidade, sem estatura constitucional”, como descrito pela ministra Rosa Weber[4].

Em outras palavras: mesmo não se tratando de atos formalmente autônomos, podem ser submetidos ao controle concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.

A título de exemplo, os “decretos das armas” editados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro foram elaborados a pretexto de regulamentar o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). Porém, exorbitaram dos limites fixados pela lei e feriram diretamente os dispositivos constitucionais que protegem o direito à vida (artigo 5º, caput, da CRFB/88) e o direito à segurança pública (artigo 144 da CRFB/88), conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal[5].

Esses atos, apesar de sua natureza aparentemente regulamentar, claramente inovaram na ordem jurídica e foram examinados na via do controle abstrato de constitucionalidade, já que violaram diretamente a Constituição. Apesar de, no plano formal, possuírem um lastro legal mínimo, seu conteúdo normativo, na prática, inova no ordenamento e cria direitos e deveres, disciplinando novas relações, classificações ou categorias jurídicas.

No plano material, não guardam relação de dependência ou subordinação com a lei. Seu texto, então, poderá violar diretamente texto constitucional – e não somente o conteúdo legal, do qual se afasta. Podem, assim, ser classificados como materialmente autônomos.

De fato, a autodeclarada natureza regulamentar de um decreto, resolução ou portaria não deve ser bastante para impedir o STF, mediante análise individualizada dos preceitos questionados, de identificar aqueles que teriam contornos autônomos. Nas palavras do ministro Paulo Brossard, “para dizer-se que um decreto é regulamentar e por essa razão não pode ser objeto de ação direta, é preciso verificar se ele, efetivamente é regulamentar. Não basta que a ementa o diga”[6].

Assim, a natureza regulamentar de um decreto não pode ser inferida somente de sua ementa, sendo necessário examinar o conteúdo de cada dispositivo do decreto para verificar sua natureza normativa. Aliás, um mesmo decreto pode ter dispositivos autônomos e outros regulamentares, conforme reconhecido pelo STF na ADI 1.599[7]. É possível que alguns artigos de um ato impugnado possuam natureza autônoma, enquanto os demais representem meros atos de execução.

Como exemplo dessa virada jurisprudencial, é possível citar o julgamento da medida cautelar na ADI 6.590, ajuizada em face do Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial. Trata-se de decreto formalmente regulamentar, editado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no intuito de regulamentar a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional).

Apesar de seu caráter formalmente regulamentar, o decreto promoveu uma verdadeira inovação no ordenamento jurídico. Segundo o STF, seu texto “não se limita a pormenorizar os termos da lei regulamentada, mas promove a introdução de uma nova política educacional nacional, com o estabelecimento de institutos, serviços e obrigações, que, até então, não estavam inseridos na disciplina educacional do país”[8].

Nos termos do voto condutor do acórdão, exarado pelo ministro Dias Toffoli, “o ato normativo impugnado, em que pese figurar formalmente como um decreto regulamentar, inovou no ordenamento jurídico ao estabelecer institutos, serviços e obrigações, que, até então, não estavam inseridos na disciplina educacional do país”[9].

Diante dessas inovações normativas, a Corte decidiu que o Decreto 10.502/2020 possui densidade normativa primária suficiente a atrair a competência do STF para a aferição de sua validade perante a Constituição e conheceu da ADI 6.590.

Posteriormente, em 2023, o Plenário do STF analisou a constitucionalidade do Decreto Presidencial 9.806/2019, que promoveu alterações na composição e no processo decisório do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), criado pela Lei Federal 6.938/1981[10]. O decreto, apesar de formalmente regulamentar, manifestou conteúdo jurídico-normativo primário, inovando no ordenamento jurídico e assumindo grau de autonomia, abstração e impessoalidade.

No mesmo sentido, a Corte declarou a inconstitucionalidade do Decreto 10.003/2019, que alterou as normas sobre a Constituição e o funcionamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) e destituiu todos os seus membros, no curso dos seus mandatos[11].

De acordo com o ministro Luís Roberto Barroso, o decreto foi editado “a pretexto de regular” a Lei 8.242/1991. Porém, na prática, violou diretamente o texto constitucional, frustrando a participação das entidades da sociedade civil na formulação de políticas públicas em favor de crianças e adolescentes e no controle da sua execução, como exigido pela Constituição.

Outro caso paradigmático tratou do controle de constitucionalidade dos decretos das armas, editados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, julgado pelo STF nas ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695, de relatoria da ministra Rosa Weber.

A Corte assentou que as inovações regulamentares promovidas pelos decretos são incompatíveis com o sistema de controle e fiscalização de armas instituído pelo Estatuto do Desarmamento[12]. Nos termos do voto da ministra relatora, Rosa Weber, os atos “exorbitaram dos limites do poder regulamentar outorgado pela Constituição ao Presidente da República, vulnerando, ainda, políticas públicas de proteção a direitos fundamentais”[13].

Ainda em 2022, o STF julgou a ADPF 607, ajuizada em face do Decreto 9.831/2019, que promoveu alterações no Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), criado pela Lei 12.847/2013[14].

A Corte decidiu que, apesar de sua natureza regulamentar, o decreto deveria ser submetido ao controle concentrado de constitucionalidade. Isso porque o ato refletiu claro abuso de poder regulamentar e violação ao princípio da separação dos poderes.

Nos termos do voto do ministro Dias Toffoli, “o esvaziamento de políticas públicas previstas em lei, mediante atos infralegais, importa em abuso do poder regulamentar e, por conseguinte, contraria a separação dos poderes” [15]. De fato, “não é dado ao chefe do Poder Executivo, sob o pretexto de exercer função meramente regulamentar, desmontar política pública instituída no intuito de dar cumprimento ao texto constitucional e prevista em compromisso internacional assumido pelo Brasil”[16].

Recentemente, em 2024, o STF referendou a medida cautelar na ADPF 935 e suspendeu a eficácia de artigos do Decreto 10.935/2022, que dispõe sobre a proteção das cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional. Formalmente, o decreto foi editado para regulamentar a Lei 6.938/1981, que trata da Política Nacional do Meio Ambiente. Porém, trouxe inovações na ordem jurídica que violaram diretamente dispositivos constitucionais que protegem o ecossistema brasileiro.

Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, relator originário da ADPF 935, o ato “introduziu consideráveis inovações na ordem jurídica vigente ao autorizar a exploração de cavidades naturais subterrâneas, inclusive com grau de relevância máxima – antes protegidas de impactos negativos irreversíveis – para a construção de empreendimentos considerados de utilidade pública. É, portanto, informado de conteúdo normativo equiparável a uma lei em sentido estrito”[17].

Para o ministro, o decreto promoveu inovações normativas que autorizam a exploração econômica dessas áreas, reduzindo, em consequência, a proteção desse patrimônio ambiental[18].

Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal em futuros julgamentos não deve, a priori, deixar de conhecer de ADIs ou ADPFs ajuizadas contra atos normativos regulamentares. Deve analisar se o ato é materialmente autônomo, se possui “vocação inovatória no ordenamento jurídico”[19].

A cada caso apresentado, o STF deve realizar uma verificação esmiuçada a respeito dessa densidade normativa primária, desse divórcio e afastamento entre regulamento e conteúdo legal. Não deve permanecer adstrito a uma jurisprudência restritiva que enfraquece o controle de atos unilaterais do Poder Executivo. Se o caráter regulamentar do ato normativo for meramente formal, a via do controle concentrado deverá ser inaugurada.

[1] A jurisprudência tradicional da Corte foi bem sintetizada no seguinte trecho da ementa da ADI nº 966-MC, de relatoria do Ministro Celso de Mello: “Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em conseqüência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata”. (ADI nº 996-MC, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ 06.05.1994). Outros julgados que ilustram esse entendimento jurisprudencial: STF. ADI nº 708, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ 07.08.1992; STF. ADI nº 2.387, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator(a) do acórdão: Min. Ellen Gracie, DJe 05.12.2003; STF. ADPF nº 169 AgR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 14.10.2013.

[2] De acordo com o Ministro Celso de Mello, decreto autônomo é aquele que não tem “qualquer relação de subordinação ou de dependência com uma determinada lei”, e tem “existência própria, bastante em si mesma” (Cf. ADI nº 561 MC, Tribunal Pleno, Rel. Celso de Mello, DJe 23.03.2001). No mesmo sentido, na ADI nº 1.383 MC, o Ministro Moreira Alves ressaltou que a ação direta de inconstitucionalidade só é cabível quando o ato normativo impugnado for “autônomo, ou seja, ato normativo que não vise a regulamentar lei ou que não se baseie nela, pois, caso contrário, a questão se situa primariamente no âmbito legal, não dando ensejo ao conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade” (ADI nº 1.383 MC, Rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ de 18.10.1996). Nada obstante, entendemos que atos regulamentares exorbitantes, que inovam no ordenamento e criam direitos e deveres, disciplinando novas relações, classificações ou categorias jurídicas, devem ser classificados como “materialmente autônomos” e, assim, inaugurar a via do controle concentrado de constitucionalidade.

[3] Cf., e.g., STF. ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023; ADI 6139, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 06.09.2023; ADI nº 6.119, Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 03.10.2023; STF. ADI 6.590 Ref-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Sessão virtual de 21/12/2020, DJe de 12/02/2021 (Em 2/2/2023, o processo foi julgado extinto, sem resolução de mérito, por perda superveniente de objeto, em razão da revogação do decreto impugnado); STF. ADPF 622, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 21.05.2021; STF. ADPF 651, Tribunal Pleno, Rel. Min Cármen Lúcia, DJe 29.08.2022; STF. ADPF 607, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 01.06.2022; STF. ADPF 623, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 18.07.2023; STF. ADI 6649, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 19.06.2023; STF. ADI 5.942, Tribunal Pleno, Rel. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Luiz Fux, DJe 08.02.2021; STF. ADPF 935 MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 25.01.2022 (A decisão monocrática proferida na ADPF 935 MC foi posteriormente referendada pelo Plenário do STF – ADPF 935 Ref-MC, Tribunal Pleno, Sessão Virtual de 19/4/2024 a 26/4/2024).

[4] Voto do Ministra Rosa Weber nas ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023).

[5] O controle de constitucionalidade do decreto das armas foi realizado pelo STF no julgamento das ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023).

[6] STF. ADI nº 673 MC, Tribunal Pleno, Min. Paulo Brossard, DJe 11.10.2001, p. 31.

[7] Cf. STF. ADI nº 1.599 MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJe 18.05.2001.

[8] STF. ADI 6.590 Ref-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Sessão virtual de 21.12.2020, DJe de 12.02.2021. Em 2.2.2023, o processo foi julgado extinto, sem resolução de mérito, por perda superveniente de objeto, em razão da revogação do decreto impugnado.

[9] STF. ADI 6.590 Ref-MC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, Sessão virtual de 21.12.2020, DJe 12.02.2021.

[10] STF. ADPF 623, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 18.07.2023.

[11] Ementa: “Direito da criança e do adolescente. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Decreto nº 10.003/2019. Composição e funcionamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente – Conanda. Procedência parcial do pedido. (…) Tese: “É inconstitucional norma que, a pretexto de regulamentar, dificulta a participação da sociedade civil em conselhos deliberativos”” (STF. ADPF 622, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 21.05.2021).

[12] STF. ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023. Cf., ainda, ADI 6139, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 06.09.2023 e ADI nº 6.119, Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 03.10.2023.

[13] STF. ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695, Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023. Cf., ainda, ADI 6139, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe 06.09.2023 e ADI nº 6.119, Tribunal Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 03.10.2023.

[14] STF. ADPF 607, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 01.06.2022.

[15] STF. ADPF 607, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 01.06.2022.

[16] STF. ADPF 607, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 01.06.2022.

[17] Cf. STF. ADPF 935 MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 25/01/2022. A decisão monocrática foi posteriormente referendada pelo Plenário do STF (ADPF 935 Ref-MC, Tribunal Pleno, Sessão Virtual de 19/4/2024 a 26/4/2024).

[18] Cf. STF. ADPF 935 MC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 25/01/2022. A decisão monocrática foi posteriormente referendada pelo Plenário do STF (ADPF 935 Ref-MC, Tribunal Pleno, Sessão Virtual de 19/4/2024 a 26/4/2024).

[19] Voto do Ministra Rosa Weber nas ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.09.2023).