Violência vicária contra a mulher e o Direito das Famílias: um debate necessário

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Embora não prevista no rol exemplificativo do artigo 7º da Lei Maria da Penha, e pouco trabalhada – ao menos com esta nomenclatura – no Brasil, a violência vicária pode ser conceituada como uma espécie autônoma de violência contra a mulher, na qual as agressões são praticadas contra terceiros, mas, desde o início, com a intenção de causar dor e/ou sofrimento à determinada vítima do sexo/gênero feminino (v.g., pai que realiza atos de violência contra seus próprios filhos menores de idade para atingir à mãe das crianças, sua ex-companheira).

O exemplo mencionado ilustra – infelizmente – uma hipótese corriqueira de violência vicária contra as mulheres nas arcadas do sistema de justiça brasileiro. Nesse contexto também se insere o mau uso da Lei de Alienação Parental, que vem sendo um grande campo fértil para a violência vicária contra as mulheres, conforme alerta o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1].

Não por acaso, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ingressou, em março deste ano, com ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (STF), objetivando o reconhecimento da inconstitucionalidade de diversos trechos da Lei 12.318/2010, diploma legal popularmente conhecido como “Lei de Alienação Parental”. A ADI foi distribuída ao ministro Flávio Dino e seu pedido cautelar encontra-se pendente de apreciação.[2]

Não obstante o cenário mencionado, também é possível conjecturar hipóteses de violência vicária sem o envolvimento de crianças e adolescentes (v.g., atos de violência praticados por um irmão contra seus pais idosos, objetivando causar dor e sofrimento à sua irmã).

Algumas premissas, contudo, são inafastáveis. Na violência vicária, sempre haverá ao menos três pessoas envolvidas: o agressor, àquela contra a qual os atos de violência foram dirigidos (vítima imediata) e a vítima mulher, pessoa a qual o autor objetivava desde o início causar dor, sofrimento ou prejuízo com a prática das agressões. Realizada essa pequena introdução ao tema, é momento de analisarmos algumas premissas da violência vicária contra a mulher de forma mais detalhada: origem, sujeitos ativo e passivo, formas de caracterização e locus de combate.

Origem da violência vicária no direito comparado

A etimologia da palavra “vicário” traduz a ideia da “substituição de um indivíduo por outro, no exercício de uma função ou na experiência de uma situação”,[3] motivo que explica o porquê de a violência vicária contra as mulheres também ser conhecida como “violência por substituição”.[4] Já a expressão “violência vicária” propriamente dita, foi desenvolvida por Sonia Vaccaro[5], psicóloga espanhola, e incluída no panorama legislativo de forma pioneira justamente na Espanha, ao ser elencada como uma dentre as diversas formas de violência contra a mulher a serem combatidas pela Lei Orgânica nº 01/2004, popularmente conhecida como “Pacto de Estado contra a Violência de Gênero na Espanha”.[6]

No ano de 2023, o México promoveu reforma legislativa e passou a incorporar o combate à violência vicária contra a mulher em âmbito cível e criminal, definindo-a como “a ação ou omissão que gera afetação ou dano físico, psicológico, emocional, patrimonial ou de qualquer outra índole a um descendente, ascendente, ou dependente econômico da vítima, cometido por parte de quem mantenha ou tenha mantido uma relação afetiva ou sentimental com a mesma, e cujo objetivo seja causar um dano emocional, psicológico, patrimonial ou de outra índole à vítima; e que se expressa exemplificativamente por condutas como ameaças verbais, rapto de filhas e filhos, imputação falsa de atos criminosos, demora processual injustificada ou qualquer outra situação que seja utilizada para prejudicar a mulher”.[7]

Percebe-se que o legislador mexicano optou por adotar um conceito amplo de violência vicária, inclusive admitindo o emprego de interpretação analógica (intra legem) ao utilizar a expressão “ou qualquer outra situação que seja utilizada para prejudicar a mulher”. Em síntese: nos casos de violência vicária, o agressor instrumentaliza a violência em terceiros – geralmente em crianças e adolescentes filhos comuns do casal – objetivando atingir desde o início a vítima mulher, genitora dos infantes.

Sujeitos ativo e passivo da violência vicária e locus de combate

Toda e qualquer pessoa pode ser enquadrada como autor(a) de atos de violência vicária contra a mulher, embora as experiências oriundas do direito comparado demonstrem que são os homens os sujeitos ativos contumazes.[8] Exatamente neste contexto, Rocío Zafra Espinosa de Los Monteros não hesita em afirmar que a violência vicária “é a mais desprezível que um homem pode vir a praticar. Atentar contra seus próprios filhos para causar um mal maior à mulher vítima de violência é um dos maiores ataques que esta pode vir a sofrer”.[9]

Mulheres costumam ser as destinatárias finais da violência vicária. No entanto, conforme já mencionado, não é incomum que a instrumentalização da violência seja direcionada também às pessoas do sexo masculino (v.g., idosos, crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência), objetivando causar dor ou sofrimento à vítima mulher.

Ainda, acaso os atos sejam cometidos em contexto de violência doméstica e familiar – e geralmente o são dadas as características pessoais dos envolvidos (v.g., ex-cônjuges, irmãos ou outras pessoas com relação de parentesco) poderão ser invocados, a um só tempo, dois diplomas protetivos contra o agressor: a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) para salvaguardar a vítima mulher, e a Lei 14.344/2022 (Lei Henry Borel) para proteger as crianças e adolescentes, inexistindo óbice para a incidência de ambos os diplomas protetivos de forma simultânea, conforme vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça.[10] A própria Corte já reconheceu em mais de uma oportunidade a existência de um microssistema de proteção às pessoas vulneráveis composto por normas protetivas às mulheres, às pessoas idosas e às crianças e adolescentes.[11]

O combate à violência vicária contra a mulher, não se resume, contudo, ao possível enquadramento típico dos atos praticados pelo autor para fins de responsabilização penal. Pelo contrário. Conforme já mencionado, os episódios de violência vicária geralmente ocorrem entre pessoas que ostentam algum grau de parentesco, afetividade ou envolvimento emocional pretérito. Dito isso, o Direito das Famílias se apresenta como o ramo jurídico de propensão para florescimento de atos de violência vicária. Afinal, conforme bem pontua Maria Berenice Dias: “O direito das famílias lida com gente, gente dotada de sentimentos, movida por medos e inseguranças, gente que sofre desencantos e frustrações e busca no Judiciário ouvidos a seus reclamos”.[12]

Nesse sentido, exsurge como exemplo frequente de violência vicária contra as mulheres em Varas de Família, a prática de atos de alienação parental de cunho manipulativo pelo genitor para com os seus próprios filhos com o objetivo de controlar a vítima, sua companheira ou ex-companheira, chantageá-la, ou ainda, simplesmente objetivando causar-lhe dano emocional.

Sobre o tema, além da já mencionada ADI proposta pelo PSB contra diversos trechos da LAP em março deste ano, também recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de sua Relatoria Especial sobre violência contra mulheres e meninas. concluiu que “o pseudoconceito desacreditado e não científico de alienação parental é utilizado em litígios de direito de família (…) como uma ferramenta de coerção e para minar e desacreditar alegações de violência doméstica apresentadas por mães que procuram manter seus filhos seguros”.[13]

E não é só. Valéria Scarance Diez Fernandes chama a atenção para um segundo fato: a Lei 12.318/2010 vem sendo utilizada como instrumento de revitimização de mulheres vítimas de violência em juízo. Segundo a autora: “Essa estratégia de inverter a situação e acusar a mulher não é nova, mas agora tem amparo na Lei de Alienação Parental”.[14]

Parece-nos inequívoca, portanto, a relação umbilical entre a violência vicária contra as mulheres e a Lei de Alienação Parental, havendo quem chegue a afirmar que: “[n]o Brasil, a violência vicária não só não consta da legislação protetiva das mulheres, como é legitimada pelo Estado com a Lei de Alienação Parental, que vem sendo utilizada como principal forma de defesa pelos agressores com o objetivo de inversão da guarda ou obtenção de guarda compartilhada”.[15]

Outro exemplo de violência vicária contra a mulher nas ações de família consiste no reiterado desrespeito a provimentos judiciais envolvendo os filhos em comum de agressor e vítima. A título ilustrativo, trago aos leitores uma situação infelizmente visualizada no dia a dia das Varas de Família: o descumprimento dos horários de entrega e devolução da criança pelo genitor durante o exercício do direito de visitas, a partir de atitudes que causam abalo ao infante envolvido, e unicamente com o objetivo de atingir a genitora ou forçá-la a aceitar determinadas demandas e/ou propostas de acordo.

A instrumentalização da violência por substituição afigura-se como um fenômeno em ebulição no Direito das Famílias, e, embora ainda invisibilizada no direito brasileiro, esta não deve – sob hipótese alguma – ser varrida para debaixo do tapete.

Espero que tenham gostado do texto. Até a próxima!

[1] Art. d1. Do Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero: “Em relação à guarda das filhas e dos filhos, a alegação de alienação parental tem sido estratégia bastante utilizada por parte de homens que cometeram agressões e abusos contra suas ex-companheiras e filhos(as), para enfraquecer denúncias de violências e buscar a reaproximação ou até a guarda unilateral da criança ou do adolescente”. (CNJ, Protocolo de Julgamento com perspectiva de gênero, p. 96) Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf . Acesso em 20 de abril de 2024.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 7.606. Rel. Min. Flávio Dino (pendente de julgamento).

[3] LÓPEZ, María del Carmen. Madres maltratadas: violencia vicaria sobre hijas e hijos. Málaga: Uma Editorial, 2018. p. 42

[4] No direito brasileiro, a expressão linguística encontra eco no chamado “sistema vicariante” adotado pelo artigo 98 do Código Penal em matéria de responsabilização de indivíduos semi-imputáveis. Para um aprofundamento a respeito do tema: BUSATO, Paulo César. Direito Penal – Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022. p. 602 e ss.

[5] Para um aprofundamento acerca do pensamento da autora: VACCARO, Sonia. Violência vicária. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2023.

[6] ESPAÑA, Goberno de España. Delegación del Gobierno contra la violência de género. Disponível em:  https://violenciagenero.igualdad.gob.es./pactoestado/. Acesso em: 20 abr. 2024.

[7] Art. 8º da Lei de acesso as mulheres a uma vida libre de violência.

[8] LÓPEZ, María del Carmen. Madres maltratadas: violencia vicaria sobre hijas e hijos. Málaga: Uma Editorial, 2018. p. 42

[9] DE LOS MONTEROS, Rocío Zafra Espinosa. Consequencias de una sociedad desigual. In: SANCHÉZ-ARJONA, Mercedes Llorente; DE LOS MONTEROS (org.). La violencia de género em la sombra. Portada: Editorial Aranzadi, S.A.U, 2023. p. 418.

[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 191.188/GO. Rel. Min. Daniela Teixeira, j. 22/09/2024.

[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 197.661/SC. Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, j. 09/08/2023; RMS n. 70.679/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, j. 26/09/2023.

[12] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 16. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023. p. 20.

[13] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guarda, violência contra a mulher e as crianças. Relatório da Relatora Especial sobre a violência contra as mulheres e as meninas, suas causas e consequências. 13 de Abril de 2013. Disponível em: https://ohchr.org/sites/default/files/documents/issues/women/sr/A-HRC-53-36-Portuguese.pdf

[14] FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o processo no caminho da efetividade. 5. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024. p. 546

[15] IBRAHIN, Francini Imene Dias (org.). Lei Maria da Penha Comentada. São Paulo: Mizuno, 2024. p. 103-4.