Na política, diversos desafios patentes continuam promovendo a subrepresentação de minorias. O subfinanciamento, por exemplo, é um elemento que é tanto consequência como causa dessa fotografia. Apesar das tentativas de avanços para a correção desse cenário, como o estabelecimento de financiamento mínimo para campanhas femininas e de pessoas racializadas, mulheres negras, que representam 28% da população brasileira, continuam recebendo apenas 11,2% dos recursos destinados a campanhas políticas, enquanto homens brancos, que representam 33% das candidaturas, receberam 51%[1].
Não bastasse a constatação de subfinanciamento, partidos continuam evocando o princípio da “autonomia partidária” para promoverem sua autoanistia em relação ao descumprimento da legislação eleitoral, que exige 30% de candidaturas de homens ou mulheres. O movimento de backlash em prol da autoanistia dos partidos seguiu até mesmo para o processo legislativo, com a iniciativa da PEC 9/2023[2].
Neste mês, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promulgou a Súmula 73, em uma tentativa de identificar e combater de forma mais assertiva as fraudes e candidaturas fictícias. A súmula consolida a jurisprudência para definir como elementos probatórios de tentativas de burla à legislação eleitoral a identificação de votação zerada ou inexpressiva, prestação de contas zerada ou padronizada e ausência de movimentação financeira relevante para o financiamento de campanhas de mulheres e pessoas racializadas. Detectada a possibilidade de fraude, partidos e coligações podem ser penalizados com cassação dos mandatos e inelegibilidade dos envolvidos.
Diante deste cenário, no dia 23 de maio, o Programa de Diversidade e Inclusão (PD&I) e o CTS-FGV reuniram pesquisadoras, acadêmicas, ativistas e representantes de plataformas digitais no evento “Violência política de gênero e raça: combate e desafios” para discutir sobre combate à violência política de raça e gênero e seus desafios no contexto eleitoral. Considerando a proximidade das eleições municipais, é urgente discutir a questão de forma articulada e colaborativa com atores sociais diversos.
Para além do além do subfinanciamento, o evento abordou questões sobre dinâmicas intrapartidárias e casos de violência que persistem afastando minorias de forma rotineira dos espaços institucionais da política. A Lei 14.192/2021, também denominada de Lei de Violência Política Contra a Mulher (VPCM), foi um avanço significativo na tentativa de promover a proteção das mulheres contra a violência política e partidária, criminalizando diversas formas de violência, como assédio, calúnia e ameaças. No entanto, sua implementação ainda enfrenta diversos desafios.
O primeiro deles reside na própria elaboração restritiva da legislação. Por escolha do legislador, a lei versa apenas sobre “violência política contra a mulher”, negligenciando pessoas de gênero diverso e abrindo margem para a sua não aplicação, ou discussão da sua aplicação, para mulheres trans.
Ainda que haja jurisprudência do STJ confirmando que mulheres trans devem ter o tratamento equivalente a mulheres cis, a defesa de pessoa ré em conduta violadora da Lei 14.192 poderia alegar o princípio da taxatividade da lei penal e, defrontando-se com instância judicial conservadora, conseguir a sua absolvição. Isto é, o legislador ativamente optou pela denominação “violência política contra a mulher”, ao invés de “violência política de gênero” para promover a exclusão de pessoas trans.
Outro ponto controverso envolve os crimes contra o Estado democrático de Direito, com a promulgação da Lei 14.197 de 2021, posterior à Lei de VPCM. A primeira trata de violência política de maneira geral, prevendo de 3 a 6 anos de pena, enquanto a segunda estabelece uma pena inferior para a conduta específica, com pena de 1 a 4 anos[3].
Discute-se não apenas a possibilidade de revogação tácita da Lei de VPCM, como também é gerado um resultado problemático: os crimes previstos na primeira lei gozam de uma pena inferior do que a violência política contra homens. A saída seria, portanto, buscar a compatibilização dos tipos penais, a fim de sanar a insegurança jurídica.
Ainda, apesar da legislação, mulheres – principalmente, mulheres trans, negras e periféricas – continuam sendo objeto de ameaças contínuas e de violência física e psicológica, em suas candidaturas ou no exercício de seus mandatos. Aquelas que lutam pela defesa de direitos humanos e pelo progresso social têm sido os alvos preferenciais de grupos de extermínio, como a milícia no Rio de Janeiro, e de líderes partidários que não admitem a devida paridade de gênero.
Para além das mulheres diretamente envolvidas em atividades legislativas, ativistas e jornalistas que tocam em temas politicamente sensíveis são, elas próprias, alvos de máquinas partidárias em tentativa de silenciamento de suas vozes.
Com a Internet sendo um foro fundamental para o debate público, denúncias coordenadas de seus perfis e conteúdos, campanhas de difamação e desinformação generificada têm sido táticas recorrentemente utilizadas para silenciar mulheres e pessoas negras. De tal modo, devemos pensar não só nas vítimas da violência política, mas também naqueles que se utilizam deste instituto para promover suas carreiras políticas profissionais, utilizando-se também dos algoritmos de redes sociais que promovem conteúdos ultrajantes e indignatórios.
A resolução desse cenário passa pela reforma legislativa para corrigir as deficiências no texto legal em relação à violência política de gênero, além de elaboração de políticas específicas, como financiamento exclusivo para proteção de candidatas, formação e capacitação em gênero, raça e segurança digital para lideranças políticas, mecanismos eficazes de denúncia e acompanhamento de casos de violência, e campanhas de conscientização para combater o machismo e o racismo na política. Mas não apenas.
Tendo em vista o papel decisivo das plataformas para comunicação e disseminação de informações, as empresas de redes sociais precisam estar atentas à violência política de gênero e raça, desenvolvendo políticas de conteúdo específicas e adaptando mecanismos de moderação de conteúdo para combatê-la. Afinal, as agressões sofridas através das plataformas tem impacto imediato e palpável na vida das vítimas.
[1] Dados do TSE Mulheres, 2024.
[2] Ver CURZI, Y. et al. Nota técnica sobre a PEC 09/2023. out. 2023.
[3] Art. 326-B, Código Eleitoral – Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo. (Incluído pela Lei nº 14.192, de 2021) Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.