Você já ouviu falar em violência política? Embora o termo seja recente, essa prática é antiga e enraizada na sociedade. Segundo o relatório “Violência Política e Eleitoral no Brasil”, das instituições Terra de Direitos e Justiça Global, essa questão atinge representantes de todos os cargos eletivos, partidos e níveis federativos. Esse tipo de violência tem crescido nos últimos anos. O mesmo relatório aponta que, segundo o Grupo de Investigação Eleitoral da UFRJ, houve um aumento de 50% na violência política entre o primeiro e o segundo trimestres de 2022.
Mas quais são os elementos que constituem esse fenômeno? Do que estamos falando exatamente? Na política, a força é um pilar para mudanças sociais e comunitárias. Aplicada dentro dos limites democráticos, pode ser transformadora. No entanto, hegemonias utilizam a violência para perpetuar poder e desigualdades.
Isso resulta na desestabilização de eleições e resultados democráticos, mantendo aqueles que ignoram a representatividade. Atos individuais ou coletivos têm vitimado a representação política e reforçado o uso patrimonialista do Estado, favorecendo interesses escusos, incluindo os de milícias.
Quando falamos em grupos marginalizados e excluídos da política, devemos destacar as mulheres, que compõem, em média, 52% do eleitorado, mas disputaram apenas 18% das vagas nas eleições de 2022, segundo dados do TSE. Além disso, mulheres cisgêneras, transexuais e travestis concentraram 38% dos ataques por motivação política e representaram 41,3% das vítimas no Brasil em 2022, conforme o já mencionado relatório da Terra de Direitos e Justiça Global.
Esses dados alarmantes refletem principalmente as experiências de pré-candidatas, candidatas e eleitas, com menos registros entre assessoras parlamentares, secretárias de governo ou dirigentes partidárias. Devido ao desconhecimento e à subnotificação, esses números são certamente inferiores à realidade.
Precisamos expandir nosso entendimento sobre as vítimas de violência política. Jornalistas, comunicadoras e influenciadoras digitais também enfrentam esse tipo de violência. Muitas vezes, ela é vista apenas como violência de gênero, focada em ataques à reputação e assédio sexual. Embora correta, essa designação é insuficiente.
A exclusão dessas profissionais da nomenclatura de violência política de gênero, quando agredidas por motivações políticas, reduz nossa compreensão do fenômeno, sua incidência e impactos na sociedade. A Lei 14.192/2022 considera violência política contra a mulher “toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher”, aplicando-se apenas a mulheres em cargos políticos.
No site da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, afirma-se que “as mulheres podem sofrer violência [política] quando concorrem, já eleitas e durante o mandato”. Contudo, essa definição não abarca a complexidade das disputas de poder atuais, onde o jornalismo e a comunicação desempenham um papel importante ao criar novas narrativas e frustrar tentativas de manutenção ou retrocesso social.
O estudo O papel dos agentes de aplicação da lei: garantir a segurança dos jornalistas durante manifestações públicas e eleições, realizado pela Unesco, identificou que, entre 2019 e junho de 2022, 759 profissionais da comunicação foram atacados em 70 países, sendo 42% praticados por agentes políticos.
O relatório ressalta o aumento da violência contra jornalistas durante as eleições, revelando um padrão mundial. Outro levantamento da Unesco, “The Chilling: global trends in online violence against women journalists”, afirma que essa violência é um fenômeno global e que continua a crescer. A subnotificação é comum, motivada pela cultura da impunidade, vergonha, desconhecimento sobre como denunciar e falta de apoio institucional.
Essa situação é ilustrada pelo caso de 2017, quando a jornalista Míriam Leitão, do Grupo Globo, foi atacada verbalmente durante um voo por 20 representantes do Partido dos Trabalhadores (PT). Eles se sentaram próximos ao seu assento e proferiram xingamentos e ameaças, além de distorcerem seu trabalho. Antes da situação, o presidente à época havia mencionado seu nome de forma desrespeitosa em comícios e reuniões do partido, incitando esse tipo de ação.
Outro caso relevante é o de Patrícia Campos Mello, jornalista que publicou reportagens sobre o sistema de disparo em massa de mensagens que ajudou na vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Um funcionário envolvido mentiu, afirmando que ela havia se insinuado sexualmente para obter informações.
Diante disso, o deputado Eduardo Bolsonaro publicou no Facebook um trecho do vídeo com o depoimento e propagou a mesma mentira em entrevistas e no plenário da Câmara. O ex-presidente Bolsonaro repetiu a acusação com um trocadilho sexual, incitando ataques virtuais e ameaças contra Patrícia, que continuou recebendo mensagens ameaçadoras por anos.
Michele Prado, pesquisadora de movimentos extremistas, sofreu cyberbullying em seu perfil no X, principalmente por grupos de esquerda, após corrigir dados sobre a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul divulgados pela jornalista Daniela Lima, da GloboNews.
Essa violência não é apenas uma questão local. Entre 2023 e 2024, o Brasil subiu 10 posições no ranking mundial de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, que compara as condições do exercício do jornalismo entre 180 países.
O monitoramento da Abraji sobre ataques a jornalistas em 2023 apresenta uma tendência positiva, com uma redução de 60% nos ataques; entretanto, a violência de gênero contra mulheres jornalistas aumentou de 3% para 9%. Já uma pesquisa da #ShePersisted analisou 1 milhão de dados entre 2019 e 2024, revelando que 75% dos ataques no YouTube questionavam as habilidades profissionais dessas mulheres, e 60% dos comentários no Facebook questionavam seu patriotismo, afirmando que eram anti-Estado. Muitas fake news continuam a circular, mesmo após serem refutadas por sites de checagem de fatos.
Para enfrentar a violência política e de gênero contra jornalistas e comunicadoras, precisamos de ações diversificadas: regulamentação das plataformas digitais, investimentos das empresas no combate à violência, capacitação para identificar práticas de violência, reeducação social sobre assédio e discriminação, e a ampliação da presença de mulheres eleitas nas Casas Legislativas, que possam opinar e combater o fenômeno com mais propriedade. Importante dizer que todos os pontos mencionados estão longe de qualquer facilidade na prática e discurso.
A aprovação da PEC da Anistia, que anula multas de partidos que não aplicaram recursos mínimos em candidaturas de mulheres e negros/pardos, exemplifica a luta pelo status quo e a rejeição a mais quadros femininos. A colunista Lana Canepa, da BandNews FM, destacou como a tramitação dessa PEC perpetua a desigualdade de gênero e raça na política. Suas observações mostram que jornalistas e influenciadoras correm o risco de sofrer violência política de gênero ao desafiar políticas que mantêm essas desigualdades.
Diante do contexto em que o Brasil ocupa a 64ª posição no ranking mundial de participação feminina na política, com apenas 25-29% de representação total, de acordo com o estudo “Mulheres Líderes na Política 2024″, da ONU Mulheres, é evidente que a violência política de gênero afeta mulheres em diversas posições de poder, não apenas candidatas e eleitas. Precisamos ampliar nosso entendimento e reformar nossas leis para proteger todas as mulheres envolvidas no debate público e que influenciam suas dinâmicas.
Reconhecer a violência política de gênero como uma questão que vai além das urnas é essencial para avançarmos na construção de uma sociedade mais justa e democrática. Políticas públicas e iniciativas privadas devem se alinhar para enfrentar e mitigar esse problema, de modo que todas as mulheres possam exercer plenamente seus direitos e contribuir para o desenvolvimento social e político do país.