Violação de direitos reprodutivos de peruanas no governo Fujimori chega à Corte IDH

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) analisa o caso de uma mulher que faleceu após ser submetida a um procedimento de esterilização forçada durante o governo de Alberto Fujimori (1990-2000). A história de Celia Ramos Durand é a primeira que chega ao Tribunal entre centenas de mulheres peruanas que passaram por uma ligadura de trompas sem consentimento prévio, livre e informado, pressionadas por profissionais de saúde do chamado Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar, lançado à época.

Familiares e organizações da sociedade civil denunciam que as operações eram realizadas em meio a pressões, coações e ameaças às mulheres, principalmente de comunidades indígenas, camponesas e de recursos econômicos escassos.
Em audiência na Corte IDH no último mês (22/05), a filha mais velha de Celia, Marisela Ramos, afirmou que a mãe foi pressionada a realizar a cirurgia de laqueadura em julho de 1997. Celia tinha 34 anos e era mãe de três meninas, de 10, 8 e 5 anos.

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“Ela era jovem, uma mulher ativa, saudável. Era muito importante para a estabilidade da família. Estava sempre preocupada e dedicada, principalmente às filhas. Era o pilar da família. Fazia o que podia para ajudar os irmãos”, afirmou Marisela, em audiência da Corte IDH realizada excepcionalmente na Cidade da Guatemala.

Aos juízes, ela afirmou recordar das visitas de enfermeiras realizadas à casa do bairro de extrema pobreza em que viviam Celia, o marido, as filhas e os avós maternos em Piura, no norte do Peru.

“Me lembrava o movimento das campanhas de vacinação, quando os profissionais de saúde iam de casa em casa buscando crianças para vacinar. Até que percebi que as visitas eram para minha mãe. Ela se sentava com eles, conversavam, tentavam convencê-la, mas ela não parecia aceitar. Chegavam insistentemente, em várias ocasiões”, disse Marisela.

Um dia, contou, ouviu uma conversa da mãe com uma amiga que dizia ter sido informada que se tratava de um procedimento simples, “rápido como extrair um dente”. Celia foi ao posto de saúde no dia seguinte.

“No dia ela estava muito apressada, adiantando as tarefas da casa. Nós fomos para a escola e ela ficou se arrumando. Seriam poucas horas fora. Mas ela não voltou”, afirmou.

Familiares começaram a buscar notícias, e a única informação recebida foi a de que tinha havido uma complicação na cirurgia. No mesmo dia, outras 14 mulheres teriam sido esterilizadas no mesmo posto médico.

Celia sofreu uma parada respiratória durante o procedimento e não havia oxigênio no posto para atendê-la. Ela teve de ser levada de emergência ao hospital de uma cidade vizinha e ficou 19 dias internada em cuidados intensivos, sem direito a visitas, disse Marisela.

“Depois de 19 dias ela faleceu, sem nenhuma explicação correta nem concreta sobre os motivos. Isso nos afetou muito. A família inteira desmoronou”, contou.

Eles denunciaram o caso, mas, segundo Marisela, a investigação não foi adiante, e o caso acabou arquivado. Perguntada na audiência sobre o que esperava com a chegada do caso à Corte Interamericana, Marisela disse:

“Já se passaram quase três décadas. Esperamos que se reconheça a verdade do que aconteceu. E que seja feita justiça, que seja aberta uma investigação real, com todos os dados disponíveis. E que o Estado reconheça e repare a afetação que se produziu em todos os aspectos da nossa vida”.

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‘Guerra reprodutiva’

O Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar foi implementado entre 1996 e 2000 pelo governo Fujimori. Vários organismos internacionais denunciaram que o programa violava múltiplos direitos das mulheres, principalmente indígenas, rurais e de recursos econômicos escassos, envolvendo esterilizações sem consentimento e o estabelecimento de metas para profissionais de saúde realizarem esses procedimentos.

Após a denúncia da família de Celia, outras denúncias vieram à tona. O caso de Celia foi considerado de grave violação aos direitos humanos, e o processo foi reaberto. Porém, segue sem avanços.

Na audiência, a perita e antropóloga Kimberly Theidon afirmou que o ocorrido com Celia remete a uma política estatal de esterilização forçada com viés discriminatório, organizada e dirigida a mulheres rurais, indígenas, analfabetas e pobres em idade reprodutiva.

“A evidência é contundente”, afirmou. “(Os responsáveis pelo programa) achavam que essas mulheres não tinham direito a tomar decisões sobre sua fertilidade, nem exercer autonomia sobre seus corpos. Com as laqueaduras, alteraram corpos, vidas e formas de vida”.

A antropóloga trabalhou em comunidades rurais do Peru à época e afirmou que o programa fazia parte de uma política estatal de guerra contra a pobreza que culpava os mais pobres pelos problemas de superpopulação, ignorando toda uma discussão sobre o acesso desigual a recursos. Além disso, formava uma estratégia de frear focos insurgentes em meio a um contexto de conflito armado no país.

Segundo a perita, muitas vezes as visitas realizadas nas comunidades vulneráveis eram acompanhadas por integrantes das Forças Armadas. Além disso, eram realizadas feiras que ofereciam alimentos às famílias em troca das cirurgias de ligadura de trompas.

Estima-se que cerca de 300 mil mulheres e outros 30 mil homens tenham sido submetidos a esterilizações forçadas. Uma porcentagem mínima, afirmou a antropóloga, deu de fato seu consentimento prévio, livre e informado.

“Foi uma política executada com apoio das Forças Armadas, numa espécie de guerra reprodutiva”, disse.

Segundo a especialista, foi criada uma comissão de verdade e reconciliação para investigar as atrocidades e violações de direitos humanos ocorridas durante o conflito armado peruano.

“Mas, infelizmente, as investigações e os relatórios excluíram as mulheres vítimas de esterilizações forçadas, desconsiderando-as nos processos de reparação. E as esterilizações até hoje permanecem impunes”, afirmou.

Estereótipos de gênero

Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Estado peruano é responsável pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, ao consentimento livre e informado, à autonomia e saúde reprodutiva e à igualdade e não discriminação.

“A Comissão Interamericana considera que o Estado não cumpriu com sua obrigação de realizar uma adequada regulamentação e fiscalização do programa nacional, que foi implementado com aplicação de estereótipos de gênero e critérios discriminatórios sobre mulheres e sob interseccionalidade com outros critérios de vulnerabilidade”, afirmaram representantes da CIDH à Corte.

Para a Comissão, o Estado não garantiu requisitos e condições necessárias para que Célia pudesse dar seu consentimento livre e informado devido à falta de informação clara sobre o procedimento e suas consequências por parte dos profissionais de saúde.

Além disso, o local onde foi realizado o procedimento não contava com os meios necessários para realizá-lo com segurança, o que atrasou o atendimento de Celia e a levou à morte.

Configurando ainda um caso de violência contra a mulher, acrescentaram representantes da CIDH, o Estado peruano violou os direitos à garantia judicial e proteção judicial, já que a investigação do caso foi arquivada em várias ocasiões, e o processo continua aberto sem punição dos responsáveis, em total impunidade.

O Estado peruano, por sua vez, negou que o local de realização da laqueadura de Celia carecia de condições mínimas necessárias para realizar o procedimento. Afirmou ainda que a cirurgia foi realizada com o consentimento de Celia, que teria assinado um documento médico concordando com a cirurgia. O documento não foi entregue à Corte.

As partes envolvidas no caso têm até o dia 23 de junho para enviar suas alegações finais por escrito. Depois, os juízes emitirão a sentença.