O debate sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre motoristas e entregadores de aplicativos e as plataformas digitais tem ganhado novos contornos enquanto aguarda definição no Supremo Tribunal Federal (STF). O impasse tem alimentado novas ideias no Congresso – onde uma comissão especial da Câmara dos Deputados debate um projeto de regulamentação do trabalho por aplicativo (PLP 152/2025).
No Supremo, o julgamento do Recurso Extraordinário 1.446.336 (Tema 1.291) está pautado para 1º de outubro. A expectativa é que a Corte dê a palavra final sobre a natureza jurídica da relação de profissionais com as plataformas.
Enquanto isso, em meio às discussões no Congresso, o presidente da Comissão Especial sobre Regulamentação dos Trabalhadores por App, deputado federal Joaquim Passarinho (PL-PA), aventou uma abordagem alternativa.
Em entrevista à TV Câmara, o deputado levantou a possibilidade da regulamentação facultar ao trabalhador a escolha do regime jurídico para ditar sua relação com a plataforma. “Nós podemos oferecer àquele cidadão dois ou três modelos de como ele pode ter essa relação com a plataforma. Até isso nós já estamos pensando: poder oferecer não só um modelo, mas alguns modelos para que o trabalhador de plataforma possa escolher”, comentou.
Uma ideia semelhante foi mencionada pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, que defendeu em entrevista a criação de um “terceiro gênero” à disposição dos trabalhadores, além do enquadramento como autônomo ou empregado.
“Por que não pode ter os três modelos? Ele escolhe, e no momento que ele escolher um regime, esse regime fixa e não vai haver reclamação, a não ser que você descumpra aquilo que está dentro do regime dele”, afirmou.
Na prática, a viabilidade dessa alternativa é incerta, já que um dos modelos pode gerar efeitos negativos para esse ecossistema de mercado, consumo, trabalho e renda. Estudos mostram que, caso a opção do Legislativo ou do Judiciário seja pelo vínculo empregatício, cerca de metade desses profissionais poderia ser excluído de suas ocupações e a queda na renda dos que permanecessem seria estimada em pelo menos 30%.
Outra questão, como aponta Mariana Ronco, sócia de Trabalhista do Martinelli Advogados, é a complexidade envolvida para que uma mesma empresa mantenha sua atividade econômica enquadrando, dentro de uma mesma operação, modelos com premissas de organização do trabalho distintas. “O desafio é a gestão desses trabalhadores, que vai trazer custos para as empresas”, diz. “E quanto mais engessada for essa terceira via, mais complicada tende a ser a gestão de tudo isso”.
Mariana também alerta para os riscos de uma nova legislação, caso o tema seja tocado exclusivamente pelo Congresso. “Vejo com bons olhos a disposição do Poder Judiciário em entender diferentes situações de trabalho. Se a pauta ficar só no Legislativo, a insegurança jurídica pode permanecer, a depender de interpretações, a exemplo do que aconteceu com a reforma trabalhista de 2017”.
O setor em números
O tema ganha relevância conforme o impacto dessas atividades aumenta em escala na economia brasileira. Dados mais recentes do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), coletados em 2024, apontam que 2,2 milhões de pessoas atuam como motoristas ou entregadores de aplicativos no Brasil, um aumento de 35% e 18%, respectivamente, em relação a 2022.
A pesquisa apontou ainda uma renda média líquida entre R$ 3.083 e R$ 4.400 para motoristas e entre R$ 2.669 e R$ 3.581 para entregadores, considerando jornada semanal de 40 horas. Os valores superam tanto o salário mínimo quanto a remuneração média do mercado para trabalhadores do setor de serviços com ensino médio completo, nível de escolaridade predominante no segmento.
Uma das principais vantagens para profissionais é a flexibilidade. “Quando abordamos os grupos focais, essa flexibilidade ganha forma. Estamos falando de uma pessoa que pode pegar o filho na escola, por exemplo, compor o dia dela em função das dinâmicas da rotina. É uma flexibilidade que dificilmente encontraria em outras ocupações com o mesmo nível de escolaridade ou qualificação”, explicou Victor Calil, coordenador da pesquisa, em evento na Casa JOTA pelo lançamento da pesquisa.
O levantamento mostra ainda que muitos veem o trabalho como complemento de renda: 42% dos motoristas e 46% dos entregadores, em 2024, também exerceram outra atividade remunerada. Apesar disso, a maioria não pretende deixar os aplicativos.
No campo da previdência, 53% dos motoristas e 57% dos entregadores contribuem para o sistema – parte deles como empregados formais em outra ocupação e outros como Microempreendedores Individuais (MEI). A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), defendeu, em carta de princípios, uma regulamentação que assegure a inclusão previdenciária sem descaracterizar o modelo de negócios das plataformas.
Impactos em potencial
Com base no perfil desses trabalhadores, um estudo da consultoria Ecoa avaliou os efeitos de submeter motoristas e entregadores ao regime celetista. Os resultados projetam redução de até 30% da massa de renda dos motoristas e 50% dos entregadores, além da exclusão de cerca de 1,3 milhão de profissionais do setor. Isso representaria queda de 82% nas oportunidades de entregadores e de 52% entre motoristas.
Para os consumidores, os preços poderiam subir até 33% em viagens e entregas. Já para a economia, a projeção é de retração de R$ 45,9 bilhões no PIB, R$ 14,3 bilhões a menos em salários e uma queda de R$ 2,7 bilhões na arrecadação de tributos sobre o consumo.
Para Cláudia Viegas, sócia da Ecoa, os números ajudam a afastar o debate do campo das opiniões. “A discussão precisa ser aterrada no contexto atual, mensurando quem de fato seria beneficiado ou prejudicado por determinada política”, explicou ela na Casa JOTA.
Para a economista, o desafio está em conciliar a proteção social com a realidade do setor. “É normal que a economia avance mais rápido que a legislação. O que temos é uma nomenclatura nova, que não cabe simplesmente nas caixinhas da CLT ou da terceirização. Ninguém se furta a discutir melhorias, mas elas precisam estar conectadas à realidade, sob risco de retrocesso”, concluiu.
Para Mariana Ronco, por vezes o debate fica focado na proteção, mesmo não sendo o que realmente os profissionais buscam. “Além de não ser exatamente o que eles querem, o aumento de custos por aumento na proteção pode inviabilizar o negócio. E quanto mais cara for a relação de trabalho, mais a gente abre espaço para novas relações de trabalho informais que não tenham custo.”
Entre a busca por maior proteção social e a preservação da flexibilidade que caracteriza a atividade, o debate segue aberto e reforça a urgência de uma regulamentação capaz de reduzir a insegurança jurídica sem prejudicar o modelo que consolidou os aplicativos como parte da rotina de milhões de brasileiros.
“A regulamentação me parece o melhor caminho possível. Ter algum tipo de norma é essencial, embora eu não me arrisque a dizer qual seria a ideal, porque há muitas vozes nesse debate”, afirma Calil. “Só assim essas ocupações podem encontrar um lugar seguro, tanto do ponto de vista da previdência social quanto da oferta de serviços, considerando também a demanda existente por parte dos usuários”, finaliza a economista Cláudia Viegas.