Imagine a seguinte situação: você mora numa vizinhança agradável, toda formada por casas bem cuidadas. Certo dia, alguém se muda para a residência ao lado da sua. A pessoa não tem muito apreço pelo próprio imóvel e o quintal dela começa a se assemelhar a uma pequena selva: o mato cresce mais do que a inflação argentina; ratos, baratas e escorpiões passam a chamar de lar aquele quintal de outrora e resolvem explorar, com frequência cada vez maior, o jardim da sua casa.
Passados alguns dias, não é raro você encontrar primos anabolizados do camundongo Jerry fazendo excursões pela grama aparada do seu quintal, ou uma comunidade de Donas Baratinhas – seguidas por ariscos e venenosos escorpiões – tentando fazer dos seus latões de lixo um shopping center. A casa malcuidada está causando prejuízos a você e provavelmente a outras pessoas da vizinhança.
Nosso Código Civil, em seu art. 1.277, prevê que, num caso assim, você tem direito a fazer cessar a ameaça à sua saúde, provocada pelo descuido com o imóvel ao lado. Você pode solicitar ao(à) proprietário(a) que limpe o terreno e extermine os roedores, insetos e animais peçonhentos que vivem ali. Em caso de recusa, você tem a opção de entrar com uma ação judicial, obrigando-o(a) a tomar essas providências.
Ou seja, o(a) dono(a) da casa vizinha pode até deixá-la virar ruína por desmazelo, mas só até o ponto em que isso não interfira com a vida das demais pessoas das redondezas. O que fica dessa história é aparentemente óbvio e de bom senso: liberdade tem limite.
Contudo, na visão dos governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e de Santa Catarina, Jorginho Melo (PL), a liberdade parece ser ilimitada quando o assunto é vacinação infantil. Nos primeiros dias de fevereiro, ambos anunciaram que não exigirão a carteira vacinal de crianças que venham a se matricular em escolas estaduais[1].
Para ambos, deve-se respeitar a vontade dos estudantes em se vacinar ou não. Acrescente-se que o governador mineiro fez o anúncio ladeado pelo senador Cleitinho (Republicanos-MG) e pelo deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), os quais apoiaram sua decisão. Por sua vez, o mandatário catarinense foi seguido por sete prefeitos do estado, os quais desobrigaram a vacinação contra a Covid-19 por meio de decretos municipais[2].
Na prática, o que esses dois chefes de Executivo estadual estão dizendo é que os pais – pois alunos e alunas não têm voz nesses casos – têm a faculdade de decidir se seus filhos receberão ou não vacinas contra doenças como a poliomielite, o sarampo e a meningite.
Coincidentemente, essas manifestações acontecem após o governo federal incluir, para crianças de 6 meses até menos de 5 anos de idade[3], a vacina contra Covid-19 no Plano Nacional de Imunização (PNI).
A atitude desses administradores e parlamentares empodera pais regidos pela mentalidade “meus filhos, minhas regras”. Isto é, os pais podem fazer o que acharem melhor para seus filhos, sem qualquer limitação ou consideração para com suas crianças e a coletividade.
Guardadas as devidas proporções, há similaridades nesse pensamento e no de quem possuía a hipotética casa malcuidada.
Porém, mesmo o(a) proprietário(a) da casa fictícia não pode fazer dela o que quiser. Se a gestão do imóvel ameaça o bem-estar comunitário, o(a) dono(a) pode ser obrigado(a) a cuidar adequadamente da edificação.
E se isso vale para uma construção, estrutura inanimada e substituível, o que dizer da vida humana, bem inestimável? A opção de uma família em não vacinar seus filhos é um perigo para eles e para outro(a)s aluno(a)s que frequentam o mesmo estabelecimento de ensino. Não se trata de “meus filhos, minhas regras”, mas de “crianças em comunidade, regras da comunidade”.
Depois do flagelo causado pela pandemia da Covid-19 no Brasil, espanta que alguém ainda tenha receio de se vacinar contra qualquer doença. Foram atitudes anticientíficas e negacionistas que provocaram o morticínio de mais de 700 mil pessoas em nosso país em função dessa doença.
Nosso programa de imunizações, com mais 50 anos de existência, é admirado em todo o mundo. Fomos capazes de erradicar a paralisia infantil e outros males, em função de uma estrutura muito bem azeitada de produção, compra, conservação e distribuição de imunizantes. Além disso, a construção de uma cultura de adesão às vacinas foi crucial ao sucesso dessa iniciativa.
Nos últimos tempos, contudo, a desinformação tem invadido a Internet, deixando sob suspeita medicamentos seguros e eficazes contra doenças preveníveis, mas por vezes incuráveis. Essa desconfiança levou parte de nossa população a abandonar o uso de vacinas, diminuindo ano a ano a imunização do povo brasileiro. Somente em 2023 houve a reversão dessa tendência[4], mas ainda não atingimos a meta de 90% de cobertura em todos os grupos-alvo[5].
É importante lembrar que um baixo índice de vacinação torna o país vulnerável ao ressurgimento de doenças já eliminadas de nossa realidade. Isso aconteceu com o sarampo, doença da qual o país havia se livrado em 2016, mas que ressurgiu em 2018[6].
O que os governadores de Minas Gerais e Santa Catarina fazem neste mês de carnaval é atravessar o samba bem ritmado do Programa Nacional de Imunizações. Primeiro, porque suas falas como autoridades públicas desestimulam os cidadãos de seus estados a vacinarem seus filhos. Segundo, porque eles passam a ideia de que mães e pais têm a opção de não vacinar suas crianças, e isso está incorreto.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990, em seu art. 14, § 1º, obriga a vacinação de crianças e adolescentes quando recomendado pelas autoridades sanitárias. Não se trata de uma questão de escolha, mas de dever parental. Ao não vacinar suas crianças, mães e pais estão descumprindo a lei, podendo ser sancionados por isso.
Por sinal, o Ministério Público de Santa Catarina já se manifestou contrariamente aos decretos municipais que desobrigam a vacinação contra covid-19, por entendê-los inconstitucionais[7].
Note-se também que o governo federal deve iniciar ainda em fevereiro a imunização contra a dengue, tendo por público-alvo jovens entre 10 e 14 anos de idade em 521 municípios brasileiros[8]. Num ano em que o país já registrou perto de 220 mil casos da doença (o triplo de 2023) e 15 óbitos só em janeiro[9], não vacinar as pessoas pode trazer consequências desastrosas à população como um todo.
Autoridades públicas eleitas, não importa a esfera que ocupem – federal, estadual ou municipal – devem respeitar o texto constitucional, o qual, aliás, estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado em seu art. 196.
Discursos de ocupantes de cargos eletivos que contrariem essa premissa, pondo em risco a saúde pública, colidem frontal e brutalmente com as obrigações por eles assumidas quando da investidura em seus cargos. Afinal, todos juraram defender a constituição no momento de sua posse.
Nesse contexto, falar em liberdade vacinal para crianças, é um desserviço à nação. É alardear um direito inexistente no Brasil. Vacina incluída no calendário de imunização não é combo de lanchonete, que os pais decidem se vão ou não dar para os filhos, é imposição legal a ser cumprida e, acima de tudo, é um ato de cuidado e amor para com todas as famílias do país.
Os chefes de Executivo em Minas e Santa Catarina, além dos dois parlamentares mineiros, vergonhosamente parecem ter se esquecido desse dever. Nós, cidadãs e cidadãos do Brasil, não podemos cometer esse mesmo erro, sob pena de pagarmos com o sofrimento e a vida de pessoas queridas. Lutemos por um futuro melhor para nossas famílias; lutemos pela vacinação de nossas crianças. É o mínimo que elas merecem.
[1] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/02/05/bolsonaristas-jorginho-mello-e-zema-contrariam-lula-e-naoexigem-carteira-de-vacinacao-para-matricula-escolar.html. Acesso em 06/02/2024.
[2] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/02/05/bolsonaristas-jorginho-mello-e-zema-contrariam-lula-e-nao-exigem-carteira-de-vacinacao-para-matricula-escolar.ghtml. Acesso em 06/02/2024.
[3] https://www.gov.br/saude/pt-br/vacinacao/informes-e-notas-tecnicas/nota-tecnica-no-118-2023-cgici-dpni-svsa-ms. Acesso em 06/02/2024.
[4] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2023/12/brasil-reverte-tendencia-de-queda-nas-coberturas-vacinais-e-oito-imunizantes-do-calendario-infantil-registram-alta-em-2023. Acesso em 06/02/2024.
[5] https://aps.saude.gov.br/noticia/20657. Acesso em 06/02/2024.
[6] https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2023/novembro/brasil-sai-da-condicao-de-pais-endemico-para-o sarampo. Acesso em 06/02/2024.
[7] https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/02/05/bolsonaristas-jorginho-mello-e-zema-contrariam-lula-e-naoexigem-carteira-de-vacinacao-para-matricula-escolar.html. Acesso em 06/02/2024.
[8] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-02/fabricante-dara-prioridade-da-vacina-contra-dengue-ao-sus. Acesso em 06/02/2024.
[9] https://g1.globo.com/saude/noticia/2024/01/30/numero-de-casos-de-dengue-em-2024-e-quase-o-triplo-doregistrado-no-mesmo-periodo-do-ano-passado.ghtml. Acesso em 06/02/2024.