Utilidade pública dos aterros sanitários: o que está em jogo na pauta do STF

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Fim do recesso judicial e o STF já tem data marcada para o julgamento de um dos assuntos mais importantes do momento na pauta ambiental: como fica a gestão dos resíduos sólidos na discussão do Código Florestal (Lei Federal 12.651/2012)?

Nesta sexta-feira (2), o plenário da corte irá retomar o julgamento dos Embargos de Declaração, no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade 42 de parte dos dispositivos do Código Florestal, dentre eles se a gestão de resíduos sólidos pode ser considerada utilidade pública para fins de intervenção e área de preservação permanente (APP).

Contextualizando um pouco o histórico do julgamento, essa ação, conjuntamente com outras Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade[1] do Código Florestal, foram propostas em 2013 e se estenderam até 2021, quando foram definitivamente julgadas, com a validação da maioria dos dispositivos.

Apesar da lucidez e razoabilidade no julgamento geral de Código Florestal, sob relatoria do ministro Luiz Fux, o tema envolvendo a gestão de resíduos se destacou. Segundo o voto do relator, a “gestão de resíduos” não seria classificada como de utilidade pública, passível de intervenção em APP, devendo ser excluído do respectivo art. 3º, VIII, b.

A sua exclusão foi fundamentada na tese de que a gestão de resíduos é uma atividade que pode ser prejudicial ao meio ambiente, além do fato de que há viabilidade de alternativa locacional – isto é, podem ser instalados em locais diversos, fora de APP. Os ministros Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli e Celso de Mello seguiram o voto do relator.

Até o momento há apenas dois votos de divergência de Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, sendo que o ministro Gilmar foi cirúrgico ao corretamente afirmar que não há antinomia entre a gestão de resíduos e a proteção ambiental. Ao contrário, indicou que há situações, inclusive, que a gestão de resíduos sólidos poderá ser alocada em área protegida, sem qualquer decréscimo da proteção ambiental, sem contar que é o licenciamento ambiental o instrumento de controle de qualquer atividade potencialmente poluidora, o que não se limita à gestão de resíduos.

Após pedido de vista pelo ministro Luís Roberto Barroso, o julgamento foi suspenso.

O Partido Progressista e a Advocacia Geral da União (AGU) opuseram Embargos de Declaração para esclarecer que a gestão de resíduos sólidos se refere às atividades regulares, que não se confundem com lixões, os quais não são permitidos – nem em APP ou qualquer local, inclusive expressamente assim previsto pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) que busca sua completa eliminação.

Agora, com o retorno à pauta, haverá nova oportunidade para que o STF reveja os votos para atribuir a interpretação merecida quanto ao enquadramento da gestão de resíduos como utilidade pública.

Ora, não há dúvida quanto à relevância da gestão adequada de resíduos sólidos para a sociedade, não apenas nos aspectos sociais, econômicos e de saúde pública, como também ambiental e climático.

De acordo com o relatório “Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil”, da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), em 2022 foram gerados, no Brasil, aproximadamente 81,8 milhões de toneladas de resíduos, o que corresponde a 224 mil toneladas diárias, sendo apenas 60% direcionado para destinação final adequada.

Esse volume descartado de forma inadequada causa danos ambientais significativos, como a perda de biodiversidade, prejuízos à qualidade de solo e dos recursos hídricos, contaminação, emissões e aumento de Gases de Efeito Estufa com impactos nas mudanças climáticas.

As pesquisas mostram que os oceanos recebem anualmente mais de 25 milhões de toneladas de resíduos, sendo que cerca de 80% têm origem nas cidades e correspondem ao lixo que é coletado e tem destinação inapropriada.

O mesmo ocorre para emissões de GEE, ao se destinar resíduos regularmente, poderia haver uma diminuição de 35% de emissões em relação ao cenário registrado em 2022.

Em relação à saúde pública, os dados são ainda mais alarmantes. Segundo o relatório “Saúde Desperdiçada – O caso dos Lixões” elaborado pela Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA) e pela Abrelpe, os custos com saúde decorrentes da manutenção de lixões são de cerca de R$ 370 milhões por ano, o que equivale a R$ 1,85 bilhão a cada cinco anos.

Não bastassem esses aspectos práticos – até então desconsiderados pelo STF –, tem-se que a avaliação comparativa das demais atividades consideradas de utilidade pública no Código Florestal evidencia que a declaração de inconstitucionalidade da expressão “gestão de resíduos” induz um tratamento, no mínimo, não isonômico em relação a essas atividades.

Vale lembrar que, dentre outras, as atividades de mineração, transporte, saneamento, energia, telecomunicações e radiodifusão são consideradas utilidade pública para fins de intervenção em APP.

E não se nega que todas essas atividades podem gerar impactos ambientais, o que é decorrência necessária do desenvolvimento socioeconômico. Mas é justamente por isso que esses empreendimentos são submetidos ao prévio processo de licenciamento ambiental e pelas respectivas avaliações de alternativa técnica locacional. Isto, é do ponto de vista de risco ambiental, não é a classificação quanto à utilidade pública em si, mas sim os controles ambientais que terão no desempenho de suas atividades.

Portanto, ao criar uma distinção para um único setor econômico, sem justificativa ou fundamento constitucional, ofende-se frontalmente ao princípio da isonomia.

O próprio ministro Fux ponderou sobre o tema por ocasião do julgamento principal, ao afirmar que a aplicação de regimes ambientais diferenciados, não pode depender de formalidades que nem a própria Constituição determinou. Ou seja, inexistindo qualquer critério constitucional para distinção dos aterros das demais atividade de utilidade pública, o STF não pode fazê-lo.

O ministro Toffoli também já teve oportunidade de avaliar os critérios para regimes diferenciados quando, no âmbito de julgamento de lei do Rio de Janeiro em matéria de consumo, afirmou que eventuais restrições para um setor econômico devem ser sustentadas por um parâmetro constitucionalmente legítimo, exigindo-se o ônus de justificação regulatória baseado em elementos empíricos que demonstrem a distinção (RE 1285904).

Nessa mesma linha, consequentemente, há também ofensa à segurança jurídica e livre iniciativa, na medida em que a declaração de inconstitucionalidade poderá criar uma restrição desproporcional aplicável para atividades há anos licenciadas, regulares e que representam diversos benefícios aos recursos naturais em razão da destinação ambientalmente adequada dos resíduos.

Portanto, espera-se que a pauta ambiental de 2024 seja iniciada no STF com louvor e, portanto, de forma justa e equilibrada. Essa é uma excelente oportunidade para que a Suprema Corte brasileira se manifeste de forma consistente, equânime e adequada aos princípios constitucionais e aos compromissos assumidos pelo país, inclusive internacionalmente.

[1] ADIs 4901, 4902, 4903 e 4937