Há diferentes mecanismos de proteção para a moda no âmbito da propriedade intelectual. Elementos de tal mercado podem ser protegidos pelos institutos do direito autoral, regulados pela Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998), ou por marcas, desenhos industriais ou patentes, regulados pela Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279/1996). Além disso, podem ser aplicáveis as normas relacionadas à vedação à concorrência desleal, também previstas na Lei da Propriedade Industrial.
A proteção por direito autoral se aplica a criações do espírito, e, na moda, pode recair sobre uma arte, como uma estampa, um desenho ou outra expressão artística, que é aplicada a uma peça, como uma roupa ou um acessório.
A proteção marcária usualmente depende de registro da marca junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e recai sobre sinais distintivos visualmente perceptíveis. As marcas podem ser nominativas (uma palavra ou um conjunto de palavras não estilizados), figurativas (um logotipo sem elementos textuais), mistas (um logotipo com elementos textuais, ou palavras estilizadas), tridimensionais (um formato de produto ou embalagem) ou de posição (um sinal aplicado em uma posição específica de um suporte), e consistem em sinais distintivos que identificam a origem e diferenciam o produto em que são apostas. Para que a marca seja objeto de proteção, e seu titular tenha direito de usá-la de forma exclusiva, ela deve ser registrada no INPI, havendo poucas exceções a tal regra.
Um desenho industrial consiste em uma forma ornamental ou um conjunto de linhas e cores aplicado a um produto, contanto que resulte em aspecto visual novo. Assim como marcas, desenhos industriais devem ser registrados no INPI, embora o processo de registro seja distinto.
Um item de moda — como uma bolsa, uma roupa, um sapato, acessório etc. — protegido por direitos de propriedade intelectual tem sua manufatura e comercialização mais controlada pelo titular dos direitos, principalmente, até o momento em que o item é colocado em circulação no mercado.
A doutrina da primeira venda
Após a colocação de um produto no mercado brasileiro pelo titular dos direitos de propriedade intelectual ou por algum terceiro com a sua autorização, usualmente, aplica-se a “doutrina da primeira venda”. Essa doutrina, também conhecida como “princípio de exaustão de direitos”, permite ao proprietário a revenda sem a necessidade de autorização do titular dos direitos de PI para tanto.
Em outras palavras, uma vez que a primeira venda do produto ocorre de maneira legítima, o detentor dos direitos não mais terá controle sobre a distribuição subsequente dessa peça específica. Caso assim não fosse, seria necessário obter autorização expressa dos titulares dos direitos para realizar qualquer venda posterior da peça adquirida, o que travaria o mercado e inviabilizaria a atividade econômica.
Por exemplo, uma pessoa compra uma bolsa da marca X na própria loja da marca no Brasil, que controla as condições e o preço do produto na loja. A partir da compra, quem adquiriu a bolsa passa a ter o direito de revendê-la livremente como bem entender, e pelo preço que bem entender. A empresa titular da marca X não consegue, via de regra, impedir essa revenda posterior.
A Lei de Propriedade Industrial prevê a doutrina da primeira venda ao tratar de marcas em seu artigo 132, inciso III, que determina que “o titular da marca não poderá: (…) impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento”. Para patentes e desenhos industriais, há previsão similar no artigo 43, inciso IV.
A Lei de Direitos Autorais, por sua vez, não é silente com relação à doutrina da primeira venda ou à exaustão de direitos, ou seja, não há um artigo legal que traga essa previsão, mas há precedentes que a reconhecem para livros adquiridos e outras obras protegidas por direitos autorais.
É possível verificar a aplicação da doutrina da primeira venda no mercado de second hand de itens de luxo (ou simplesmente de brechós de luxo), atividade lícita e que está cada vez mais em alta. Há diversas empresas que atuam como revendedores de itens de luxo ou intermediadoras de compra e venda de artigos de luxo e operam regularmente, sem a necessidade de obtenção de autorização das marcas dos produtos comercializados.
No entanto, há uma importante questão a ser observada – a doutrina da primeira venda se opera quando o produto em questão é comercializado em sua forma original. Quando o produto é materialmente alterado, e um produto distinto é recolocado no mercado, há controvérsias sobre a aplicação da doutrina, e o detentor dos direitos pode questionar tal ato.
Upcycling como exceção à doutrina da primeira venda
A alteração de um produto pode ocorrer de diferentes formas, e uma delas é por meio do chamado upcycling, que consiste em um processo de transformação ou reutilização de materiais com a finalidade de criar novos produtos.
Na moda, materiais como tecidos e acessórios são reutilizados, transformando peças antigas e usadas em peças novas. Por exemplo, botões de uma camisa antiga que são utilizados para a criação de uma pulseira, ou a barra de um vestido que é transformada em um lenço ou usada para customizar uma jaqueta.
No entanto, há discussões quando materiais protegidos por direitos de propriedade intelectual são utilizados para compor um novo produto, que passa a ser comercializado sem autorização dos titulares dos direitos originais. Nesse sentido, se nos botões da camisa antiga, ou na barra do vestido, houver um logo registrado como marca, ou se tais itens consistirem em obra protegida por direito autoral, o titular da marca ou do direito autoral pode questionar o uso dos materiais na criação e venda de novas peças.
Não há uma regulamentação específica sobre o tema, o qual vai sendo debatido na análise de casos concretos, mas, basicamente, prevalece o entendimento de que a doutrina da primeira venda não se aplica quando produtos protegidos por propriedade intelectual são significativamente alterados para a confecção de novos produtos.
A alteração não autorizada dos produtos pode resultar em violação de marca, bem como confusão com relação à origem e associação indevida perante os consumidores, configurando concorrência desleal e aproveitamento parasitário. Ainda, pode haver diluição da marca, na medida em que sua distintividade e reputação podem ser afetadas.
Precedentes judiciais no exterior
Há casos levados ao Judiciário dos Estados Unidos que discutem justamente essa questão, dos quais se pode destacar alguns. Um deles é o da Rolex contra a La Californienne, empresa que comercializa versões customizadas de relógios de luxo.
A Rolex ajuizou uma ação judicial na Califórnia (US District Court of the Central District of California) em 2019, alegando que a La Californienne estaria infringindo sua marca e se aproveitando de sua boa reputação e dos produtos de alta qualidade para gerar lucro. Ainda, alegou que a comercialização dos relógios customizados passa a impressão de que estes seriam autorizados, endossados ou aprovados pela Rolex, quando na verdade não são.
Abaixo, segue uma imagem de um modelo Rolex personalizado pela La Californienne (algumas alterações consistem na reaplicação do logo, troca da pulseira, dos ponteiros e do fundo do relógio):
Crédito: https://usa.watchpro.com/rolex-wins-counterfeiting-case-against-californian-customizer/
Nesse caso, foi acordado que a La Californienne não pode usar ou fazer referência a qualquer das marcas registradas da Rolex (incluindo o logo da coroa, o mostrador e a pulseira), tanto nos relógios quanto em qualquer canal de publicidade, a fim de evitar associação indevida e qualquer possibilidade de confusão, erro ou diluição da qualidade distintiva das marcas da Rolex. A La Californienne pode continuar a customização em relógios Rolex, desde que deixe claro que se trata de relógios vintage que foram modificados.
Outro caso judicial com discussão similar é o da Louis Vuitton contra a empresa Sandra Ling Designs Inc. e sua proprietária Sandra Ling (em conjunto, SLD), ajuizado, em 2021, no Texas (United States District Court Southern District of Texas). A SLD criava produtos com partes ou recortes de vestuários, bolsas e acessórios da marca Louis Vuitton, e os colocava à venda, sem autorização da marca. Segue um exemplo:
Crédito: https://usa.watchpro.com/rolex-wins-counterfeiting-case-against-californian-customizer/
A Louis Vuitton alegou que a SLD violou os seus direitos de propriedade intelectual e causou diluição de suas marcas ao utilizar o seu icônico logo em peças customizadas que não correspondem à estética e à qualidade dos produtos Louis Vuitton, podendo causar associação indevida e confusão perante o público consumidor.
A SLD se defendeu, alegando que sua atividade estaria protegida pela doutrina da primeira venda, e que os consumidores não se confundiriam, pois nas peças havia um aviso informando que não se tratava de um produto original da Louis Vuitton. Em contrapartida, a Louis Vuitton argumenta que a doutrina da primeira venda não se aplica ao presente caso, na medida em que os produtos originais foram alterados, reutilizados e, então, revendidos sem autorização para tais atos.
Neste caso, as partes chegaram a um acordo em que a SLD teve que cessar definitivamente o uso de partes ou recortes de peças da Louis Vuitton em suas atividades, bem como a respectiva comercialização, e ainda teve que arcar com o pagamento de uma multa.
Em outro caso, a Chanel processou a Shiver & Duke, em Nova Iorque (United States District Court, S.D. New York), no ano de 2021, pela venda de produtos de joalheria personalizados com botões com o seu icônico monograma “CC”, como o exemplo a seguir:
Crédito: https://mildredandmables.com/products/shiver-and-duke-earrings?variant=39798525821115
A Chanel alegou que a Shiver & Duke estaria lucrando de forma parasitária com a venda de acessórios como pulseiras, brincos e colares, contendo o logo da Chanel, sem qualquer autorização.
Alegou, ainda, que os acessórios modificados apresentam características similares e podem ser facilmente associados com os acessórios comercializados pela própria Chanel, além de serem ofertados por valores bem inferiores, caracterizando concorrência desleal.
Em suma, as alegações gravitam para os fatos de que, o uso de produtos ou partes de produtos para a confecção de outros produtos sem autorização da marca pode representar infração a direitos de propriedade intelectual (marcas e direitos autorais), configurar concorrência desleal, criar confusão no público consumidor com relação à origem do produto ou possível endosso da marca, bem como pode configurar aproveitamento parasitário do prestígio e valor da marca, que teve os produtos usados para a criação de novos produtos.
Neste caso, as partes chegaram a um acordo, cujos termos são confidenciais, para que a Shiver & Duke cesse o uso dos itens da Chanel em sua joalheria.
Tais precedentes evidenciam que a discussão envolvendo o upcycling de produtos é não só controversa, mas também bastante atual, o que se evidencia pelo fato de que grandes marcas do mundo da moda, nos últimos anos, têm travado batalhas judiciais para combater a prática.
Conclusão
Nos casos reportados, a discussão é bastante similar, e o entendimento que prevalece é o de que a doutrina da primeira venda ou exaustão de direitos de propriedade intelectual não se aplica na hipótese de o produto original ser materialmente alterado.
A venda de produtos modificados, bem como a referência às marcas originais em canais de venda ou em publicidade, podem causar prejuízos para os titulares dos direitos, como, associação indevida e confusão perante consumidores, violação de marca, concorrência desleal, entre outros.
Para empresas que realizam upcycling em suas atividades com o intuito de vender produtos modificados, uma forma de tentar diminuir os riscos de violação à propriedade intelectual seria o de divulgar ostensivamente que a empresa não possui relação com a marca, mas, com base na análise de casos concretos, mesmo essa conduta não seria suficiente para permitir a prática sem autorização da marca.
Quando se trata de revenda de peças protegidas por propriedade intelectual (marcas, direitos autorais), a opção mais segura consiste na preservação da peça adquirida em seu estado original, ou seja, na revenda pura e simples, e a modificação do produto, a depender da forma que for realizada, acarretará risco inerente de violação de propriedade intelectual.