Na atual conjuntura, a gestão de conflitos é uma pauta prioritária não só ao Judiciário, mas também às demais esferas do poder (Legislativo e Executivo), bem como aos jurisdicionados e estudiosos do direito.[1]
O CPC vigente, ao adotar o modelo multiportas (art. 3º), estimulou a adoção de métodos alternativos de solução de conflitos, a exemplo da tentativa de autocomposição prévia ao ajuizamento da ação e a utilização de diversas plataformas online como consumidor.gov, Reclame Aqui, Acordo Fechado, AcordoNet, entre outras[2]. Mas não o tornou compulsório, como pressuposto ao exercício de acesso à jurisdição.[3]
Nessa perspectiva de incentivo aos meios alternativos de solução de conflitos, percebe-se atualmente uma certa tendência por parte do Judiciário de estabelecimento de um novo filtro prévio como pressuposto processual[4], tornando a demonstração do esgotamento da tentativa de autocomposição extrajudicial não uma faculdade, mas uma obrigatoriedade.
Além da tendência do Judiciário identificada em alguns julgados, orientações normativas, parcerias, entre outros, também tramita no Legislativo o PL 533/2019, de autoria do deputado federal Júlio Delgado, o qual tem por objetivo, justamente, alterar os artigos 17 e 491 do CPC, a fim de incluir no conceito de interesse processual a “resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor”. Segundo a sua justificação, o referido Projeto de Lei “pretende estabelecer na lei o conceito da pretensão resistida, que consiste na demonstração de que o autor da ação procurou resolver o conflito antes de demandar o Judiciário”.[5]
É perceptível que a Justiça multiportas e os meios alternativos de solução de conflitos são necessários e imprescindíveis na atual conjuntura. Contudo, faz-se necessária a análise da adequação, ou em não se tratar a tentativa de autocomposição prévia ao ajuizamento da ação, como uma obrigatoriedade, como pressuposto da ação, sob pena de extinção do processo, sem análise do mérito, por falta de interesse de agir.
Como esclarecem Hugo Malone e Dierle Nunes “a pretensão resistida apta a ser verificada não é a tentativa de conciliação, mas sim a violação ao direito operada no plano material”[6]. Assim, é preciso cautela para não se utilizar a tentativa prévia de conciliação, especialmente em se tratando de relação de consumo, como mera repressão de uma demanda e não uma efetiva prevenção de violação de direito.
Em se tratando de autocomposição, a voluntariedade daqueles indivíduos envolvidos apresenta-se como fator importante para o sucesso daquela tentativa de solução de um conflito. Caso contrário, estar-se-ia gerando com a obrigatoriedade mais uma barreira e apenas mais uma etapa para acesso ao Judiciário.
Conforme alerta Fernanda Tartuce, a autocomposição imposta acaba por perder sua legitimidade uma vez que “as partes não são propriamente estimuladas a compor seus conflitos, mas coagidas a tanto; essa situação, que pode ser denominada ‘pseudoautocomposiçãoXVI’ — ou, em um neologismo, ‘coerciliação’ — é altamente criticável”.[7]
A análise da aplicação dos meios alternativos de solução de conflito, a exemplo da autocomposição prévia e a possibilidade da exigência do esgotamento de tal via, como pressuposto para demandar em juízo, perpassa necessariamente pela garantia fundamental de acesso à Justiça, assegurado no art. 5º, XXXV da CF que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito”.
Maria Tereza A. Sadek pontua que “o direito de acesso à Justiça é o direito sem o qual nenhum dos demais se concretiza. Assim, a questão do acesso à Justiça é primordial para a efetivação de direitos. Consequentemente, qualquer impedimento no direito de acesso à Justiça provoca limitações ou mesmo impossibilita a efetivação da cidadania”.[8]
A percepção de acesso à Justiça há muito superou aquela visão formal do Estado Liberal em demandar em juízo. Desde os estudos de Cappelletti e Gart acerca das 3 ondas de acesso à Justiça, o acesso já era percebido para além de um direito social fundamental, mas “também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística”.[9]
Sob essa perspectiva, a duração razoável do processo, a celeridade, o assoberbamento do Judiciário, apontamentos da Justiça em números, a taxa de litigiosidade, entre outros fatores, não podem jamais servir como impeditivo ou restrição a garantia fundamental de acesso à Justiça, assegurado no art. 5º, XXXV da Constituição Federal.
Quanto à taxa de litigiosidade brasileira, rotineiramente taxada como elevada e causadora de malefícios como delongas no provimento jurisdicional e assoberbamento do Judiciário, torna-se oportuno esclarecer que, em estudos sobre o acesso à Justiça no mundo em 2019 (Global Insights on Access to Justice 2019) ficou caraterizado que a média de litigância no Brasil é menor que a média global. 10]
Não é possível analisar a duração razoável do processo e o acesso à jurisdição, apenas como estáticas de redução dos números e apontadores dos processos, e o tempo para que seja proferido o provimento jurisdicional. É preciso levar em consideração uma gama de outros aspectos, com vistas a assegurar a implementação dos direitos e garantias fundamentais.
Os meios alternativos para solução de conflitos são mais uma porta para prevenção e resolução dos conflitos e, certamente, devem ser estimulados diante das situações concretas. Não se mostra razoável, contudo, torná-los obrigatórios e coercitivos como pressuposto processual, uma vez que para muito além de desvirtuar a própria essência da autocomposição e comprometer a sua eficácia, como ato voluntário daqueles envolvidos, acabam por gerar uma elitização do acesso à Justiça, prestigiando os grandes litigantes, em nítido retrocesso ao processo democrático e direitos e garantias fundamentais, assegurados na Constituição.
[1] Nesse sentido também estudos de Nathaly Campitelli. (ROQUE, NATHALY CAMPITELLI. O DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA: MUITO ALÉM DA CELERIDADE PROCESSUAL. Revista Pensamento Jurídico – São Paulo – Vol. 15, Nº 1, jan./abr. 2021)
[2] Disponível em: www.consumidor.gov.br. Acesso em 15/11/2023; disponível em: www.reclameaqui.com.br. Acesso em 13/11/2023; disponível em www.acordofechado.com.br. Acesso em 11/11/2023.
[3] Nesse sentido: HILDEBRAND, Cecília Rodrigues Frutuoso. Acesso a Justiça e obrigatoriedade ou não de tentativa prévia de resolução de conflitos on-line. (ODR) nos conflitos de consumo. IN: MAIA, Benigna Araújo Teixeira, et all (coords). Acesso à justiça: um novo olhar a partir do Código de Processo Civil de 2015.Londrina, Paraná: Thoth, 2021, p.59-72.
[4] A título de exemplo: a) Orientação normativa nº 01/2020 do NUPEMEC do TJMG– “ Nas ações em que for admissível a autocomposição, a exigência de prévia comprovação da tentativa de negociação poderá ser considerada como condição para aferição do interesse processual, cabendo ao juiz suspender o feito, por prazo razoável, para que a parte comprove tal tentativa, sob pena de indeferimento da inicial ou extinção do feito sem resolução do mérito”. Tal nota técnica já fora anulada pelo CNJ; c) Projeto Solução Direta Consumidor – parceria do TJ do Rio Grande Sul visa esgotar previamente as via administrativas junto à plataforma consumidor.gov.br. Disponível em :www.tjrs.jus.br/site/processos/conciliacao/consumidor.html. Acesso em 15/11/2023
[5] Proposta do Projeto de Lei nº 533/2019:
Art. 1º. A Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, que estabelece o Código de Processo Civil, passa a vigorar acrescida da seguinte redação:
Art. 17. (…) 1º Em caso de direitos patrimoniais disponíveis, para haver interesse processual é necessário ficar evidenciada a resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor.
2º Tratando-se de ação decorrente da relação de consumo, a resistência mencionada no § 1º poderá ser demonstrada pela comprovação de tentativa extrajudicial de satisfação da pretensão do autor diretamente com o réu, ou junto aos órgãos integrantes da Administração Pública ou do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, presencialmente ou pelos meios eletrônicos disponíveis.
Art. 491 (…) § 3º Na definição da extensão da obrigação, o juiz levará em consideração a efetiva resistência do réu em satisfazer a pretensão do autor, inclusive, no caso de direitos patrimoniais disponíveis, se o autor, por qualquer meio, buscou a conciliação antes de iniciar o processo judicial.
[6] MALONE, Hugo; NUNES, Dierle. Manual da Justiça Digital: compreendendo a Online Dispute Resolution e os Tribunais Online. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 259-260.
[7] TARTUCE, Fernanda. Desnecessidade de tentativas consensuais prévias para configuração do interesse de agir Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/356299/tentativas-consensuais-previas-para-configuracao-do-interesse-de-agir. Acesso: 17/11/2023.
[8] SADEK, Maria Tereza A. Efetividade de Direitos e Acesso à Justiça. In RENAULT, Sérgio Rabello e BOTTINI, Pierpaolo (coords.) Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 274.
[9] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p.13.
[10] Disponível em:WORLD ACCESS TO JUSTICE PROJECT 2019: https://worldjusticeproject.org/sites/default/files/documents/WJP-A2J-2019.pdf. Acesso em : 15/10/2023.