A polêmica em torno da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet tem dividido opiniões de forma acalorada. Muitos veem nela uma ameaça direta à liberdade na rede, uma espécie de “big brother” judicial. Mas será que essa leitura faz jus à complexidade do momento que vivemos?
Quando o Marco Civil foi criado, vivíamos numa internet bem diferente. As plataformas digitais eram vistas como simples “correios eletrônicos” – apenas entregavam as mensagens, sem interferir no conteúdo. O artigo 19 refletia essa visão: as empresas só precisavam agir depois de uma ordem judicial específica.
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Só que o mundo mudou. Hoje sabemos que essas plataformas não são neutras. Seus algoritmos decidem o que milhões de pessoas vão ver, priorizando conteúdos que geram mais cliques, compartilhamentos e tempo de tela. E muitas vezes, o que mais engaja são justamente as informações mais controversas, polarizantes ou até mesmo falsas.
Vivemos consequências reais dessa dinâmica: eleições influenciadas por campanhas de desinformação, pessoas atacadas por turbas digitais, teorias conspiratórias que levam à violência real. Diante disso, continuar tratando essas empresas como meras intermediárias soa quase ingênuo.
O que o STF propôs não é exatamente censura prévia no sentido clássico. É mais uma exigência de que essas gigantes tecnológicas assumam responsabilidades proporcionais ao seu poder de influência. Afinal, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades, não é mesmo?
Claro que há riscos. Ninguém quer que executivos de empresas privadas decidam unilateralmente o que pode ou não pode ser dito. Mas a questão é: eles já fazem isso todos os dias, através de seus algoritmos e políticas internas. A diferença é que agora haveria algum tipo de supervisão e critérios mais claros.
Alguns críticos fazem comparações dramáticas com regimes autoritários. Mas convenhamos: há uma diferença abissal entre um tribunal que opera sob escrutínio público e imprensa livre, e um sistema onde o governo controla tudo sem transparência ou accountability.
É interessante notar que a União Europeia, berço da democracia moderna, adotou uma abordagem similar com sua Lei de Serviços Digitais. Lá também se exige que as plataformas sejam mais proativas na moderação de conteúdo, com penalidades significativas para quem não cumpre as regras.
O argumento de que o STF estaria “legislando” também merece reflexão. Por anos, o Congresso teve a oportunidade de atualizar nossa legislação digital para os tempos atuais. Diante dessa lacuna, é natural que o Judiciário precise interpretar as normas existentes à luz dos novos desafios. Não é usurpação de poder; é o funcionamento normal dos freios e contrapesos democráticos. Afinal, o Poder Judiciário é acionado diariamente contra os abusos que ocorrem nas redes.
Vale lembrar que liberdade de expressão nunca foi um direito absoluto, nem mesmo nas democracias mais consolidadas. Sempre houve limites quando essa liberdade colide com outros direitos fundamentais – como a dignidade humana ou a própria preservação do sistema democrático.
A verdadeira questão não é se devemos regular, mas como fazer isso de forma inteligente e equilibrada. A decisão do STF, por mais imperfeita que seja, abre essa discussão necessária. Agora cabe ao Congresso, à sociedade civil e às próprias empresas construírem juntos um modelo que funcione.
O objetivo não deveria ser criar uma internet censurada, mas sim uma internet onde o debate público possa florescer sem ser contaminado por manipulação sistemática, desinformação organizada ou campanhas de ódio. Uma internet onde a diversidade de vozes seja protegida, não sufocada.
Talvez o que precisamos não seja menos regulação, mas regulação mais inteligente. Uma que proteja tanto a liberdade quanto a qualidade do nosso debate democrático. É um desafio complexo, mas que não podemos mais adiar.