Há alguns meses, a imprensa noticiou que o ministro da Educação, Camilo Santana, pretende enviar ao Congresso Nacional projeto de lei instituindo agência reguladora para a educação superior privada. A ideia é boa e merece ser discutida com profundidade.
Esta época geralmente nos leva a fazer balanços e adotar resoluções de ano novo, então talvez seja oportuno, com a conclusão deste primeiro ano da nova gestão no Ministério da Educação, contribuir com o desenvolvimento dessa proposta. O Brasil tem acúmulo suficiente – de erros e acertos – na regulação de setores econômicos, e vale a pena sistematizá-los para evitar que façamos resoluções de ano novo similares àquela que todos nós um dia já fizemos de “ir à academia cinco vezes por semana no ano que vem”.
A discussão sobre uma agência reguladora específica leva a uma questão mais complexa relativa ao modelo regulatório que se pretende para o ensino superior e o que se pode esperar dele. Na verdade, à discussão da função da regulação educacional. Qual deve ser sua finalidade? E qual o melhor desenho institucional para cumprir essa finalidade?
A discussão pode se beneficiar da experiência que o país tem nas agências reguladoras tradicionais. Na esteira das privatizações dos anos 1990, o Brasil se inspirou nas agências reguladoras independentes do mundo anglo-saxão para instituir autoridades responsáveis pela regulação de mercados de infraestrutura, como a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) ou a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), para ficarmos apenas com alguns exemplos.
Nesses casos, há uma disciplina de mercado a ser estabelecida em torno da chamada “essential facility”: a infraestrutura física que torna o serviço público (até então estatal) passível de ser prestado pelos particulares, em regime de maior ou menor concorrência (por exemplo: a infraestrutura de rede indispensável para telecomunicações, saneamento básico, energia elétrica, transporte rodoviário e ferroviário etc.). Nesse contexto, a regulação deve disciplinar a concorrência entre os players, os parâmetros técnicos do serviço prestado, as regras tarifárias e a modernização da infraestrutura. Em síntese, é a regulação que define o tamanho e a dinâmica do mercado.
Embora a regulação educacional seja de outra natureza, ela pode se beneficiar dos aprendizados das agências reguladoras nacionais. A literatura especializada costuma diferenciar modelos de maior e menor intervenção estatal: o primeiro, conhecido como “comando e controle”, caracteriza-se por um regramento granular da atividade regulada, associando uma sanção a cada infração técnica ou jurídica. O segundo designa mecanismos de autorregulação em que os próprios agentes definem standards mínimos de qualidade e (em tese) se supervisionam reciprocamente. Essas distinções são acadêmicas e, na prática, todo regime regulatório tende a combinar elementos dos dois modelos, adaptando-os às especificidades do setor regulado.
Além disso, algumas agências têm discutido novos marcos regulatórios[1], buscando algo próximo do chamado modelo de “regulação responsiva”: uma regulação mais efetiva e mais plástica à dinâmica do mercado. Essa é a primeira lição de nossa experiência com agências reguladoras. A segunda é a de que a regulação conforma o mercado. Nossos serviços de telecomunicações, transportes, energia elétrica e saneamento não são frutos de uma ordem econômica espontânea e anterior à própria regulação; ao contrário, eles derivam diretamente do regime jurídico definido pelas autoridades reguladoras. E a terceira e última lição é a de que o modelo regulatório é irrelevante se não houver enforcement.
Portanto, na discussão de uma agência reguladora para a educação, devemos evitar tanto o mito da autorregulação quanto o mito do controle estatal absoluto: a regulação deve ser responsiva – deve ser aderente ao mercado e responder às expectativas que a sociedade tem em relação ao setor. E, claro, deve haver supervisão e enforcement, para que o modelo regulatório preserve sua autoridade e construa sua legitimidade perante a sociedade.
O setor educacional tem uma trajetória peculiar: até meados dos anos 1990, não eram permitidas instituições de ensino com fins lucrativos. Elas existiam de fato, mas não de direito, valendo-se de burlas à forma jurídica. A Constituição Federal de 1988 assegurou, no art. 209, II, que “o ensino é livre à iniciativa privada”, devendo passar por avaliação de qualidade e regras de autorização pelo Poder Público.
A gestão Paulo Renato no MEC, no governo Fernando Henrique Cardoso, optou por expandir o mercado privado de forma acelerada, apoiado na capacidade de pagar mensalidades assegurada pelo Plano Real. Para tanto, a autonomia universitária foi definida em lei como a liberdade de criar cursos sem prévia autorização do MEC. Mais ainda: essa prerrogativa foi estendida, por decreto, aos centros universitários (uma figura intermediária entre universidades e faculdades). Com isso, a maior parte das instituições pode, ainda hoje, abrir cursos sem aval prévio do MEC (com exceção dos cursos de direito, medicina, psicologia, odontologia e enfermagem). Portanto, ao contrário do que se costuma dizer, a regulação não é exatamente um entrave à expansão do setor.
Problemas mais sérios parecem ser a incongruência normativa e um sistema de regulação que se tornou autorreferente, insulado de suas funções sociais. De fato, ao contrário dos setores de infraestrutura, na regulação educacional não há uma essential facility que determina o tamanho do mercado. O papel da regulação educacional é, portanto, assegurar qualidade no ensino superior. Esse é o principal desafio.
No atual Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), instituído pela Lei 10.861, de 14 de abril de 2004, a avaliação de qualidade de cursos e instituições é basicamente apoiada em visitas para avaliações in loco, realizadas por avaliadores ad hoc remunerados pelo Inep[2]. Mas imagine-se você, cara leitora, tendo dois ou três dias para avaliar um estabelecimento de ensino (atualmente, de forma virtual): você será conduzido por uma câmera de celular para avaliar todas as instalações físicas da faculdade como salas de aula, laboratórios, biblioteca e auditório. Dificilmente saberá dizer se os egressos dos cursos trabalham na área em que se formaram, se os professores têm condições de trabalho que permitem a pesquisa e o planejamento docente, ou se a direção está comprometida com a qualidade do ensino.
A discussão em torno de uma nova agência reguladora deve motivar a racionalização e o aperfeiçoamento de instrumentos e técnicas de avaliação da qualidade. Segundo o último Censo da Educação Superior de 2022, há 2.595 estabelecimentos de ensino superior, sendo que o Inep realizou mais de 8.000 visitas in loco. Ou seja: mais de 3 visitas anuais por estabelecimento de ensino, em média. Será que essa é a melhor forma de avaliar a qualidade? De que adianta essa máquina de visitas, se o MEC, há anos, não conduz processos administrativos de supervisão e aplicação de penalidades?
Talvez seja possível cruzar dados do Censo da Educação Superior com dados de ocupação profissional ou produção acadêmica (por exemplo, com o Caged, a Rais e o currículo Lattes) para construir indicadores de empregabilidade e produção acadêmica, reduzindo o peso da vistoria de edificações. E é preciso que haja enforcement dos padrões de qualidade definidos.
Em conclusão, a nova agência não deve ser apenas uma nova estrutura burocrática para executar o atual marco regulatório do setor, tal como ele está posto. A oportunidade pede uma discussão mais profunda do modelo regulatório. É preciso discutir qual o papel do setor privado na formação de recursos humanos no país, e definir, a partir daí, a função da regulação e quais os instrumentos regulatórios mais adequados para induzir a melhoria da qualidade do ensino.
[1] Como por exemplo a ANTT: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ultimas-noticias/antt-aprova-novo-marco-regulatorio-do-transporte-rodoviario-de-passageiros-e-permite-a-abertura-gradual-e-progressiva-do-trip
[2] O Enade substituiu o antigo Provão na avaliação do desempenho dos estudantes. Nesse ponto, há uma discussão acadêmica que questiona tomar o desempenho dos estudantes como indicador da qualidade do ensino.