Uma ADPF contra o STF? A estratégia da distorção constitucional

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A mais recente ofensiva da Câmara dos Deputados contra o Supremo Tribunal Federal traz à cena um perigoso uso político dos instrumentos do controle de constitucionalidade.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada pela Mesa da Câmara e pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), tenta anular decisão da 1ª Turma do STF que manteve a tramitação da denúncia contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) por sua suposta participação na trama que resultou nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

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Como amplamente noticiado, a Câmara havia aprovado, com 315 votos, a Resolução 18/2025, que suspendia integralmente a ação penal contra Ramagem. A composição unânime da 1ª Turma do STF, no entanto, limitou os efeitos dessa resolução, entendendo que a imunidade parlamentar formal só vale para crimes cometidos após a diplomação do deputado. Com base nisso, o tribunal decidiu que a denúncia deveria seguir adiante em relação aos fatos anteriores à posse, o que causou a reação da Câmara que lançou mão da ADPF.

Separação de poderes ou tentativa de reconfiguração das competências constitucionais?

Na ação apresentada ao STF, a presidência da Câmara sustenta que a decisão da 1ª Turma fere o princípio da separação de poderes, um dos pilares da Constituição. O argumento central é que, ao restringir os efeitos da resolução legislativa, o Supremo estaria desrespeitando a vontade expressa da maioria dos deputados federais.

A petição ainda afirma que a competência para definir o alcance da imunidade parlamentar formal cabe exclusivamente à Câmara — como se o Judiciário não pudesse exercer qualquer controle sobre isso, em desconsideração ao fato de que a separação de poderes, longe de interditar o controle recíproco, funda-se em mecanismos de freios e contrapesos que viabilizam a manutenção da ordem constitucional.

Sob o ponto de vista técnico-processual, a ADPF proposta pela Câmara encontra sérios óbices em sua admissibilidade. Conforme reiterada jurisprudência do STF, a ADPF não se presta ao controle de decisões judiciais, exceto em casos excepcionalíssimos em que o pronunciamento judicial configure, ele próprio, uma manifestação normativa com efeitos generalizados e abstratos — o que claramente não se aplica ao acórdão da 1ª Turma em sede de questão de ordem em ação penal.

Trata-se de uma leitura hiperbólica do §3º do art. 53 da Constituição, que trata da chamada “imunidade formal”. O texto constitucional é claro: a sustação de processos só se aplica a fatos ocorridos após a diplomação do parlamentar. Pretender ampliar essa garantia para crimes praticados antes mesmo do início do mandato é reescrever a Constituição sob medida para blindar um colega. Isso não é respeito à separação de poderes — é tentativa de autoproteção política.

Outro argumento da ADPF é que a decisão violaria a chamada “reserva de plenário” disposta no art. 97 do texto constitucional, segundo a qual apenas o plenário do STF poderia declarar a inconstitucionalidade de atos normativos. Mas o que houve ali não foi uma declaração de inconstitucionalidade da resolução da Câmara, e sim uma interpretação sobre seus efeitos diante da Constituição. Trata-se de um julgamento criminal concreto, cuja competência é do juízo natural de uma das turmas da corte, nos termos da alínea l) do inciso I do art. 9º do regimento interno do STF.

O STF já deixou claro, em diversas ocasiões, que a ADPF serve ao controle abstrato de normas e não serve para contestar, incidentalmente, decisões judiciais em casos concretos específicos. Criada para resolver impasses constitucionais graves, em que normas infraconstitucionais colidam com preceitos fundamentais da Carta, a ADPF não pode ser usada como uma espécie de “superrecurso” quando o Congresso não gosta de uma decisão judicial.

Nesse caso, a Câmara não aponta qualquer divergência relevante dentro da própria jurisprudência do STF sobre o alcance da imunidade parlamentar formal. Tampouco há qualquer demonstração de controvérsia judicial ampla ou persistente sobre o tema. O uso da ADPF, aqui, é uma manobra jurídica mal disfarçada — algo que o §1º do art. 4º da própria Lei 9.882/1999, que regulamenta o instituto, busca evitar ao estabelecer o princípio da subsidiariedade.

Um jogo político de alto risco

O que se vê é uma tentativa de transformar um caso criminal concreto em disputa institucional artificial. E, ao fazer isso, a Mesa da Câmara busca distorcer a imagem do STF, tentando emplacar uma narrativa de que o STF estaria “ultrapassando os limites” e se intrometendo em competências do Legislativo. Uma distorção perigosa, que alimenta o desgaste institucional.

No fundo, essa ADPF não é sobre garantias constitucionais dos membros do Legislativo nem sobre a integridade da separação de poderes. É sobre construir um discurso para parte da base parlamentar que hoje pressiona por anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. Usar o STF como antagonista serve para sinalizar apoio a esse grupo, ao mesmo tempo em que se tenta proteger um deputado aliado do processo penal por crimes graves contra a democracia.

Mas esse tipo de estratégia, que explora a linguagem da Constituição para fins políticos, corrói a legitimidade das instituições democráticas. Ao instrumentalizar um mecanismo de controle constitucional para investir contra uma decisão que não agradou a maioria, a Câmara ataca ao mesmo tempo o sistema de freios e contrapesos e desrespeita as regras do jogo democrático.

A Constituição de 1988 buscou garantir um ambiente institucional estável, em que os Poderes dialoguem, sim, mas com base no texto constitucional e no compromisso comum com a democracia. A tentativa de inflar conflitos artificiais entre Legislativo e Judiciário apenas atrasa a retomada da construção desse ambiente — e alimenta uma crise de confiança nas instituições que ninguém deveria desejar.