Um estado de coisas inconstitucional no RS

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As severas inundações causadas pelas chuvas, que já afetaram mais de 90% dos municípios gaúchos, em alguns casos destruindo cidades por inteiro, são resultado de um desastre climático nunca antes visto na história do país. Algumas áreas do Vale do Rio Pardo, na região central do Rio Grande do Sul, já sofriam com chuvas fortes e até mesmo de granizos nesta segunda-feira (27/5). O primeiro alerta vermelho foi emitido pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) em 29 de abril. Em seguida, fortes chuvas atingiram o Vale do Taquari.

A partir de 1º de maio, o governo estadual emitiu o Decreto 57.600/2024, reiterando estado de calamidade pública em todo o território gaúcho afetado pelos eventos climáticos. Entre 1º/5 e 2/5, sete cidades gaúchas estiveram ranqueadas entre as cidades com maior índice pluviométrico no planeta, segundo o instituto meteorológico internacional Ogimet. Toda essa água desceu para o Lago Guaíba, produzindo a maior enchente desde a enchente histórica de 1941.

O Lago Guaíba alcançou mais de 5,35 metros nos últimos dias, causando inundações em diversos bairros da capital Porto Alegre, deixando dezenas de milhares de desabrigados, além de milhares de pessoas sem acesso a energia elétrica ou água potável. O Aeroporto Salgado Filho, localizado em Porto Alegre e o mais importante do RS, foi completamente inundado e já estima que ficará fora de operação durante meses. Com isso, muitas vidas humanas e animais foram ceifadas em razão de descargas elétricas, afogamentos e deslizamentos de terras.

Propriedades urbanas e rurais, comércios e indústrias, fábricas, maquinários, rodovias públicas, patrimônios históricos, paisagísticos, culturais e ambientais foram destruídos. As principais entidades do setor produtivo do RS, como a Federação das Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), Federação do Comércio de Bens e Serviços do Estado do Rio Grande do Sul (Fecomércio-RS), dentre outras, estimam que as perdas para a atividade econômica e arrecadação do estado do RS já são de pelo menos R$ 40 bilhões em razão do impacto das enchentes.

Essa estimativa inicial, ao que tudo indica, revelar-se-á ainda maior para a iniciativa privada. Somente em perdas patrimoniais aos empresários, pequenos, médios e grandes, a Fecomércio-RS calcula preliminarmente um montante de R$ 10 bilhões, sendo R$ 8 bilhões referentes a comércio e serviços e já atingem pelo menos 10% das empresas gaúchas atingidas diretamente.

Muitas medidas já estão sendo anunciadas pelo governo federal relativamente a um suposto repasse de recursos ao estado do RS e municípios. Para a população, foi anunciado o chamado “Auxílio Reconstrução”, que prevê o pagamento de R$ 5.100 em parcela única por família desabrigada ou desalojada em função da tragédia climática. Acontece que essas e outras medidas realizadas até o momento não se mostram suficientes para endereçar a real extensão dos danos e, portanto, para desfazer o “estado de coisas inconstitucional”.

Com efeito, apesar de o Governo Federal ter realizado anúncio público de que teriam sido repassados R$ 51 bilhões para o RS, na verdade a destinação efetiva de recursos até o momento foi muito menor. Medidas como a antecipação de bolsa-família, abono salarial e antecipação da restituição de imposto de renda são evidentes paliativos que sequer arranham uma recuperação às vítimas das enchentes. Também não representam verdadeiro apoio financeiro, pois tais benefícios já seriam recebidos pelas pessoas de qualquer forma.

Principal exemplo disso é a Medida Provisória 1.218/2024, que abriu crédito extraordinário para que diversos órgãos do Governo Federal pudessem executar as ações necessárias no atendimento aos municípios afetados pelas enchentes. O crédito extraordinário, dentre suas medidas, prevê:  a) ampliação de garantias para linha de crédito para micro, pequenas e médias empresas das cidades atingidas e subvenção de juros do Pronampe; e b) ampliação de garantias para linha de crédito para agricultores familiares e médios produtores reais e subvenção de juros do Pronanf/Pronamp;

Nesse sentido, a MP 1216/2024 autorizou o Poder Executivo a conceder subvenção econômica de parte dos juros a mutuários no âmbito do Pronamp, Pronaf/Pronamp que tiveram perdas materiais nas áreas afetadas pelos eventos climáticos extremos ocorridos nos meses de abri e maio de 2024, no RS. Ocorre que tal benefício, além de enfocar sobre os juros e possuir limite de R$ 2 bilhões, valor que já se sabe insuficiente para lidar com a extensão dos danos, exclui empresas de médio e grande porte do benefício.

Para as empresas com faturamento até R$ 300 milhões, a MP 1216/2024 alterou, no seu art. 4º, a Lei 14.042/2020, que institui o Programa Emergencial de Acesso a Crédito (Peac), criado na época da pandemia, adicionando o art. 1º-B, que autoriza a concessão de “garantia, excepcionalmente, no âmbito do Peac, às operações de crédito com pessoas jurídicas de direito privado, empresários individuais e pessoas físicas produtores rurais que tiveram perdas materiais nas áreas afetadas pelos eventos climáticos extremos”.

A criação de garantia permite a alavancagem para pequenas empresas e a redução de juros, porém não compensa o prejuízo sofrido pelo setor produtivo do RS e, sendo assim, evidentemente, não enfrenta os danos econômicos advindos das enchentes.

O Programa Emergencial de Acesso ao Crédito Solidário para atendimento à catástrofe natural em Municípios do Estado do Rio Grande do Sul (Peac-FGI Crédito Solidário RS), também objeto da MP 1216/24, envolve recursos do Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), administrado pelo BNDES. O FGI, por sua vez, consiste em um fundo privado com recursos que servem de garantia para instituições financeiras concederem crédito às pequenas empresas – mas trata-se principalmente de recursos oriundos da União em apoio ao setor produtivo.

O Peac – FGI Crédito Solidário RS, todavia, não prevê qualquer medida compensatória, mas apenas permite à União servir de garantidora aos bancos que atuarão como veículos de financiamento para as empresas e, talvez, resolvam reduzir os juros. No final do dia, as empresas continuarão responsáveis pelos compromissos financeiros contraídos no âmbito dos programas federais PRONAMPE e PRONAF/PRONAMP.

Em outras palavras, a União está, através dessa medida, incentivando a concessão de crédito ao setor produtivo, porém não está realizando a necessária compensação econômica dos prejuízos causados pelas enchentes e inundações causados pela sua negligência constitucional em relação à prevenção a enchentes no Estado do RS.

Uma verdadeira compensação, que endereçaria de forma mais adequada a gravidade dos danos sofridos pelo Estado do RS, consistiria na destinação dos recursos alocados no Fundo Garantidor de Investimentos (FGI) e Fundo Garantidor de Operações (FGO) para o efetivo abatimento de débitos contraídos pelas empresas no âmbito do Pronampe, Pronaf/Pronamp, que tenham sofrido prejuízos com o desastre e possam comprovar tal fato.

Em 20 de maio, à medida que o Governo Federal começa a se dar conta da real magnitude da crise, foi publicada a Portaria MEMP 100/24, disciplinando as operações de garantia de financiamentos e empréstimos a mutuários que tiveram perdas materiais decorrentes do desastre ambiental e humanitário no RS e, em 23.05.2024, o Ministério do Empreendedorismo anunciou que 40% do valor dos empréstimos realizados via Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal seriam quitados pelo Governo Federal, que teria somente R$ 1 bilhão reservados a esse subsídio. Ora, o volume de recursos anunciado (R$ 1 bilhão) está muito aquém do volume de recursos necessários para compensar os prejuízos de reconstrução do setor produtivo.

Nos termos do art. 6º-D, da Lei 13.999/20, com redação dada pela MP 1216/24, foi autorizada à União aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no FGO, bem como R$ 20 bilhões ao FGI (art. 4º, Lei 14.042/20), para a cobertura de operações. Logo, se a medida que encontrou o Governo Federal para enfrentar o desastre é a promoção de linhas de crédito junto a instituições financeiras, então, considerando a magnitude da destruição, o Governo Federal deve atuar e assumir para si um custeio muito mais amplo dos débitos perante (todas) as instituições financeiras que atuam através de garantias do Peac FGI Crédito Solidário RS e PGO – pois a União possui responsabilidade e o dever de prestar socorro em casos de calamidades públicas. Bem como, todas as estimativas já apontam que os prejuízos ao setor produtivo são muito superiores a R$ 1 bilhão, sendo de, pelo menos, R$ 10 bilhões.

Milhares de empresários gaúchos, como já mencionado, de todos os setores, pequenos, médios e grandes, tiveram seus investimentos comprometidos diretamente pelas enchentes, com prejuízos que colocam em risco a existência de suas empresas. Lojas destruídas, estoques comprometidos, lavouras perdidas, fábricas alagadas e muitas outras com produção interrompida por falta de colaboradores – que, por sua vez, não puderam trabalhar pela necessidade de salvarem suas próprias vidas.

Em um cenário como esse, a concessão de crédito – com ou sem juros – não é solução adequada para suprir as perdas experimentadas por um setor produtivo que muito contribui para a arrecadação fiscal do Estado brasileiro e riqueza nacional. Muitos empreendedores gaúchos atingidos pelas cheias, e que tiveram suas lojas destruídas, já possuem financiamentos e dívidas para responder. Não há fôlego financeiro para assunção de mais compromissos financeiros, ainda que a juros subsidiados. A missão que muitos desses empresários enfrentam é a de reconstrução de seus negócios a partir do zero e não há justificativa para que não recebam apoio financeiro para a compensação dos prejuízos sofridos.

Então, já que o Governo Federal trabalha com medidas de subvenções econômicas para os microempresários e pequenos agricultores, através do PRONAMPE e PRONAF/PRONAMP, bem como do Auxílio Reconstrução para a população civil, medias similares também devem ser desenvolvidas para garantir a todas as empresas industriais, comerciais, e agrícolas afetadas, assegurando com isso à população civil condições mínimas de empregabilidade, livre iniciativa e bem-estar.

Daí se extrai a importância social de uma ampliação dos recursos destinados à quitação de financiamentos do PRONAMPE e PRONAF/PRONAMP para empresas atingidas pelas enchentes, bem como a estruturação de planos especiais de financiamento subsidiado também para as empresas médias e grandes afetadas pelas enchentes. Afinal, muitas cadeias de produção e distribuição, em que atuam as pequenas e médias empresas beneficiárias do PRONAMP e PRONAF/PRONAMP, dependem da saúde financeira de empresas maiores para sua sobrevivência. Disso depende a saúde financeira do setor produtivo gaúcho.

Há um importante plexo de responsabilidades que emanam da Constituição Federal e atribuem deveres efetivos de ação à União no sentido de evitar, minimizar e recuperar os danos causados pela catástrofe ambiental que acometeu o RS. Em primeiro lugar, deve-se citar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, definidos no art. 3º, incisos II e III da Constituição Federal: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…).II – garantir o desenvolvimento nacional;III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

Não há dúvidas de que o empobrecimento do RS, que sozinho respondeu por 6,5% do PIB nacional em 2023 e possui mais de 9% dos estabelecimentos industriais do País, afeta sobremaneira os objetivos republicanos de desenvolvimento nacional e erradicação da pobreza. A importância econômica do RS para a República Federativa do Brasil revela, portanto, que a sua completa desorganização produtiva compromete não apenas o desenvolvimento nacional, mas também coloca milhões de pessoas em risco iminente de empobrecimento.

Essa situação coloca em risco, portanto, a própria ordem econômica do Brasil, conforme disciplinada no art. 170 da Constituição Federal, com especial destaque aos incisos II a IX. Esses princípios constitucionais representam a estrutura econômica constitucionalmente protegida e socialmente valorizada segundo a Carta Maior e que se encontram diretamente comprometidos pelo desastre ambiental, humanitário e econômico enfrentado pelo RS.

Esse dever de socorro da União perante empresas e indivíduos do Estado do RS não é extraída somente de princípios constitucionais mais amplos e abstratos.  Afinal, a União tem o dever constitucional de “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”, conforme estabelece o art. 21, inciso XVIII da Constituição Federal.

Não por outro motivo o Supremo Tribunal Federal já reconheceu esse dever no julgamento da ACO 3.473/DF, sob relatoria da Min. Rosa Weber, em que, no contexto da calamidade pública gerada pela pandemia de COVID 19, foi a União condenada em obrigação de fazer atinente à prestação de suporte técnico e apoio financeiro para a expansão da rede de UTI no estado do Maranhão durante o período de emergência sanitária.

A atuação do STF na pandemia da Covid-19 não deixa dúvidas da existência de responsabilidade efetiva da União frente a situações de calamidades públicas. E ela precisa agir mais eficientemente do que está fazendo no RS. Não há dúvidas de que se trata de um estado de coisas inconstitucional que impõe atuação da União, sob pena da ação corretiva direta pelo Poder Judiciário.