Um alerta para a necessidade de redução da desigualdade

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Recentemente os economistas Joseph Stiglitz e Jayati Ghosh publicaram carta aberta ao secretário-geral das Nações Unidas e ao presidente do Banco Mundial por meio da qual conclamam a adoção de medidas e esforços mais contundentes para endereçar o crescimento da desigualdade extrema, além de questionar vários dos indicadores que vêm sendo utilizados para o atual diagnóstico do problema.

A carta foi igualmente assinada por vários importantes economistas, tais como Dani Rodrik, Gabriel Zucman, Mariana Mazzucato, Thomas Ferguson, Thomas Piketty, incluindo também economistas brasileiros, tais como Bruno De Conti e Julia Braga.

O ponto de partida da carta é que estamos vivendo um tempo de desigualdade econômica extraordinariamente alta e que extrema pobreza e extrema riqueza têm crescido firme e simultaneamente pela primeira vez em 25 anos. Entre 2019 e 2020, a desigualdade global cresceu mais rapidamente do que em qualquer outro tempo desde a Segunda Guerra Mundial. Os 10% mais ricos da população recebem agora 52% de da renda global, enquanto a metade mais pobre fica com apenas 8,5%. Ao passo em que bilhões de pessoas lutam para sobreviver, o número de bilionários dobrou na última década, o que mostra o fracasso da tributação e de outras medidas para tentar redistribuir minimamente a riqueza global.

A carta alerta para o fato de que desigualdade mina objetivos sociais e ambientais e que, no nível em que se encontra, apresenta efeito destrutivo na sociedade, corroendo a política, destruindo a confiança, prejudicando a prosperidade econômica coletiva e enfraquecendo o multilateralismo. A carta ainda adverte para o fato de que, sem redução na desigualdade, os objetivos gêmeos de acabar com a pobreza e prevenir a catástrofe climática entrarão em um claro conflito.

Os signatários reconhecem que, em 2015, os governos fizeram história ao adotarem o chamado SDG10 (Sustainable Development Goal to Reduce Inequalities). Todavia, por uma série de razões, incluindo a pandemia da Covid-19, tais metas acabaram sendo ignoradas e as desigualdades pioraram por todas as medidas.

Acresce que o SDG10 baseia-se no objetivo de prosperidade compartilhada do Banco Mundial (shared prosperity goal), que, segundo os signatários, não mede os aspectos centrais da desigualdade. Evidências mostram que um em cada cinco países que apresentaram comportamentos positivos no índice de prosperidade compartilhada enquanto aumentaram a sua desigualdade por outras medidas, como o famoso índice Palma ratio, sendo exemplos Mongólia, China e Vietnã.

Daí por que, mais do que um chamamento para a adoção de medidas concretas para a redução da desigualdade, a carta aberta dirige uma crítica contundente ao indicador atualmente utilizado, advertindo para o fato de que precisamos de melhores métricas para entender e resolver o problema.

Até por essa última razão, a carta aberta sob exame dialoga diretamente com o problema que eu tratei na última coluna, quando, a partir da obra de Sally Merry, tentei mostrar o quanto de subjetividade pode existir em análises quantitativas e o quanto indicadores podem ser falhos, equivocados ou enviesados.

Em um texto explicativo, Jayati Ghosh[1] descreve minuciosamente o problema dos indicadores, questionando o fato de o Banco Mundial não confiar nos índices tradicionalmente desenvolvidos para medir desigualdade – tais como o famoso coeficiente Gini e o Palma ratio – e adotar índice de prosperidade compartilhada, que diz respeito à necessidade de progressivamente conquistar e manter os 40% da base em uma faixa superior à média nacional. Ocorre que, para Ghosh, essa é uma ideia bizarra de desigualdade, uma vez que deixa os ricos fora da equação, razão pela qual acaba oferecendo estimativas enganosas sobre a extensão da desigualdade ou sobre os progressos na sua solução.

Por tal indicador, países podem obter melhoras mesmo com maior concentração de renda nos segmentos mais altos da população, hipótese em que se poderia verificar uma redistribuição da classe média para os mais pobres, mas não das classes mais ricas para os mais pobres. Acresce que os dados utilizados são extraídos de pesquisas sobre o consumo – que tendem a subestimar as rendas do topo, porque as famílias ricas são menos prováveis de responder com acurácia – e não incorporam outras importantes informações, como as tributárias.

Ghosh apresenta uma comparação entre os números para se ter uma ideia da disparidade de resultados: usando o índice de prosperidade compartilhada do Banco Mundial, os resultados atuais são: 52% dos países melhoraram, 11% não mudaram e 35% pioraram.

Já pelo índice de Gini, utilizando os dados do World Inequality Database, no período de 2015-2019, apenas 26% dos países melhoraram, 37% estagnaram e 36% pioraram. Dessa maneira, ¾ dos países não apresentaram qualquer progresso. Usando a Palma ratio, que captura as diferenças entre ricos e pobres, a diferença é ainda maior: também de acordo com os dados do World Inequality Database, apenas 12% dos países melhoraram, 35% estagnaram e 53% pioraram.

Em acréscimo, o último boletim World Inequality Report mostra que os 10% mais ricos da população agora detêm 76% de toda a riqueza global, enquanto a metade mais pobre virtualmente não tem nada. Na verdade, muitos estão devendo, portanto, com riqueza negativa (negative wealth).

Ademais, Ghosh aponta para o fato de que, embora um dos objetivos do SDG-10 seja o de reduzir desigualdade entre os países, nenhum índice ou indicador tem sido utilizado para esse tipo de mensuração, o que torna tal objetivo de difícil consecução.

A mencionada carta aberta vem, portanto, em importante momento, a fim de nos alertar para o fato de que a desigualdade está crescendo, provavelmente a patamares até então nunca vistos, razão pela qual se trata de problema urgente, até porque os seus efeitos não são apenas econômicos, mas também políticos e ambientais.

Em acréscimo, a carta aberta nos alerta para o problema das métricas, questionando o índice atualmente utilizado pelo Banco Mundial e conclamando a reflexão sobre métricas mais precisas não apenas para se comprovar a situação de desigualdade em cada país, mas igualmente para possibilitar uma comparação entre países.

Como visto, há muito a ser feito, mas tudo leva a crer que não podemos esperar mais. A questão da desigualdade é urgente e exige esforços nacionais e internacionais para que o problema seja atenuado em prol não apenas do crescimento e do desenvolvimento econômico, mas também em prol da sustentabilidade e da preservação das democracias.

[1] GHOSH, Jayati. Taking inequality seriously – and tackling it seriously. https://www.socialeurope.eu/taking-inequality-seriously-and-tackling-it-seriously