Tylenol, gravidez e autismo? Como nasce a desinformação em saúde

  • Categoria do post:JOTA

Nos últimos dias de setembro, em anúncio na Casa Branca ao lado do secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que o uso de Tylenol (acetaminofeno) por gestantes estaria ligado ao aumento de casos de autismo e orientou que o medicamento fosse evitado, salvo em situações consideradas absolutamente necessárias, chegando a incentivar que dor e febre fossem suportadas quando possível.

No mesmo contexto, o governo comunicou que a FDA iniciaria um processo de revisão de rotulagem e enviaria avisos a médicos sobre as associações observacionais relatadas na literatura, e Trump ampliou suas recomendações desencorajando também o uso do fármaco em crianças pequenas.

Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em 24 de setembro que não há evidência científica conclusiva que confirme um elo entre uso de acetaminofeno na gestação e autismo. O Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG) reafirmou que o acetaminofeno segue como opção de primeira linha para dor e febre na gravidez quando usado de forma criteriosa (menor dose, menor tempo, sob orientação médica), tendo publicado comunicado e practice advisory específicos sobre o tema.

A Society for Maternal-Fetal Medicine (SMFM) também esclareceu que a evidência disponível não estabelece relação causal e que gestantes podem ser tranquilizadas quanto ao uso responsável do medicamento.

A Kenvue (detentora da marca Tylenol) discordou veementemente da ligação alegada, afirmando que a “ciência independente mostra claramente que tomar acetaminofeno não causa autismo”, posição acompanhada por veículos que registraram a reação do mercado e o pushback de especialistas.

No Brasil, a Anvisa esclareceu que não há registros de notificações que relacionem o uso de paracetamol por gestantes a casos de autismo e reforçou o uso responsável conforme indicação profissional. O Ministério da Saúde também alertou que anúncios desse tipo podem gerar pânico e levar gestantes a não tratar febre e dor, o que é deletério para mãe e bebê — e reafirmou que não existe evidência que sustente a relação alegada.

Esse episódio mostra como se constrói a desinformação em saúde: conteúdos falsos ou enganosos são apresentados como verdadeiros, muitas vezes apoiados em fragmentos de estudos, mas sem o devido contexto científico. Trata-se de um fenômeno distinto da misinformation (erro sem intenção) e da malinformation (dado verdadeiro usado para prejudicar), categorias que compõem o chamado information disorder. A desinformação prospera em cenários de infodemia — excesso de informação, inclusive enganosa, que dificulta a identificação de orientações confiáveis em tempo hábil.

Os impactos são clínicos, sociais e institucionais: pioram comportamentos de saúde (abandono de tratamentos, adoção de terapias ineficazes, hesitação vacinal), ampliam estigma e sobrecarregam serviços, como mostram revisões e relatórios da OMS/Opas. Também erodem a confiança pública e podem afetar a qualidade do debate democrático, inclusive em contextos eleitorais na região interamericana.

Além da responsabilidade reforçada que autoridades públicas deveriam assumir para não propagar desinformação científica sobre saúde, volta a ganhar relevância a discussão sobre a regulação das plataformas digitais e seu papel na contenção da circulação da desinformação. A circulação em massa de conteúdos de saúde sem lastro científico ocorre principalmente em redes sociais, cuja arquitetura algorítmica prioriza engajamento, não a qualidade informacional.

Por isso, experiências regulatórias internacionais — como o Digital Services Act da União Europeia — já introduzem deveres específicos para grandes plataformas, impondo-lhes a obrigação de identificar, avaliar e mitigar riscos sistêmicos, entre eles a desinformação. Essas medidas incluem auditorias independentes, relatórios de transparência e protocolos de resposta em situações de crise sanitária.

A devida diligência em direitos humanos aplicada ao ambiente digital pode ser uma ferramenta estratégica. Os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos estabelecem que empresas — inclusive plataformas tecnológicas — têm a responsabilidade de identificar, prevenir e mitigar impactos adversos de suas atividades.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

No contexto da desinformação, isso significa adotar mecanismos eficazes e reforçados de moderação de conteúdo, ampliar a transparência sobre o funcionamento dos algoritmos e assegurar que políticas de combate a conteúdos nocivos sejam consistentes com padrões de direitos humanos, respeitando a liberdade de expressão mas também o direito à informação confiável.

A integração entre saúde pública, regulação digital e devida diligência em direitos humanos é essencial para reduzir os danos. Isso envolve tanto medidas governamentais quanto compromissos corporativos. Para os cidadãos, permanece o dever de desenvolver consciência crítica: checar fontes, exigir transparência sobre incertezas e dar preferência a diretrizes oficiais.

Para empresas e governos, cabe alinhar práticas ao interesse público, garantindo que a saúde e a democracia não fiquem reféns de narrativas enganosas. Em última análise, informação de qualidade salva vidas — e regulá-la com responsabilidade é parte do dever coletivo de proteger direitos fundamentais.