Tutela da probidade e jusfundamentalidade

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Já não é novidade a essa altura que a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), após quase três décadas de préstimos, mereceu profunda reforma pela via da Lei 14.230/2021. Fruto de anteprojeto elaborado por Comissão de Juristas[1], a mudança legislativa nasceu sob o signo de uma racionalização no manuseio da ação de improbidade. Conservou-se sua inafastável marca sancionadora, mas também houve uma cuidadosa calibragem no sentido de, como forma de otimizá-la, rechaçar sua banalização.

Não tardariam, porém, insurgências contra a reforma. A par do tema 1.199 de repercussão geral, foram ajuizadas em série ações diretas de inconstitucionalidade (7.042, 7.043, 7.236 e 7.237, e.g.) personificando uma espécie de backlash institucional da parte da advocacia pública e do Ministério Público.

As teses e postulações foram diversas, mas chamou particular atenção o uso recorrente do argumento de que a tutela da probidade seria direito fundamental e de que a reforma, possuidora de viés mais garantista, atentaria contra a vedação do retrocesso no combate à corrupção.[2]

São certas a legitimidade e a liberdade que a academia e a advocacia possuem para construir hipóteses e teses. A utilização daquele argumento, nada obstante, possui aptidão para desencadear consequências sistêmicas que não podem passar ao largo do debate: afinal, seria a tutela da probidade um direito fundamental credenciado a fazer ceder direitos fundamentais outros?

Virtual dificuldade que possa ter assolado o leitor ao pretender responder à pergunta acima já muito revela. É que, como sabido, característica inerente aos direitos fundamentais é a sua historicidade.[3] Se é um dado de realidade a abertura de seu catálogo, a admitir ampliações e novos direitos, é igualmente verdadeiro que novos direitos fundamentais não surgem casuisticamente e nem se prestam, ao sabor de postulações, a instrumentalizar premissas para este ou aquele objetivo. Ao contrário, direitos fundamentais clamam consagração decantada ao longo de um tempo inexato, findo o qual podem ser alçados por aclamação àquela condição fundamental.

É dizer que essa historicidade, a admitir um direito vivo, ao tempo em que se abre à riqueza e à complexidade de contextos e tempos para permeabilizar-se a novas feições de proteção, igualmente renega direitos ocasionais que se afigurem divorciados de uma maturação que os preceda.

Não é sem razão. Ampliado o bloco de constitucionalidade por novos direitos, amplia-se parâmetro de controle que, lado outro, limita a atividade legiferante e governa gerações seguintes. Daí que, com o perdão do truísmo, direitos fundamentais, novos ou não, são coisa séria. O ponto é bem resumido por José Carlos Vieira de Andrade[4], no contexto português, quando discorre sobre a dimensão negativa que advém da hipertrofia de direitos fundamentais pela via da vedação do retrocesso:

Aquilo que se admite é algo de bem diferente: é que certas normas, apesar de positivadas em preceitos de direito ordinário, prevaleçam sobre outras normas ordinárias, quando o seu conteúdo possa (deva) ser considerado materialmente constitucional. Só que este enfraquecimento do poder de disposição do legislador, que é expressão da relevância da realidade constitucional, não constitui a regra, mas antes a excepção: para a radicação na consciência jurídica geral da convicção da sua obrigatoriedade constitucional não basta a aceitação mais ou menos aparente e superficial da opinião pública dominante, é necessário um consenso profundo e alargado que demora o seu tempo a formar-se e que não se estende nunca a pormenores de regulamentação. (Grifou-se)

Absolutamente não se questiona a importância da defesa da probidade administrativa ou seu status constitucional.[5] O ponto que se está a esgrimir é saber se poderia ela ser considerada um direito fundamental, com todos os consectários dali decorrentes.

Como forma de esboçar uma resposta, cabe, em primeiro lugar, visitar o manancial de direitos humanos que forma uma espécie de denominador comum entre os povos para reverberar na ordem interna dos diversos países. Não se extrai da Declaração Universal e nem da Convenção Interamericana qualquer menção, sutil que seja, a um direito fundamental à probidade.

Muito se invoca (i) a Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais (aprovada pelo Decreto Legislativo 125, de 14 de junho de 2000, e promulgada pelo Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000), (ii) a Convenção Interamericana contra a Corrupção (aprovada pelo Decreto Legislativo 152, em 25.06.2002, e promulgada pelo Decreto 4.410, de 07.10.2002), e (iii) a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (aprovada pelo Decreto Legislativo 348, de 18.05.2005, e promulgada pelo Decreto 5.687, de 31.01.2006).

Esses diplomas, todavia, também não alçam o combate à corrupção a direito fundamental. Bem ao contrário, são reiteradas as ressalvas a que a defesa da probidade há de dar-se sem prejuízo da “Constituição e dos princípios fundamentais” do ordenamento (Decreto 4.410) ou dos “direitos do acusado e incluindo o direito de garantias processuais” (Decreto 5.687).

Isto é, não apenas não se guinda a defesa contra a corrupção à condição de um direito humano, como se reitera a ressalva de que deve ela encontrar limites rígidos nos direitos reconhecidamente fundamentais por cada ordem legal. Inobstante essa constatação no plano internacional, nada impediria, todavia, que a Constituição brasileira avançasse em sua materialidade aberta para além de convenções. Ocorre que não o fez, ou ao menos não o fez expressamente.

Divisando o tema sob o prisma doutrinário, merece menção a obra de Juarez Freitas[6], que, em acepção mais ampla, fala em direito fundamental a uma boa administração. Ingo Sarlet, em semelhante sentido, aborda timidamente a boa e proba administração, fazendo-o, contudo, em caráter instrumental em relação aos direitos fundamentais.[7]

Aquelas visões, porém, não se dão sem contrapontos, encontrando contraditório doutrinário em Rodolfo de Camargo Mancuso[8] e em Hugo Nigro Mazzilli[9], para quem a probidade seria um “interesse público” relevante, mas secundário em relação aos direitos fundamentais. É verdade que, como antecipado, artigos mais recentes, aqui e ali, flertaram com o tema, mas, em geral, não deixa de ser curioso que o tenham feito assumindo contornos de meios para um fim específico.

Mais bem explicando, há sim artigos acadêmicos no passado próximo advogando a jusfundamentalidade da tutela da probidade. Mas, ressalva feita a poucos escritos — um deles referido mais acima —, a ampla maioria dos trabalhos surge apenas pós-reforma, postulando uma fundamentalidade do direito à tutela da probidade apenas como escala necessária à tese da vedação do retrocesso em desfavor da Lei 14.230.

Não que isso seja suficiente a desmerecer a tese, mas não deixa de ser simbólico que essas investidas tenham se dado com escopo específico que não — ou que não apenas — a identificação da tutela da probidade como direito fundamental. Abre-se flanco, forçoso dizer, para que a tentativa de significação de um conceito com finalidade puramente instrumental acabe por produzir petição de princípio como a seguinte, constante de um dos artigos mencionados: “Dessa forma, devemos falar em um direito fundamental à probidade administrativa, pois[10] há um verdadeiro direito fundamental coletivo da sociedade a uma Administração Pública honesta, que apresenta os contornos identificadores dos direitos difusos”.

A par da tautologia que enreda o trecho acima, é curiosa a relação estabelecida entre a transindividualidade que marca a titularidade difusa do direito à tutela da probidade e uma pretensa jusfundamentalidade, como se da primeira necessariamente decorresse a segunda.

Em verdade, nem todo direito difuso é fundamental e nem todo direito fundamental é difuso. Cuidam-se de classificações com objetos distintos, a primeira afeita à (in)determinabilidade dos sujeitos e à (in)divisibilidade do direito, a segunda afeita ao status do valor jurídico e da proteção conferida. Tanto assim que o direito de consumidores contra propaganda abusiva ou enganosa ou o direito de usuários à boa qualidade de um dado serviço público podem ser considerados difusos, ainda que dificilmente possam ser enquadrados como fundamentais.

Aliás, e no ponto, ainda que se afirmasse a jusfundamentalidade do direito à tutela da probidade em razão de sua titularidade difusa, certo é que a Lei 14.230/2021, ao alterar o artigo 17-D, caput e parágrafo único, esvaziou sobremaneira a ação de improbidade da defesa de direitos daquele jaez, chegando a remeter à ação civil pública a defesa de “qualquer” interesse difuso ou coletivo.

Ainda a propósito, convém notar que, curiosamente, essa alteração específica — a cindir do escopo da ação de improbidade a tutela de direitos difusos —  não foi objeto de impugnação por nenhuma das ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra a reforma da Lei de Improbidade, restando inatacada de sorte a demonstrar uma seletividade da tese a fazer avultar sua incoerência.

Na seara jurisdicional constitucional, de sua vez, releva notar que o Supremo Tribunal Federal, em pesquisa jurisprudencial ampla, simplesmente não contém julgados afirmando um direito fundamental à tutela da probidade. Na ADI 5.935, relator o ministro Edson Fachin, há singela referência, no relatório, a argumento da parte invocando um “direito à administração proba”. Já no RE 760.931 há referência a um “direito à boa administração”, mas como parte de transcrição doutrinária, sem maiores incursões.

No Superior Tribunal de Justiça, lado outro, há remissão solitária a um “direito fundamental à boa administração” no REsp 1.139.486. Finalmente, consultados todos os Tribunais Regionais Federais, não consta, como razão de decidir[11], nenhuma alusão a direito fundamental “à tutela da probidade” ou “à boa administração”.

Enfim, sob qualquer ótica, seja ela normativa, doutrinária ou jurisprudencial, honestamente não se consegue divisar, no Brasil, um estágio de densificação teórica ou axiológica e nem uma sedimentação social, jurídica ou política que permita sustentar enfaticamente vivermos contexto espacial/temporal a admitir um direito fundamental à tutela da probidade. É possível que esse momento chegue, mas, na esteira dos elementos aportados acima, decididamente ainda não chegou.

À guisa de conclusão, é ao menos questionável a jusfundamentalidade da tutela da probidade, carente que é de historicidade. Sem embargo, ainda admitindo a existência desse direito fundamental, a aplicação do princípio da vedação do retrocesso, tradicionalmente ligado a direitos sociais, haveria de ser excepcional, jamais uma decorrência lógica.

À vista dessas premissas, e analisando o caso concreto das impugnações à reforma da Lei de Improbidade sob aquele fundamento, o que se percebe é que (i) a tutela da probidade, ainda que direito fundamental, não teria sido ferida em seu núcleo essencial, na medida em que não se exaure na ação de improbidade; (ii) não há, na reforma, a indispensável supressão ou abolição pura e simples que atrairia a incidência do princípio de modo a fazer ceder a legitimidade democrática de escolhas e aperfeiçoamentos levados a efeito pelo legislador; e (iii) nunca houve, nas investidas contra a reforma, uma preocupação em se vencer o ônus argumentativo que cerca o teste da proporcionalidade, a saber, (iii.i) a evidenciação acerca de um consenso básico sobre a forma específica daquela tutela pela via da ação de improbidade e (iii.ii) a proteção contra excessos a que visou o legislador para, em salvaguarda a direitos fundamentais de primeira geração, mais estabelecidos, reequilibrar o escopo da improbidade administrativa.

[1] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1687121&filename=PL%202505/2021%20(N%C2%BA%20Anterior:%20pl%2010887/2018)

[2] A par das ADIs mencionadas, alguns artigos acadêmicos também defenderam a tese: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/2587299/Renato+de+Lima+Castro.pdf/; https://www.publicacoes.unirios.edu.br/index.php/revistarios/article/view/405

[3] Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco explicitam que direitos fundamentais não são sempre os mesmos em qualquer época. Por outro lado, dependem eles de uma sedimentação como normas obrigatórias, sedimentação essa que é resultado de maturação histórica. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 135-136.

[4] ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 393.

[5] Roberto Lima Santos relaciona o direito, direta ou indiretamente, com os princípios republicano (art. 1º, caput) e democrático (art. 1º, par. único), com os fundamentos da República (art. 1º, incisos I a V), com os objetivos da República (art. 3º, incisos I a IV), com a prevalência dos direitos humanos e a defesa da paz nas suas relações internacionais (art. 4º, I e VI) e com os demais princípios constitucionais administrativos, previstos no caput do art. 37. SANTOS, Roberto Lima. Direito fundamental à probidade administrativa e as convenções internacionais de combate à corrupção. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 50, out. 2012.

[6] FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 22.

[7] “É neste contexto que assumem relevo os princípios da moralidade e probidade da administração pública, de tal sorte que – mesmo sem desenvolver o ponto – é possível afirmar que a maximização da eficácia e efetividade de todos os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão defensiva e prestacional depende, em parte significativa (e a realidade brasileira bem o demonstra!) da otimização do direito fundamental a uma boa (portanto sempre proba e moralmente vinculada) administração.” SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 367.

[8] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 113.

[9] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos direitos difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio, cultural, patrimônio público e outros interesses. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 241.

[10] https://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao050/Roberto_Santos.html

[11] Há algumas parcas remissões a pareceres ministeriais ou a argumentos das partes, mas não fundamento decisório.