Trust & Safety na governança digital

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Nos últimos anos, o conceito de Trust & Safety – confiança e segurança, em português – tornou-se um componente crucial no ecossistema de plataformas digitais, com seus princípios e práticas aprimorando procedimentos da indústria e atraindo significativa atenção de reguladores. Contudo, a aplicação das práticas e ferramentas de Trust & Safety vai muito além do mundo digital.

Nesse ensaio, vamos falar um pouco mais sobre esse conceito, seu escopo e como profissionais da prática jurídica e de compliance podem desenvolver frameworks integrados para sua aplicação nas organizações.

O que é Trust & Safety?

No contexto de governança corporativa digital, Trust & Safety é um campo de atuação que desenvolve e aplica princípios, políticas e práticas para assegurar a interação positiva e segura das pessoas com um determinado produto ou serviço. Seu objetivo é garantir a conformidade da empresa a exigências regulatórias, padrões de segurança e pressões sociais, por meio de uma abordagem de gestão de risco.

É baseado em dois componentes principais:

Confiança (trust) refere-se à proteção da reputação e credibilidade de um produto ou serviço, incluindo estratégias de resposta a incidentes que afetem esses objetivos;
Segurança (safety) engloba a conscientização, transparência e minimização de possíveis danos decorrentes do uso de um produto ou serviço.

História do Conceito

Trust & Safety, como um conceito estruturado, remonta à década de 2000, em que empresas como o eBay, possivelmente precursora no uso dessa expressão no contexto empresarial[1], enfrentou desafios de contas falsas e filtros de spam. E o Yahoo adotou a expressão para estabelecer suas diretrizes de publicidade[2].

Já o interesse do público no tema, conforme evidenciado por pesquisas no Google, é mais recente e disparou no final de 2020, continuando em ascensão desde então e atingindo seu pico no primeiro trimestre deste ano[3]. Três fatores explicam essa tendência:

Iniciativas de associações da indústria, como os padrões de brand safety emitidos pelo Interactive Advertising Bureau[4] e a biblioteca de conteúdo da Trust & Safety Professional Association[5];
padrões de autorregulação upstream, que usam arranjos contratuais privados para adoção de práticas de Trust & Safety by Design (e.g. exigências da Apple Store e Google Play); e
a ação de reguladores, como o recente Digital Services Act da União Europeia[6].

No campo acadêmico, cada vez mais pesquisas investigam temas como moderação de conteúdo dentro da moldura analítica mais ampla de Trust & Safety. Por exemplo, a Online Trust & Safety Journal, criada em 2021 pela Universidade de Stanford, define o campo como “o estudo de como as pessoas abusam da internet para causar danos reais aos seres humanos, muitas vezes usando produtos da maneira como foram projetados para funcionar”[7].

Âmbito de Aplicação

Trust & Safety é comumente associado a grandes empresas de tecnologia devido à sua visibilidade e à criação de funções específicas. Contudo, assim como em áreas de legal ops, proteção de dados e inteligência artificial responsável, hoje onipresentes em todas as grandes organizações e que iniciaram nas techs, as funções de confiança e segurança começam a se tornar mais comuns em outros setores.

Por isso que é importante enfatizar: o tema de Trust & Safety não se limita ao âmbito digital. Indústrias tradicionais, do varejo e bancos à saúde e hospitalidade, também lidam com questões relacionadas à confiança e segurança do consumidor e precisam lidar com danos decorrentes de usos intencionais ou não de seus produtos.

Por exemplo, a mudança da indústria automobilística para veículos com tecnologias assistidas como ACC (controle de cruzeiro adaptativo) e LKAS (assistência de permanência na faixa) levanta questões sobre padrões de segurança e confiança do consumidor e como evitar incidentes a partir de uma melhor comunicação da marca com seus consumidores[8].

No Brasil, a importância de plataformas como o ReclameAqui para o setor de varejo exemplifica também o valor desse conceito não só para o marketing, mas também para a estratégia judicial das empresas.

Trust & Safety e compliance

É preciso reconhecer o campo de Trust & Safety como um elemento crítico de programas de conformidade abrangentes em todos os setores em que há interação direta entre fornecedores e consumidores. E, com isso, a necessidade de trabalhar seus fundamentos dentro de um framework de compliance integrado, de maneira semelhante ao que acontece nos temas de anticorrupção e proteção de dados pessoais.

As implicações legais dessa forma de governança são profundas. Atualmente, empresas precisam navegar por uma complexa teia de leis, regulamentos específicos, autorregulação e padrões de indústria, que são cada vez mais difíceis de interpretar e aplicar em políticas e práticas uniformes, muitas vezes automatizadas por meio de ferramentas de inteligência artificial e aprendizado de máquina (como canais digitais de atendimento ao consumidor).

No Brasil, um framework integrado de T&S significaria trabalhar simultaneamente com diferentes legislações já existentes, como:

Código de Defesa do Consumidor: pioneiro na proteção ao consumidor e na própria ideia de Trust & Safety, por meio de regras sobre danos por produtos defeituosos, contratos de adesão e publicidade abusiva;
Marco Civil da Internet: regula o uso da internet no Brasil, garantindo direitos relacionados aos contratos de adesão online, responsabilidade por conteúdo de terceiros e informações claras ao usuário
Lei Geral de Proteção de Dados: impõe regras sobre o tratamento de dados pessoais, incluindo o direito dos titulares sobre seus dados e à informações claras e precisas;
Lei de Direitos Autorais: estabelece usos permitidos de conteúdos de terceiros, como citações para fins educacionais e paródias;
Lei de Propriedade Industrial: protege consumidores e empresas de uso parasitário, colidência entre marcas e uso indevido de identidades comerciais;
Decreto de E-commerce: outra regulação pioneira, traz regras específicas sobre acesso à informação e segurança do consumidor, aumentando a confiança das compras no meio digital;
Decreto do SAC (11.034/22): estabelece as diretrizes para atendimento ao consumidor no âmbito de serviços regulados pelo Executivo Federal (como telecomunicações e energia elétrica), e também servem de diretrizes para outros setores privados;
Autorregulação: Diferentes indústrias contam com regras específicas para publicidade, como as emitidas pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Conclusão

Essa interpretação expandida de confiança e segurança não é apenas uma necessidade legal, mas um imperativo estratégico para qualquer negócio que busca manter relevância e competitividade em um mercado cada vez mais centrado no consumidor.

Para profissionais de áreas jurídicas, isso significa estabelecer diretrizes claras para comportamento, interações e gerenciamento de conteúdo em plataformas e serviços. Para áreas de compliance, isso significa não apenas desenvolver conjuntamente essas diretrizes, mas também garantir que sejam aplicadas e continuamente atualizadas para refletir novas tecnologias e regulações.

Ao ampliar nosso entendimento de confiança e segurança para abranger todas as indústrias voltadas para o consumidor, podemos melhor proteger os interesses dos consumidores e garantir a integridade de nosso sistema econômico.

[1] https://www.nytimes.com/2002/07/19/business/technology-ebay-earnings-up-as-revenue-sets-record.html?searchResultPosition=2 e https://web.archive.org/web/20000815064513/http://pages.ebay.com/community/aboutebay/releases/9901.html

[2] https://www.nytimes.com/2009/05/13/business/media/13adco.html?searchResultPosition=21

[3] https://trends.google.com.br/trends/explore?date=all&q=trust%20%26%20safety&hl=pt-PT

[4]https://www.iab.com/wpcontent/uploads/2020/12/IAB_Brand_Safety_and_Suitability_Guide_2020-12.pdf

[5]  https://www.tspa.org/explore/trust-safety-library/

[6] https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A32022R2065

[7] https://tsjournal.org/index.php/jots/article/view/8/51

[8] https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0001457521001524