O noticiário sobre as eleições presidenciais que ocorrerão nos EUA neste ano dão conta de que Donald Trump deve ser o indicado do Partido Republicano à disputa pela Casa Branca. Apesar de derrotado na sua tentativa de reeleição em 2020, o ex-presidente já venceu primárias em dois estados e as pesquisas de opinião indicam que as chances são bastante altas de conseguir a indicação por seu partido.
A possibilidade de que Trump concorra mais uma vez à presidência de seu país desperta alguns questionamentos importantes sobre o funcionamento de uma democracia. Afinal, por que o Partido Republicano vai apostar suas fichas em um nome que já foi derrotado exatamente quando buscava sua reeleição e tinha, portanto, acesso à máquina pública para conseguir apoio? Não haveria algum outro nome que o partido pudesse indicar em seu lugar?
Perguntas deste tipo se colocam diante deste fato, cuja resposta completa seria difícil de ser atingida por sua dimensão circunstancial. Mas há aspectos estruturais das democracias em geral e da norte-americana, em particular, que jogam luz sobre as razões possíveis desta situação. É sobre esta dimensão estrutural que vamos tratar aqui.
Os partidos políticos são um tema relevante para a ciência política desde o início do século 20. Apesar de não terem sido considerados no debate teórico, por exemplo, dos federalistas, que fundaram o modelo democrático dos Estados Unidos, a prática impôs seu uso por diferentes razões. Atualmente, não há democracia no mundo que prescinda dos partidos. A formação de um sistema partidário – um conjunto de partidos que disputa o poder entre si – se torna um aspecto relevante para entender as eleições em uma democracia, pois organizam as principais forças políticas que podem ocupar os cargos centrais em cada país.
No caso dos EUA, o sistema partidário é formado por dois grandes partidos, o Democrata e o Republicano. Outras forças não são capazes de fazer frente a estes dois e, assim, os presidentes eleitos há muito tempo vêm de um destes partidos. O que sabemos, então, sobre o funcionamento dos partidos políticos que nos ajudam a entender esse caso?
Os partidos são os meios pelos quais as pessoas podem se oferecer como candidatos. Diferentes legendas apoiam diferentes projetos de sociedade, defendem pontos de vista distintos, ainda que por vezes exista muitas semelhanças. Assim, podemos dizer que quando há múltiplos partidos políticos, há mais espaço para que distintas ideias façam parte de determinado cenário político. Quando há apenas dois, eles acabam tendo muito mais afinidades do que em sistemas multipartidários, pois os partidos buscam atingir um eleitor mediano. Ou seja, as demandas políticas dos cidadãos, que diferem ao longo do território, são canalizadas pelos partidos políticos. E são estes que vão disputar as eleições para implementar políticas e atender àquelas demandas.
Sob esta ótica, seria esperado que se uma população possuísse muitas demandas distintas, diferentes partidos surgissem para satisfazê-las. Mas um sistema bipartidário impede que isto ocorra. Há apenas dois partidos em um certo contexto por diversas razões, além da histórica: o arranjo eleitoral, como as disputas sincronizadas pelos Executivo e Legislativo, a capacidade de coordenação nacional pelos partidos e a disputa mais importante ser a presidencial podem ser apontadas como razões deste fenômeno.
Porém, um outro movimento tornou inviável o surgimento de um número maior de partidos. Este diagnóstico foi elaborado já na segunda metade do século 20. Neste período, os partidos políticos passaram a depender muito menos do apoio financeiro de seus correligionários em substituição do dinheiro que passa a vir do próprio Estado. Este processo ficou conhecido como cartelização, o que dificultava a ascensão de novas forças políticas, pois restringia o acesso a este recurso pelas legendas que já existiam.
Assim, tornou-se muito difícil que uma nova força conseguisse recursos para competir com as siglas já estabelecidas, criando desigualdade nas condições financeiras da disputa política. Criou-se uma dificuldade adicional para que novas forças políticas disputassem o poder via eleições. Novamente, o caso americano ajuda a entender esta situação: em alguns dos poucos casos de candidaturas independentes que concorreram às eleições, estes indivíduos são também empresários capazes de autofinanciarem suas campanhas, como Ross Perot (1992 e 1996).
Assim, se não há possibilidade de que novos partidos concorram com chances reais de vencer a eleição para presidente, a rotatividade das elites políticas dentro dos partidos poderia criar algum espaço para estas novas forças. Estaria aí o lugar para que novas ideias acelerassem processos de mudança política. Na tabela abaixo, podemos ver os candidatos à presidência dos EUA nas disputas desde o pós-Segunda Guerra.
Candidatos à presidência dos EUA pelos partidos Democrata e Republicano
Ano
Democrata
Republicano
2020
Joe Biden
Donald Trump
2016
Hillary Clinton
Donald Trump
2012
Barack Obama
Mitt Romney
2008
Barack Obama
John McCain
2004
John Kerry
George W. Bush
2000
Al Gore Jr.
George W. Bush
1996
Bill Clinton
Bob Dole
1992
Bill Clinton
George Bush
1988
Michael Dukakis
George Bush
1984
Walter Modale
Ronald Reagan
1980
Jimmy Carter
Ronald Reagan
1976
Jimmy Carter
Gerald Ford
1972
George McGovern
Richard Nixon
1968
Hubert Humphrey
Richard Nixon
1964
Lyndon Johnson
Barry Goldwater
1960
John Kennedy
Richard Nixon
1956
Adlai Stevenson
Dwight Eisenhower
1952
Adlai Stevenson
Dwight Eisenhower
1948
Harry Truman
Thomas Dewey
Ao considerarmos esta lista, tem-se a impressão de que há certa rotatividade nas lideranças. Afinal, à exceção de Richard Nixon, nenhum outro político lançou-se candidato mais do que duas vezes. No caso de Nixon, a proibição de que Eisenhower concorresse a um terceiro mandato colocou-o como o candidato natural pelos republicanos por ser o vice-presidente em exercício em 1960. Ademais, os políticos que se recandidatam são geralmente os próprios presidentes que buscam sua reeleição. Poderíamos, então, achar que sempre há novos nomes. Mas este não é exatamente o caso.
Muitos destes supostos novos nomes são de vice-presidentes. Isto indica, de certa forma, menor oportunidade para novas ideias do que seria possível pensar. Ou seja, o sistema partidário dos EUA não é permeável a novas lideranças, ao menos sob este critério. O processo geral de surgimento de novas lideranças que tenham condições de se tornarem presidente é claramente lento.
Mas o caso de Trump é inédito neste período. Se a 20ª eleição desde 1948 contar com o ex-presidente como candidato, será a primeira vez que tal fato ocorrerá desde a emenda 22 à Constituição americana, que limita o número de mandatos que uma pessoa pode ter como presidente daquele país. Está claro o controle interno do partido que Trump possui. E ele é mais decisivo, quanto menor o número de partidos. Em um sistema bipartidário, se um indivíduo é capaz de colocar-se como força central e praticamente única dentro de um partido, a ponto de lançar-se candidato mesmo tendo sido derrotado na eleição anterior quando era o presidente em exercício, há motivos para as considerações detidas.
Este poder o coloca numa condição privilegiada que causa bastante preocupação naqueles que viram em seu mandato um retrocesso democrático no país. Ainda é cedo para qualquer prognóstico, mas a combinação estrutural e conjuntural neste caso pode acentuar o movimento autoritário observado ao longo de seu mandato. Um fenômeno deste porte em uma democracia como a norte-americana é, de fato, significativo e pode ter repercussões em todo o mundo.