O setor de apostas no Brasil vive um momento singular. Inicialmente desregulado, passou por mudanças com as Leis 13.756/2018 e 14.790/2023, a criação da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), além de portarias, instruções normativas e notas técnicas dispondo sobre diversos temas do setor.
De um lado, esses textos normativos tendem a conferir maior segurança jurídica, esclarecendo dúvidas dos operadores deste mercado e preenchendo lacunas da legislação. Por outro lado, essas iniciativas nem sempre cumprem esse papel e, pior ainda, às vezes, criam restrições sem respaldo na lei. É o caso da Nota Técnica SEI 229/2025/MF, emitida pela SPA/MF, que, entre outros assuntos, tratou da forma de contabilização de recompensas oferecidas pelos operadores de apostas.
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A nota classifica as recompensas em financeiras (como bônus financeiros ou cashback) e não financeiras (como rodadas grátis ou aposta grátis). Por sua vez, as recompensas financeiras dividem-se em sacáveis e não sacáveis.
As recompensas financeiras sacáveis são aquelas simultaneamente (i) contabilizadas na conta gráfica – conta virtual disponibilizada pelo agente operador para que o apostador gerencie seu saldo na plataforma – e (ii) creditadas na conta transacional – a conta mantida pelo agente operador em instituição financeira ou de pagamento autorizada pelo Banco Central, utilizada para depósito dos valores cujo saque pode ser realizado pelos apostadores.
Já as não sacáveis permanecem exclusivas à conta gráfica e não são transferidas para a conta transacional, não podendo ser sacadas como dinheiro. Esses valores destinam-se unicamente à realização de novas apostas e são exibidos de forma apartada do saldo sacável do apostador, estando sujeitos a prazos e condições definidos nos termos do programa de fidelidade e nos regulamentos da plataforma.
Uma vez firmados esses conceitos, a Nota Técnica SEI 229/2025/MF avança para criar novas regras sobre a contabilização das recompensas financeiras, de modo a incluí-las na apuração da Receita Bruta de Apostas (Gross Gaming Revenue ou GGR).
Em essência, o GGR corresponde à arrecadação antes do pagamento dos prêmios aos apostadores e do imposto de renda (IR) incidente sobre as premiações (art. 30, caput, da Lei 13.756/2018). Após essas deduções, tem-se a chamada Receita Líquida de Apostas (ou Net Gaming Revenue – NGR), da qual 12% serão objeto de diversas destinações (art. 30, §1º-A, da Lei 13.756/2018), 6% serão destinados à seguridade social (art. 61 da MP 1303/2025), e os 82% restantes ficarão com o agente operador e servirão de base de cálculo para a incidência de tributos como PIS, Cofins e ISS. Portanto, alterar a apuração do GGR impacta o cálculo do NGR e, assim, as destinações obrigatórias e os tributos incidentes sobre o setor de apostas.
A Nota determina que as recompensas sacáveis devem integrar o GGR quando os valores ofertados forem convertidos em apostas. Já no caso das recompensas não sacáveis, a Nota estabelece que estas devem compor o GGR de forma imediata, independentemente de os valores serem utilizados na realização de apostas, sob o argumento de que não seria possível ao apostador dar outro destino a esta soma.
O racional defendido pela Nota Técnica SEI 229/2025/MF se mostra problemático sob diversas perspectivas. A principal delas é que há uma flagrante incompatibilidade semântica entre o conceito de “recompensa” e os de “arrecadação” – termo utilizado pela Lei 13.756/18 – e “receita”, entendida como produto dessa arrecadação e que se traduz no ingresso definitivo de recursos que se integram ao patrimônio da pessoa sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, incrementando-o como elemento novo e positivo.[1]
Embora se possa admitir que a atividade do intérprete seja criativa, no sentido da construção do sentido da norma jurídica, a literalidade textual é o ponto de partida da interpretação jurídica e, simultaneamente, o seu limite possível.[2] Não se pode tratar como receita aquilo que representa uma despesa. A recompensa gera para o operador um passivo (saldo à disposição do apostador na conta gráfica).
Considerar isso como algo que acresce ao GGR subverte toda a lógica do sistema que organiza a apuração das destinações e dos tributos incidentes sobre a atividade do operador de apostas. O operador não pode “arrecadar” novamente aquilo que já estava em seus cofres. Não há, no caso, incremento patrimonial e, portanto, não há geração de valor a ser dividido via destinações ou tributos.
Além disso, ainda que se desconsiderasse a contradição conceitual aqui apontada, a inclusão das recompensas não sacáveis no GGR antes de qualquer uso pelo apostador representa extrapolação ainda mais grave, uma vez que implica antecipar o fato gerador da obrigação tributária sem respaldo legal, com base em uma mera expectativa de realização da aposta.
Trata-se, quando muito, de uma “receita” potencial, que corresponde a uma manifestação de capacidade contributiva meramente teórica, analisada sob a ótica do apostador, e não do operador. Como decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 456[3], a antecipação do fato jurídico-tributário necessita de lei em sentido estrito, não podendo ser veiculada por meio de uma Nota Técnica.
Ao receber uma recompensa não sacável, o apostador pode optar por não a utilizar ou pode fazê-lo futuramente de forma parcial. Se houver ganho com aquela aposta, este será deduzido como prêmio, o que reduzirá a carga tributária do operador, já que as premiações e o IR sobre elas incidentes não integram a base de cálculo do ISS, PIS e Cofins.
Por outro lado, se a recompensa for utilizada, mas não gerar qualquer ganho para o apostador, disso não decorre um ingresso adicional de recursos para o operador. O “ganho” do operador limita-se aos valores efetivamente arrecadados das apostas pagas com recursos financeiros de terceiros que ingressaram em seu caixa. A utilização de uma recompensa não sacável, com ou sem ganho para o apostador, não altera a sua natureza de despesa para o operador, já que ela nunca se traduz em receita efetiva ou em acréscimo patrimonial para este.
Esse aspecto evidencia um dos problemas de se trabalhar com presunções no âmbito do Direito Tributário. A presunção não cria verdades do nada, mas apenas permite a inferência de determinado fato (primário) a partir da verificação de outro fato (secundário) que a ele se relaciona. Assim, caso o sujeito passivo questione a presença dos pressupostos que justificaram a inclusão da recompensa não sacável no cálculo do GGR – como, por exemplo, a ausência de uma aposta com aquele recurso ou seu uso parcial – caberá ao ente fazendário provar a existência do pressuposto que desencadeou a lógica presuntiva.
Foi nessa linha que o STF reconheceu o direito à restituição de eventuais de tributos pagos a maior, no regime de substituição tributária, se a base de cálculo efetiva das operações for inferior à presumida (Temas 201 e 228)[4]. Primeiro, o recolhimento é feito por estimativa, e toda estimativa é provisória, seguindo-se o acerto cabível quando já conhecido o valor da operação.
O mesmo racional se aplica aqui. Se a recompensa não sacável não for utilizada para realizar apostas ou o for de maneira parcial, o operador deveria ter, no mínimo, o direito de recuperar as diferenças de PIS, Cofins e ISS pagos a mais. Afinal, a verdade material deve prevalecer sobre presunções relativas.
Infelizmente, a Nota Técnica optou por ignorar também essa lógica e caminhou no sentido oposto, considerando que eventual não conversão do recurso em aposta seria um mero risco do negócio.
Em meio a essa confusão, o setor de bets tem adotado providências para se resguardar. Diversos operadores passaram a priorizar as chamadas “odds aumentadas”, em que as casas de aposta oferecem retornos maiores do que uma aposta normal, como forma de atrair e fidelizar novos jogadores. Obviamente, o oferecimento de recompensas financeiras, sacáveis ou não, vem sendo drasticamente reduzido.
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Normalmente é isso que ocorre quando o regulador insiste em tentar dobrar os fatos ao seu desejo: o mundo real se adapta. E, assim, vem se provando completamente inócua a tentativa de transformar “recompensas pagas” em “receitas” a partir de pura retórica e sem nenhum respaldo na lei.
Na verdade, esse artifício só tem se mostrado efetivo para criar entraves no diálogo entre fisco e contribuintes e para expor o evidente conflito de interesse instaurado hoje no setor: em última análise, regulamentação, fiscalização e arrecadação estão todas no escopo da mesma estrutura administrativa e é urgente que isso seja repensado. O desafio agora é abandonar velhos hábitos e construir novos paradigmas.
[1] Toma-se de empréstimo a clássica lição de Aliomar Baleeiro sobre o conceito de receita pública (cf. BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16ª ed. rev. e atualizada por Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 126).
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 197-200; CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Interpretação do sistema constitucional tributário. In: CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Escritos de Direito Constitucional e de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Gramma, 2016, p. 247.
[3] STF, Recurso Extraordinário n. 598.677/RS, Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 29/03/2021, DJe 04/05/2021.
[4] STF, Recurso Extraordinário n. 593.849/MG, Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 19/10/2016, DJe 04/04/2017; STF, Recurso Extraordinário n. 596.832/RJ, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2020, DJe 20/10/2020.