Tributação da renda em operações envolvendo ativos digitais

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A evolução tecnológica traz consigo a inevitável existência de lacunas legislativas. Com isso, o desenvolvimento de suportes tecnológicos, tais como os criptoativos, torna o sistema fiscal ainda mais complexo e desafiador. No campo da tributação da renda, a natureza jurídica desses ativos digitais e as operações que os envolvem geram debates, especialmente nos casos de aquisição e alienação, o que inclui as operações de compra e venda, permuta e dação em pagamento[1].

Considerados como bens econômicos, na medida que se incorporam ao patrimônio e são objeto de direito subjetivo[2], os criptoativos possuem funcionalidades diversas, tais como meio de pagamento e de investimento, além de se revestirem de funcionalidades ou efeitos jurídicos diversos, tais como a representação digital de propriedade de um imóvel, de um bem fungível, de um direito creditório ou a titularidade de ações ou cotas sociais, por exemplo. Nesse sentido, o primeiro ponto de questionamento refere-se à possibilidade de tributação dos ganhos de detenção dos criptoativos pelos investidores.

É importante esclarecer que a legislação tributária, ao estabelecer o princípio da realização da renda, no art. 43 do CTN, não autoriza a tributação de ganhos nominais decorrentes da mera valorização dos criptoativos, visto que o fato gerador do imposto de renda é a disponibilidade jurídica e econômica. Portanto, é necessário que haja a aquisição de disponibilidade de forma definitiva e incontestável para caracterizar a incidência da tributação.

Como as variações dos ativos não são definitivas até que ocorra a sua realização, o titular dos criptoativos somente realiza a mais-valia latente no momento da sua alienação ou utilização para aquisição de direitos, bens ou serviços, em razão da ausência de receita disponível, condição impositiva para a tributação da renda. Sob a ótica do modelo brasileiro de tributação sobre a renda, o alto risco inerente a essas operações, pressupõe apenas uma valorização potencial, que poderá jamais ser concretizada. Logo, a tributação antes da efetiva realização da renda carece de legitimidade e atenta contra o princípio da capacidade contributiva.

Além disso, em virtude dos criptoativos serem considerados “bens digitais”, as operações de troca desses ativos configuram, de acordo com a doutrina clássica[3], uma permuta, na medida em que as partes se obrigam a dar uma coisa por outra, sem que seja dinheiro, faltando-lhe o preço, conforme o art. 533 do Código Civil. Nesse sentido, é importante relembrar que o objeto da permuta é a entrega recíproca de bens pelas partes, não havendo preço (valor in pecúnia) para essas operações[4].

O debate acerca da incidência de imposto de renda sobre a permuta de bens da mesma natureza não é um tema recente e muito menos exclusivo das operações com criptoativos. Essa discussão já se arrasta em relação aos bens imóveis e se intensificou nos últimos anos após o Despacho PGFN 167/2022, que reconheceu que o valor do imóvel recebido nas operações de permuta com outro imóvel não deve ser considerado receita, faturamento, renda ou lucro para fins de apuração dos tributos federais pelas empresas optantes pelo lucro presumido. Antes disso, já havia o reconhecimento normativo de inexistência de ganho de capital a ser tributado pelo imposto de renda nos casos de permuta de imóveis sem torna, nos termos da Solução de Consulta Cosit 166/19 e do Parecer PGFN/CRJ/COJUD SEI 8.694/2021/ME.

Em se tratando de criptoativos, necessário perquirir se, nas operações envolvidas, haverá ou não a materialização do ganho de capital, em razão da ausência ou presença de disponibilidade de renda (princípio da realização da renda). Diante do gap legislativo, a Receita Federal tem entendido de forma diversa ao entendimento exarado para os imóveis, considerando como devida a tributação das operações de permuta cripto-cripto, independentemente da funcionalidade e da eventual representação de diferentes bens e direitos, conforme disposto na Solução de Consulta COSIT 214/2021 e da Solução de Consulta Disit/SRRF-06 6008/2022.

A Solução de Consulta COSIT 214/2021 esclarece que o benefício auferido pelo contribuinte, de qualquer forma ou natureza, é determinante para a isenção do imposto de renda. Portanto, ao utilizar criptomoedas na aquisição de outras, essa ação é considerada uma alienação sujeita à incidência do imposto de renda sobre ganho de capital. Assim, o fato de não converter a transação em moeda fiduciária não altera a incidência do imposto sobre o ganho de capital resultante da permuta. Tem-se verificado, portanto, entendimento defensivo do órgão fiscal brasileiro – embora questionável – na medida em que eventual tributação apenas no momento da alienação por moeda poderia levar a um eterno diferimento da tributação.

Nesse sentido, surge a indagação sobre a validade de inserir a permuta dentro do conceito de alienação em termos fiscais, quando não há ocorrência de um evento de realização.

Ocorre que, embora o ordenamento trate explicitamente apenas do caso dos bens imóveis, entendemos que tal tratamento é exemplificativo e não taxativo, devendo ser utilizado, igualmente, no caso dos criptoativos. Outrossim, na permuta de bens sem torna não há acréscimo patrimonial disponível ou realizado, não resultando em apuração imediata de ganho de capital mesmo quando há diferença entre os preços permutados[5].

De fato, a incidência do imposto de renda está condicionada à realização efetiva da renda. A controvérsia diz respeito à liquidez dessa renda, por ocasião da aquisição de um criptoativo e ingresso no patrimônio do adquirente.

Por fim, outro ponto controverso em relação a operações envolvendo criptoativos está nos casos em que se utiliza tais ativos para aquisição de outros bens e serviços, em que se questiona se estamos diante de uma permuta ou de uma dação em pagamento.

Existem linhas argumentativas que defendem ambos os lados. Os defensores de que a aquisição de bens e serviços através de criptoativos configurar-se-ia como dação em pagamento argumentam que a permuta de criptoativos por bens e serviços apenas se realiza quando envolver uma troca recíproca e sem valor in pecunia. Caso contrário, a utilização de criptoativos para aquisição de bens, direitos ou serviços será tida como uma dação em pagamento, a luz dos artigos 356 e 359 do Código Civil.

Contudo, as operações envolvendo a troca de criptoativos por bens e serviços, poder-se-ia alegar, na verdade, se caracterizam como permuta, porém de bens distintos. O argumento que embasa tal posicionamento perpassa a ideia de que os criptoativos na qualidade de “ativos” afastam a possibilidade de caracterização de uma compra e venda de bens ou de uma prestação de serviço[6]. Porém, ainda neste caso, a diferença positiva entre a aquisição do criptoativo e o seu valor de mercado no momento de sua utilização configura-se ganho de capital tributável pelo imposto de renda.

Outro argumento utilizado para corroborar com a ideia de que na aquisição de bens e serviços não estaríamos diante de uma dação em pagamento é de que a operação pressupõe uma obrigação inadimplida pretérita, diversa da que era devida. Entretanto, atualmente o regime do Código Civil comporta interpretação mais ampla, uma vez que a ideia de que a prestação originária devesse necessariamente ser em moeda fiduciária e a dação fosse o pagamento em substituição a essa primeira entrega acordada já foi abandonada[7]. Hoje já se fala em dação em pagamento mediante consentimento expresso do credor, o que afastaria tal argumentação. Contudo, ainda assim, imprescindível a existência de uma dívida pretérita para caracterizar uma dação em pagamento.

Um ponto já destacado nessa exposição e a ser considerado, parece-nos, é que os criptoativos podem se revestir de funcionalidades ou efeitos jurídicos diversos. Logo, caso consideremos a aquisição de um NFT por um token de pagamento, como o bitcoin, cuja funcionalidade é exatamente a de servir como meio de pagamento, teríamos uma mera compra e venda, em que pese a ausência de moeda. No entanto, olhando para o passado, mesmo que distante, os bens sempre tiveram valoração para fins de compra e venda, isto é, por moeda, e mesmo assim convencionou a doutrina a interpretar operações sem moeda como trocas ou permutas.

Nesse sentido, o fato de um token de pagamento se prestar a servir de meio de pagamento, fora sua funcionalidade especulativa, não afasta o fato de não ser moeda de curso legal, de modo que estamos interpretando fatos econômicos similares, em que pese a tecnologia que lhe revestem ou o tempo em que se dão.

Portanto, nos casos em que a troca do criptoativo é feita por um bem não digital ou serviço, cujo valor de mercado supere o custo de aquisição daquele ativo, ou quando alienado por moeda, haverá ganho de capital, a ser reconhecido em decorrência da mais-valia desta operação. Neste caso, incide a tributação sobre a renda decorrente do ganho de capital auferido.

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As discussões aqui levantadas são fruto de debates e trabalhos do grupo de pesquisa “A Tributação sobre as operações envolvendo criptoativos” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)

[1] Art. 3º, § 3º, da Lei nº 7.713/88.

[2] VELOSO, Cáio Mario. Instituições de Direito Civil. Volume 1. 24ª Edição. Editora Forense: 2011. Pg. 335.

[3] BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984 v. 2, p. 267;

[4]FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Contratos. Teoria Geral e Contratos em Espécie. 15ª ed., rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2019.

[5]OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Incorporação de ações no direito tributário: conferência de bens, permuta, dação em pagamento e outros negócios jurídicos. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

[6]RUBINSTEIN, Flavio. VETTORI, Gustavo Gonçalves, Taxation of Investments in Bitcoins and Other Virtual Currencies: International Trends and the Brazilian Approach. IBFD, 2018.

[7] ANDRADE JR, Attila de Souza Leão. Comentários ao Novo Código Civil. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2022.