Dois grandes amigos se tornaram triatletas em 2023. O triatlo envolve a combinação desafiadora de natação, ciclismo e corrida em uma única prova conforme graus de dificuldade e modalidades distintas.
A grande sacada é que cada etapa importa – do sprint ao iron man. Para vencer os sucessivos desafios, o triatleta habilidoso deve conciliar performance e resiliência. A ordem é não desistir.
Em 2023 não me arrisquei no triatlo, mas tudo isso me fez lembrar de um outro campeonato de sucessivos obstáculos conhecido por quem atua com a regulação do setor elétrico no Brasil: a “abertura do mercado de energia elétrica”.
A possibilidade de consumidores contratarem livremente o fornecimento de energia foi concebida pela Lei 9.074, publicada em julho de 1995. A essa altura, consumidores de energia elétrica eram submetidos a um ambiente de contratação predominantemente regulado com amplo controle do Estado sobre as condições de oferta (tarifa regulada e pagamento conforme o consumo).
O normativo previu faixas mínimas de consumo (demanda e tensão) para que consumidores tivessem a opção de contratar o fornecimento de energia elétrica de produtores independentes, através de contratos bilaterais e com condições livremente negociadas, como preço, prazo, volume, remunerando as concessionárias de energia, quando aplicável, exclusivamente pelo uso das redes.
A ideia então era que essas faixas fossem gradativamente ampliadas nos anos seguintes até que todos os consumidores pudessem acessar o mercado liberalizado e os seus inúmeros benefícios, como o acesso a preços mais vantajosos, maior previsibilidade de custos, possibilidade de escolha do fornecedor e condições contratuais e a opção pelo consumo de energia elétrica proveniente de fontes renováveis .
Em 2004, a Lei 10.848 estabeleceu formalmente dois ambientes para comercialização de energia elétrica: o Ambiente de Contratação Livre (ACL) e o Ambiente de Contratação Regulado (ACR), e criou a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) como uma associação privada sem fins lucrativos que possui a atribuição legal de viabilizar e coordenar a comercialização de energia no Brasil.
De lá até aqui, quase 90 milhões de consumidores conectados ao SEB (Sistema Elétrico Brasileiro) têm vivido uma desafiadora prova de triatlo, com agruras e muitas vitórias, há mais de 20 anos.
Desde 1º de janeiro, mais uma etapa deste campeonato foi superada com sucesso: os consumidores conectados à média e alta tensão (Grupo A) estão aptos a migrar para o mercado livre de energia, com base na Portaria 50/2022 do Ministério de Minas e Energia (MME). A regra anterior determinava um limite mínimo de demanda (500 kW) para a migração, de modo que a opção estava disponível apenas para consumidores com contas superiores a R$ 50 mil por mês. Com a mudança, consumidores conectados à média e alta tensão com contas acima de R$ 10 mil terão a opção de migrar para o ACL.
O cenário é resultado de uma série de iniciativas regulatórias e do intenso debate público sobre a liberalização do mercado nos últimos anos, como a publicação das Portarias 514 e 465 pelo MME, em 2018 e 2019, respectivamente, e da realização da Consulta Pública 131/2022.
A economia para os consumidores que optarem por migrar para o mercado livre pode atingir até 30% em comparação ao mercado cativo, de acordo com pesquisa divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) em outubro de 2023. A possibilidade de que consumidores possam optar pela contratação de energia de fontes renováveis e certificadas poderá contribuir positivamente para a aceleração das agendas EGS de milhares organizações, transição energética e redução de impactos ambientais.
Segundo dados da CCEE, das 202 mil unidades consumidoras que compõem o Grupo A, 38 mil já estão no mercado livre e 93 mil aderiram a soluções de geração distribuída, havendo, assim, mais de 70 mil unidades aptas à migração a partir da primeira semana de 2024. Um grande avanço se considerarmos que em janeiro de 2023 o mercado livre contava com aproximadamente 11 mil unidades consumidores. Quase 13 mil unidades já solicitaram a migração junto às distribuidoras de energia, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Outro destaque importante é a consolidação do “agente varejista” criado pela Aneel em 2013 por meio da Resolução Normativa 570. Consumidores de médio porte são representados por agentes – especializados em comercialização de energia e vinculados à CCEE – responsáveis por cuidar de todos os processos e complexidades relacionadas à contratação no ambiente livre, com base em condições estipuladas entre cada agente “representante” e consumidor “representado”, por meio de contratos bilaterais que compreendem disposições regulatórias e comerciais.
Os comercializadores varejistas terão um papel crucial na transição do modelo de comercialização atual, já que grande parte dos consumidores desconhece as rotinas de comercialização de energia no ACL e de ser incontestável a assimetria de informação entre provedores, reguladores e consumidores relativa à regulação e operação do setor elétrico. A atuação dos agentes varejistas também contribuirá para a adaptação da CCEE a um ambiente ainda mais pulverizado, democrático e com uma infinidade de novas demandas.
Pequenas e médias indústrias, redes de farmácias, supermercados, postos de combustíveis, shopping centers, padarias e estabelecimentos comerciais de pequeno-médio porte, em geral, estão entre os perfis aptos à adesão ao mercado livre de energia e aos seus benefícios por meio da representação varejista.
Nos últimos meses de 2023, a Aneel realizou uma série de iniciativas importantes visando o aprimoramento da regulamentação aplicável à representação varejista, no âmbito da Consulta Pública 28/2023, com destaque para:
simplificação do processo de migração mediante a dispensa de documentos e exigências (como, por exemplo, a apresentação do diagrama unifilar ou adequação de medidores);
flexibilização do processo e prazo para a denúncia dos CCEARs firmados entre consumidores e distribuidoras;
redução do prazo de corte para consumidores inadimplentes, com diminuição dos riscos assumidos pelos comercializadores varejista);
utilização do Open Energy, possibilitando o compartilhamento dos dados de medição entre os agentes e terceiros;
centralização das informações de migração na CCEE.
Sem dúvidas, há um longo e virtuoso caminho trilhado até aqui, e outros tantos desafios até a linha de chegada.
Ainda hoje, aproximadamente 89 milhões de consumidores atendidos em baixa tensão estão submetidos (e continuarão) ao ACR e a uma das tarifas mais caras do mundo (vs. renda per capita), em razão de ineficiências operacionais do sistema e a cobrança de uma série de encargos e subsídios que encarecem a conta de energia no ambiente cativo, parte significativa (85%) é residencial e responsável por 35% do consumo.
Falas recentes do Executivo ressaltaram a importância da redução das assimetrias entre os ambientes de contratação – livre e regulado – no processo de liberalização completa do mercado. O vencimento de uma série de concessões de distribuição de energia deverá impactar ainda mais a relevância das discussões sobre o tema, no Congresso e no Executivo.
A revisão das atribuições e estrutura da CCEE – e do nível de interferência do governo federal – também serão pautas preponderantes em 2024. O movimento é fruto de demanda antiga do Executivo, tendo culminado na publicação do Decreto 11.835 em 20 de dezembro de 2023. Dentre as principais mudanças, o decreto estabelece: (i) destinação de novas fontes de recursos para a atuação da Câmara; (ii) extinção da sua Superintendência que se transforma em Diretoria; e (iii) a ocupação majoritária do Ministério de Minas e Energia no Conselho de Administração, com a indicação, além do presidente, já previsto atualmente, de outros três membros, de um total de oito.
Vale lembrar que a autonomia da CCEE ao longo dos últimos anos contribuiu para que muitos dos grandes desafios à liberalização do mercado fossem superados com a segurança jurídica e operacional necessárias.
Os dilemas são os de sempre. A liberalização do mercado de energia amplia as distorções existentes no setor? E sem isso, elas existiriam? Quais precisam ser superadas e com quais remédios? As respostas não são triviais.
É o que dissemos no início da conversa: cada etapa importa – de 1995 a 2024 (e adiante). Aos quase 90 milhões de triatletas “elétricos”, a ordem é não desistir. A linha de chegada é mais livre, democrática e sustentável.