Combatemos a escravidão contemporânea por dever constitucional e civilizatório. Mas não se enfrenta barbaridade com atalho. Quando a administração expõe nomes em um cadastro nacional — a “lista suja” — antes de um contraditório robusto e com base em conceitos elásticos, converte um instrumento de transparência em pena reputacional. E pena sem devido processo é linchamento, ainda que bem-intencionado.
O paradoxo é conhecido: repete-se que a lista “não sanciona; apenas publiciza decisões administrativas”. Na vida real, porém, linhas de crédito evaporam, contratos caem, mercados se fecham e a empresa vira sinônimo de culpa. O rótulo gruda antes de um juiz examinar a prova com serenidade e muito antes de se distinguir quem praticou o ilícito de quem apenas contratou um serviço ou comprou um insumo. Transparência é um valor; sem contraditório efetivo, vira castigo.
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Há, ademais, um problema operacional que a retórica não resolve. O Brasil adotou — corretamente — um conceito amplo de trabalho análogo ao de escravo; o problema está nas bordas. Expressões como “jornada exaustiva” e “condições degradantes” carecem de balizas objetivas mínimas. Onde termina o ilícito administrativo grave e começa o tipo penal? O que é “excessivo” fora de setores ou sazonalidades? Qual o padrão probatório exigido para afirmar servidão por dívida?
Sem métricas claras — horas-limite, indicadores de coação, padrões verificáveis de alojamento e higiene, evidências de cerceamento de liberdade — o mesmo fato pode receber diagnósticos distintos conforme o fiscal, a região ou a pauta do dia. Segurança jurídica não é capricho técnico; é a garantia de que o selo de infâmia não dependerá do olho de quem autua.
Também não é normal punir em cadeia por mera posição na cadeia produtiva. Responsabilizar quem explora trabalhadores é óbvio; outra coisa é impor efeitos automáticos a quem contrata ou compra sem prova de culpa in eligendo ou in vigilando.
O princípio da legalidade exige previsão clara; o devido processo (art. 5º, LIV e LV) exige contraditório real; a presunção de inocência (art. 5º, LVII) repele inversões confortáveis; e a personalidade da pena (art. 5º, XLV) impede que a punição passe a quem não praticou o fato. A jurisprudência sobre terceirização — ADC 16, ADPF 324, RE 958.252 e, sobretudo, o Tema 246 (RE 760.931) — já indicou que não há responsabilidade automática do contratante: exige-se prova de negligência na fiscalização. Transpor essa lógica para ilícitos graves na cadeia produtiva é coerente com o Estado de Direito: culpa provada, não presumida.
A Lei da Liberdade Econômica reforça esse vetor. Não se trata de blindagem empresarial, e sim de previsibilidade regulatória e vedação a abusos. Se o Estado pretende irradiar efeitos econômicos devastadores a partir de um cadastro, que o faça por lei, com critérios objetivos e previamente conhecidos. Portarias organizam; não criam, por via oblíqua, uma quase-sanção com base em tipos abertos. Dizer que a lista não é pena não muda o fato de que, para quem a sofre, os efeitos são punitivos — e, por isso mesmo, exigem lastro jurídico sólido e rito de defesa que não seja pro forma.
“Mas o STF validou a lista suja.” Sim: validou como instrumento de publicidade de decisões administrativas definitivas, e realçou o combate à escravidão como valor constitucional máximo (ADPF 509). Isso não autoriza atalhos. O próprio fundamento do tribunal — transparência, não sanção — cobra rigor processual e comprovação sólida. Publicidade só após o fim do contencioso administrativo, com janela judicial efetiva para evitar exposições indevidas quando houver plausibilidade de erro. Transparência é luz que informa, não holofote que queima.
Por que discordamos da ADPF proposta para derrubar a avocação ministerial?
Dizer “não aos atalhos” vale também para o uso da ADPF como atalho para resolver um caso concreto pela via abstrata. A ação proposta por entidade de classe contra o art. 638 da CLT busca, em síntese, (i) declarar a não recepção do dispositivo e (ii) suspender atos de avocação ministerial em processos específicos ligados à lista suja — invocando, inclusive, a “ampla repercussão econômica e jurídica” da inclusão no cadastro e a urgência de uma atualização próxima.
Ora, esses próprios argumentos confirmam que a lista produz efeitos punitivos intensos, razão adicional para exigir duplo cuidado com contraditório e controle de legalidade — inclusive por avocação excepcional e motivada. 
(1) Inadequação e subsidiariedade. A ADPF não pode virar sucedâneo recursal nem instrumento para dirigir resultados em processos administrativos concretos. Há meios processuais idôneos e menos drásticos para tutelar o sistema (interpretação conforme, controle difuso, mandados de segurança, ações próprias em casos paradigmáticos). O requisito da subsidiariedade (“inexistência de outro meio eficaz”) não se confunde com a opção mais conveniente do autor; menos ainda quando o pedido mira atos individualizados disfarçados sob uma capa abstrata.
(2) Caráter casuístico e risco de captura. A ação nasce de um caso determinadíssimo e pede medida estrutural para, na prática, impedir controles internos em situações de alto impacto econômico. Ao pretender abolir, por inteiro, a avocação, a ADPF troca o risco de interferência política por outro risco: a impossibilidade de corrigir erros graves e uniformizar entendimentos quando o próprio Estado reconhece efeitos econômicos massivos. Instrumentos de autocontrole não são vício; são exigência do art. 37, caput, lido com a Lei 9.784/1999 (avocação excepcional e motivada, art. 15).
(3) Independência da inspeção ≠ blindagem contra controle de legalidade. Invocar a Convenção 81 da OIT para abolir qualquer tutela hierárquica confunde independência técnica com irresponsabilidade orgânica. A Convenção protege a inspeção contra ingerência externa indevida; não proíbe, em um Estado democrático, controles jurídicos e uniformizadores no topo da Administração — sobretudo quando limitados a legalidade e racionalidade, e não a reavaliar prova como “quarta instância”.
(4) Conformação constitucional em vez de nulidade total. Mesmo para quem desconfia do art. 638 (texto de 1943), a solução constitucionalmente adequada não é a guilhotina, mas a interpretação conforme: (i) avocação excepcional, (ii) fundamentada em razões técnicas e jurídicas, (iii) voltada a uniformidade e controle de legalidade, (iv) com respeito à preclusão salvo vícios gravíssimos e (v) nunca usada como atalho político para favorecer A ou punir B. Invalidar o instituto em bloco criaria um vácuo que não melhora a proteção de direitos — só troca um problema por outro.
(5) Coerência com a própria ADPF 509. Se a lista é publicidade e não sanção, a tese da ADPF que clama por urgência para garantir a atualização do cadastro reconhece, na prática, o efeito sancionatório do rótulo. Isso reforça — e não enfraquece — a exigência de procedimentos mais exigentes antes de expor alguém, inclusive com instâncias de revisão interna.
O custo social do atalho também precisa entrar na conta. A cada inclusão apressada, empregos e fornecedores idôneos são atingidos; cadeias inteiras sofrem efeito dominó; o combate ao trabalho escravo perde legitimidade quando confunde pressão moral com certeza jurídica. Compliance sério vira culpa presumida; boa-fé vira omissão fabricada; o risco regulatório incentiva a informalidade — e é exatamente aí que as violações prosperam. Se queremos empresas vigilantes e cadeias limpas, o caminho é o oposto do atalho: lei formal, critérios objetivos e contraditório pleno.
O que fazer, então? (i) Positivar parâmetros: uma lei que estruture o cadastro deve definir, de modo operacional, quando há jornada exaustiva e condições degradantes, quais indicadores de coação e de servidão por dívida contam, como se distribui o ônus da prova e que evidências mínimas embasam a decisão administrativa. (ii) Tornar o devido processo real e tempestivo: audiência obrigatória, direito à produção de provas, prazo razoável e decisão técnica motivada — com publicidade apenas após a decisão administrativa final e com janela judicial efetiva (não retórica) para sustar exposições indevidas. (iii) Criar um safe harbor de due diligence: quem comprovar governança de cadeia (cláusulas de vedação, auditorias independentes, canais de denúncia, resposta rápida e remediação às vítimas) deve ter tratamento diferenciado; boa-fé não é impunidade, é critério. (iv) Tipificar por lei a responsabilidade em cadeia, de natureza subjetiva, dependente de nexo causal e culpa provada; solidariedade automática por mera posição na cadeia é atalho inconstitucional. (v) Qualificar a publicidade: junto com o nome, uma nota técnica com resumo das provas, espaço para resposta, plano de remediação exigido e monitoramento transparente — luz que esclarece, não holofote que queima.
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No contencioso individual, a defesa responsável não romantiza ninguém, mas parte de premissas elementares: legalidade estrita quanto aos efeitos de exposição pública; contraditório substancial e não simbólico; exigência de prova específica de negligência do tomador; proporcionalidade como antídoto a danos irreversíveis — inclusive com tutela de urgência para impedir publicidade até o julgamento de mérito —; e reafirmação da personalidade da pena para evitar a transferência punitiva a quem não praticou o ato. Isso não fragiliza a política pública; protege sua legitimidade e eficácia.
A “lista suja” só cumpre sua missão se for juridicamente confiável. Sem contraditório efetivo e com conceitos elásticos, viramos a chave da transparência para a execração pública. Erradicar o trabalho escravo não admite concessões — exige mais Direito, não menos. Pena sem processo não protege trabalhadores: destrói reputações e cadeias produtivas sem aumentar a justiça. O Brasil precisa de transparência que informe, due diligence que previna, remediação que repare e decisões que resistam ao escrutínio dos fatos e do Direito. O resto é ruído — e ruído, na praça pública, costuma virar pedra.