As águas irão baixar, mas a vida não voltará ao normal. Por mais esperançosos que sejamos, a crueza dos fatos se impõe. A catástrofe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul exigirá esforços e capacidades extraordinárias. E não há como começar a análise sem enaltecer o valoroso e exemplar trabalho da sociedade civil.
No descortinar da tragédia, ainda sem noção completa da gravidade do acontecido, milhares de homens e mulheres de bem, guiados pelo mais genuíno sentimento de solidariedade e compaixão, se jogaram águas adentro, correndo todos os riscos, para salvar vidas em naufrágio pela enchente. Ato contínuo, uma legião espontânea de voluntários, de todas as raças e classes sociais, prontamente estabeleceu sistema orgânico de acolhimento aos desabrigados, ofertando cama, comida e amparo, em gesto maiúsculo de preocupação com o outro à luz dos predicados de humanidade superior.
Sim, como gaúchos e gaúchas, não faltamos a nossas origens e melhores tradições cívicas, honrando uma história de bravura e superação nas horas mais difíceis. Todavia, o colapso que se abateu sobre o estado vai muito além do humanismo solidário, exigindo firme, decidida e robusta reação política. No caso, aliás, “reação” não é tirar foto, participar de comitivas de majestade, fazer videozinhos para redes sociais e outras pequenezas fúteis. A gravidade do momento exige seriedade, trabalho e liderança. Sem fingimentos nem jogadas de marketing.
No plano estadual, é preciso, urgentemente, categórico plano de retomada, apontando com clareza quais serão as obras prioritárias, quando começarão (se já não começaram), o custo orçado, de onde virá o dinheiro, quem fará e o prazo de execução. Provavelmente, devem existir ideias sobre o papel. Mas de números, planilhas, gráficos etc., as pessoas estão fartas; exigem – com razão – soluções concretas. E, para termos soluções efetivas, a política terá que cumprir com seu dever e entregar aquilo que lhe cabe. Sem firulas ou palavras vazias.
Do governo federal, além do aporte imediato e concreto de recursos financeiros para a reconstrução, imperativo a implantação de programa de preservação de empregos e renda em favor trabalhadores e empresas atingidas pelos duros impactos da tragédia. Definitivamente, não bastam distantes linhas de crédito futuro nem auxílios ínfimos às famílias atingidas. Ora, a ajuda do Planalto há de ser real e à altura da tragédia de gigantescas proporções. Aliás, diante de tantas demagogias e mentiras, o povo do Rio Grande requer e exige respeito.
Em tempo, o artigo 21 da Constituição Federal estabelece que “compete à União” planejar e promover “a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (inciso XVII).
Para bem cumprir com o desiderato constitucional, foi previsto que, “com propósito exclusivo de enfrentamento da calamidade pública e de seus efeitos sociais e econômicos, no seu período de duração, o Poder Executivo federal pode adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras que assegurem, quando possível, competição e igualdade de condições a todos os concorrentes, dispensada a observância do § 1º do art. 169 na contratação de que trata o inciso IX do caput do art. 37 desta Constituição, limitada a dispensa às situações de que trata o referido inciso, sem prejuízo do controle dos órgãos competentes”(art. 167-C, CF).
Ratificando o norte hermenêutico, a colenda Suprema Corte (Pleno, j. 11.11.2021), externou que “compete à União promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, impondo-lhe atuar como ente central de planejamento e coordenação em situação de emergência sanitária, ‘(…) inclusive no tocante ao financiamento e apoio logístico aos órgãos regionais e locais de saúde pública’ (ADPF 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Plenário)”.
Ora, a gravidade aguda da tragédia impõe a adoção de medidas urgentes e inadiáveis. Sem cortinas, a estrutura logística do Rio Grande do Sul está ostensivamente destruída; não se trata apenas da explosão do custo de transporte e distribuição de mercadorias, mas também impedimento de acesso a matérias primas e insumos com consequente paralisação da produção.
A economia do RS sairá estraçalhada como um todo. Um sem número de micro e pequenas empresas estão acabadas e fecharão suas portas. Milhares de pessoas voltarão para suas casas e sentirão a amargura de ver tudo que tinham levado ou destruído pela força das águas. A insatisfação social será crescente; a violência e a criminalidade eclodirão nas trevas do caos; se nada for feito, o aumento da pobreza será epidêmico, profundo e de longa duração. Portanto, é preciso agir, agora! Palavras, decididamente, não bastam.
Em seu histórico discurso de despedida do Senado, a sabedoria de Paulo Brossard – homem público modelar que jamais faltou ao Rio Grande – sinalizou o norte do futuro: “não é possível continuar dividindo o Brasil entre afortunados e os malvistos e os malquistos, e especialmente, partindo do fato de que estamos nós em uma situação de tamanha delicadeza, que é preciso conjugar esforços, e esforços que haverão de hercúleos para que este país continue a ser uma terra de liberdade e de tolerância recíproca”. Nos campos, nas coxilhas, nas querências e no céu da nossa terra, o caminho é um só: a indisputável união e a capacidade de somar esforços em prol de ações virtuosas.
Mas será que temos políticos para tanto?