Trabalho infantil e tráfico de drogas: visibilizar para proteger

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Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o trabalho é proibido para pessoas com menos de 13 anos. Entre os 14 e os 16 anos, admite-se o trabalho na condição de aprendiz. Apenas a partir dos 16 anos é que se tem uma permissão parcial, sendo avaliada a natureza da atividade. Atividades que configuram trabalho noturno, insalubre e perigoso são proibidas em todas as hipóteses. Apesar deste marco legal, o trabalho infantil se apresenta como uma marca herdada da colonização e persiste em nosso país.

Segundo dados do IBGE, 1,9 milhão de crianças e adolescentes trabalhavam no país em 2022. Dessas, 756 mil exerciam alguma das atividades listadas na Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) como “Piores Formas de Trabalho Infantil”, por oferecerem altos riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e adolescentes. Fazem parte dessa lista: formas de escravidão, exploração sexual e recrutamento de crianças para atividades ilícitas, especialmente para a produção e tráfico de entorpecentes.

Aqui, iremos focar no caso do trabalho infantil no mercado de drogas ilícitas e na flagrante ambiguidade jurídica em relação ao tema. Isso porque, por um lado, as normativas internacionais que enquadram o tráfico de drogas como trabalho infantil determinam ações públicas imediatas para a eliminação da situação e proteção dos atingidos. Por outro lado, o Sistema de Justiça Juvenil brasileiro entende o envolvimento no tráfico como um ato infracional passível de aplicação de medida socioeducativa, incluindo aquelas que envolvem privação de liberdade.

Hoje, o tráfico de drogas é o delito que mais gera processos e condenações de menores de idade no país. Crianças e adolescentes que são envolvidas nessa atividade se encontram em uma condição paradoxal: enquanto são vítimas da situação de trabalho infantil, são também enquadrados como perpetradoras de atos infracionais.

Neste cenário, com o objetivo de investigar as diferentes facetas desse fenômeno, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, através da Secretaria de Segurança e Prevenção, encomendou ao Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) e ao Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS) a pesquisa “Trabalho Infantil e Tráfico de Drogas: Entre a Proteção e a Criminalização de Jovens em Belo Horizonte”.

A pesquisa foi executada entre os anos de 2021 e 2024 na regional leste da capital mineira, identificada como L4 e em algumas unidades socioeducativas nas quais adolescentes se encontravam em privação de liberdade, decorrente da prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas.

Este texto apresenta alguns dos dados que foram construídos e analisados durante a pesquisa. Através da divulgação de informações fundamentadas esperamos contribuir para um novo olhar para esse problema que é tão antigo.

Os resultados analisados indicam que o trabalho infantil, em suas diversas facetas, está associado à necessidade de independência financeira de crianças e adolescentes frente às condições de precariedade laboral e falta de acesso a bens de consumo de seus pais.

Assim, o trabalho é visto de forma pragmática, como meio de garantir subsistência e ajudar no sustento familiar — a remuneração é o principal motivador dos envolvidos. Em sua maioria, os adolescentes ouvidos começaram a trabalhar por volta dos 7 e 8 anos de idade. Geralmente, a primeira atividade desses jovens envolve a venda gêneros alimentícios nas ruas, mediante anuência familiar, refletindo a transmissão intergeracional do trabalho infantil.

Ou seja, foi possível identificar que os familiares também são vítimas desse tipo de trabalho e, em alguns casos, em condições análogas à escravidão. Além do trabalho nas ruas, as famílias — predominantemente monoparentais maternas — muitas vezes redistribuem tarefas domésticas para os filhos mais velhos, especialmente as filhas. Essas meninas assumem responsabilidades pela casa e cuidado dos irmãos mais novos, reproduzindo relações raciais, de gênero e sociais históricas que relegam essas tarefas às mulheres e meninas negras.

Se no âmbito familiar o trabalho infantil costuma ser naturalizado e entendido como condição necessária para a garantia de subsistência, as escolas teriam o potencial de visibilizar e combater esta situação. Porém, nossa pesquisa também revelou que as instituições educacionais não têm conseguido cumprir essa missão. Não existem políticas públicas que ofereçam o adequado acompanhamento de famílias nesta situação, nem programas eficazes que possibilitem, de fato, a permanência das crianças e adolescentes no sistema escolar.

Essa é uma das piores consequências do trabalho infantil, já que contribui para um ciclo de aprofundamento de vulnerabilidades. Em alguns casos, inclusive, observamos que o início da trajetória escolar coincide com o início da trajetória laboral. Na circulação entre escola e trabalho, o trabalho costuma ter prioridade — as demandas imediatas da vida cotidiana não esperam.

Também investigamos o caso do trabalho infantil nas ruas. Diferentemente de vários outros tipos de trabalho, esse costuma ter uma espécie de prazo de validade, e dura apenas até a criança completar cerca de 12 anos de idade. Entretanto, o fim da trajetória laboral na rua não é fruto de políticas de erradicação, mas consequência da própria dinâmica da rua. Essa só é lucrativa na infância, pois as pessoas compram os produtos que esses vendem por comoção. Ao crescerem, deixam de sensibilizar os compradores.

Frequentemente, esses adolescentes, rejeitados pelas ruas, ainda sem idade para o ingressar no trabalho protegido, começam a flertar com o tráfico ilegal de drogas. Dessa forma, identificamos um imbricamento entre vários tipos de trabalho infantil. Todos os entrevistados que cumpriam medidas socioeducativas por tráfico de drogas tiveram experiências anteriores de exploração laboral quando crianças.

Nesse sentido, é importante destacar as “vantagens” que a mão de obra adolescente representa para o mercado de drogas: por um lado, a menoridade faz com que não respondam ao sistema de justiça criminal comum; por outro, já não são mais crianças, o que reduz o risco de  que eles “deem esparro”.

Logo, para o tráfico, é vantajoso que sejam jovens, mas não demasiadamente imaturos. É nessa fase da vida que muitos anunciam sua entrada no tráfico como uma oferta possível de ganho de dinheiro, de ascensão social, de construção de masculinidade, de valor social dentro de determinados grupos. O retorno financeiro do tráfico supera a renda familiar, desvalorizando os subempregos dos pais.

Se a relação entre escola e trabalho já é geralmente tensa, ela se torna quase impossível quando o jovem atua no tráfico de drogas. Nossa pesquisa nos revelou que, uma vez longe de instituições educacionais e inseridos no mercado de entorpecentes, os adolescentes dificilmente retomam suas trajetórias escolares.

As formas específicas de produção de capital no contexto do tráfico de drogas fazem com que todas as esferas das vidas dos sujeitos nele inseridos sejam atravessadas por sua atividade laboral. Nada escapa. Na maioria dos casos, a retomada dos estudos só acontece se decidem (e conseguem) sair do tráfico ou em breves períodos de cumprimento de medidas socioeducativas. A profissionalização se torna uma possibilidade ainda mais remota para estes jovens.

É de conhecimento público que a natureza do trabalho no tráfico de drogas implica uma série de riscos aos jovens. Muitos relataram, porém, que, ao contrário do que costuma acontecer no mercado legal de trabalho, essa atividade laboral se desenvolve em um contexto no qual não são discriminados em função de sua classe ou raça. O fenômeno do trabalho infantil é complexo e desconsiderar o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil é desumanizar crianças e adolescentes, além de relegá-los a uma situação de exclusão.

Assim, essas crianças e adolescentes são, mais uma vez, duplamente vitimizados: primeiro, pela exploração de sua mão de obra em atividades ilegais; e segundo, pela falta de reconhecimento de sua condição de vulnerabilidade. Novamente, ao invés de serem vistos como vítimas de estruturas sociais injustas, são culpabilizados individualmente e sujeitos a medidas socioeducativas.

Dessa forma, ao desconsiderar o contexto de exploração em que estão inseridos, o sistema penal contribui para a perpetuação de ciclos de desvantagem e exclusão. Reconhecer o tráfico de drogas como uma das piores formas de trabalho infantil é um passo fundamental em direção à proteção efetiva dos direitos de crianças e adolescentes.