TJs podem exercer controle abstrato de leis locais usando a CF como parâmetro?

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A Constituição Federal (CF) pode servir de parâmetro de representações de inconstitucionalidade perante os Tribunais de Justiça (TJs)? Em outras palavras, é possível no controle abstrato estadual declarar a inconstitucionalidade de leis locais por violação direta à Constituição Federal, e não à Constituição Estadual (CE)?

Durante um quarto de século (entre 1992 e 2017), parecia haver uma resposta uníssona e clara a tal questionamento: os TJs somente poderiam exercer o controle concentrado tendo por base a CE, sob pena de usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse entendimento, contudo, parece ter sido superado no Tema 484 da Repercussão Geral (Tema 484-RG). O escopo deste artigo é tentar esclarecer como ocorreu essa mudança de orientação e avaliar algumas de suas consequências para o sistema de controle brasileiro.

O Tema 484-RG e a possibilidade de dupla impugnação perante o STF e os TJs

No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 650.898/RS[1], paradigma do Tema 484-RG, o STF revisitou seu entendimento a respeito dos limites da jurisdição constitucional dos TJs. É que a CF estabelece duas modalidades de controle concentrado: aquele previsto pelo art. 102, I, “a” – de leis federais ou estaduais, perante o STF, com a própria CF como parâmetro; e o disposto no art. 125, § 2º – de leis estaduais e municipais, perante os TJs, em face das CEs.

Ocorre que esse arranjo traz consigo ao menos dois problemas práticos: (i) o que fazer caso uma lei municipal viole a CF, já que o seu controle em abstrato compete aos TJs, mas a guarda da CF cabe ao STF? E, (ii) caso a CE reproduza norma da CF ou lhe faça expressa remissão, o TJ pode utilizá-la como parâmetro sem usurpar a competência do STF?

Na busca por essas respostas, o STF resgatou a paradigmática Reclamação (Rcl) nº 383/SP,[2] que pioneiramente pacificou o entendimento. No entanto, o que incialmente apontava para sua reafirmação, julgados recentes indicam que o Tema 484-RG levou à sua superação – ao menos tácita –, o que traz repercussões do sistema de controle. Para melhor compreensão, importante contextualizar o julgamento da Rcl 383/SP.

A solução na Rcl 383/SP e (im)possibilidade de se utilizar a CF como parâmetro em ADI estadual

A Rcl 383/SP foi ajuizada pelo Município de São Paulo, contra decisão liminar proferida pelo TJSP que suspendeu a vigência de lei municipal que dispunha sobre base cálculo e alíquota do IPTU, por entender que haveria violação a artigos da Constituição paulista, que expressamente reproduzem disposições da CF.

O debate foi intenso entre os Ministros a respeito de qual seria a solução para os casos em que os TJs, ao realizarem o controle abstrato de leis municipais, utilizassem normas da CF como parâmetro, mesmo se expressamente reproduzidas na CE.

Grande parte da discussão tratou do alcance do art. 125, § 2º, da CF e do conceito de CE, se seria formal – i.e., tudo aquilo ali inserido, abrangendo, inclusive, as normas reproduzidas/imitadas da CF – ou material – i.e. apenas aquelas normas que fossem de efetiva expressão do Poder Constituinte estadual, sem paralelo na CF ou que não fossem de reprodução obrigatória, mas que o constituinte estadual deliberadamente optou por incorporar ao seu ordenamento.

De qualquer forma, era unânime entre os ministros a impossibilidade de TJs utilizarem norma diretamente da CF como parâmetro em sede de controle abstrato, sob pena de usurpação de competência do STF. A dúvida, no entanto, era se norma da CE – que reproduz norma da CF – poderia servir de parâmetro nesses casos.

Formaram-se, então, duas correntes: (i) a proposta do relator, ministro Moreira Alves, adotando um conceito formal de CE, com a abertura da via do RE, após o julgamento da ADI pelo TJ, para que, só então, o STF verificasse se a CF foi violada; e (ii) a proposta do ministro Carlos Velloso, a partir de um conceito material de CE, com a possibilidade de ajuizamento de reclamação no caso de utilização de normas da CE que reproduzem a CF, pois competiria privativamente ao STF a guarda da CF.

Prevaleceu, ao fim, a tese do ministro Moreira Alves. A conclusão do julgamento foi a seguinte: nos termos do art. 125, § 2º, da CF, não é possível negar aos TJs a guarda da Constituição de seu Estado mediante controle de constitucionalidade das leis locais, ainda que as normas da CE se limitem a reproduzir preceitos da CF. Todavia, o controle desse julgamento local, se necessário para preservar a CF, pode ser promovido pelo STF, via do RE, nos casos em que o TJ adote como parâmetro norma da CE de reprodução obrigatória da CF.

O caso concreto do RE 650.898/RS e a confusão no Tema 484-RG

A discussão a respeito dos limites do controle de constitucionalidade exercido por TJs foi preliminar à questão de mérito do Tema 484-RG – possibilidade de concessão de gratificação natalina, ou de outras espécies remuneratórias, a detentor de mandato eletivo remunerado por subsídio. Assim, inicialmente, o STF analisou se os arts. 8º e 11 da Constituição do Rio Grande do Sul – normas remissivas que expressamente incorporaram, no ponto, as disposições da CF – serviriam como parâmetro para o TJ local apreciar a constitucionalidade de lei municipal que instituía essa gratificação.

Os ministros que se estenderam sobre essa questão preliminar utilizaram como razão de decidir a existência de jurisprudência pacífica sobre o tema – a saber, a paradigmática Rcl 383/SP, bem como as Rcls 733/BA e 10.406/GO[3]. Concluíram, assim, que TJs podem utilizar norma de reprodução obrigatória da CF como parâmetro, contanto que estejam expressamente reproduzidas – ou que lhe façam expressa remissão – nos textos das CE, que seria, de fato, o parâmetro de controle (causa de pedir).

É assim, por exemplo, do voto do ministro Marco Aurélio: “O que define a viabilidade do processo objetivo estadual é o parâmetro de controle evocado na inicial, sendo irrelevante que a norma tida por violada revele reprodução de normas constitucionais federais, por transposição ou por remissão [sem menção à omissão]”. No mesmo sentido, o voto do ministro Luiz Fux: “é possível que o Tribunal de Justiça analise a compatibilidade da daqueles atos perante a Constituição Estadual quando ela faz remissão às normas previstas na Constituição Federal [ressalvando que a hipótese se aplica quando ocorrer a remissão, que, afinal, deve ser expressa]”.

No ponto, deve-se ter em mente que os julgamentos do STF, mesmo em sede de Repercussão Geral, devem ter pertinência com o recurso submetido a seu juízo – i.e., com o quadro fático-processual do RE paradigma – para formar um precedente.[4] É que, como se sabe, precedente não equivale à decisão judicial em si, nem ao entendimento sumarizado em um enunciado – como a Tese da RG –, mas às razões jurídicas necessárias, suficientes e generalizáveis, identificadas a partir da decisão judicial[5]i.e., a ratio decidendi da questão enfrentada pelo Tribunal.

No caso do RE 650.898/RS, o parâmetro de controle foi a própria CE – que, ao fazer remissão à CF, expressamente incorporou a norma de reprodução obrigatória em seu ordenamento. Dessa forma, o STF entendeu que o TJ local é competente para julgar a ADI estadual, diante do parâmetro invocado, exatamente nos termos da Rcl 383/SP.

É dizer, a partir do caso sub judice e pela conclusão a que se chegou, o STF parece ter reafirmado sua jurisprudência sobre os limites da jurisdição constitucional de TJs – agora consolidado no Tema 484-RG.

Ocorre que a redação da tese fixada não reproduz fielmente a solução do caso concreto nem a ratio decidendi do acórdão: “1) Tribunais de Justiça podem exercer controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais utilizando como parâmetro normas da Constituição Federal, desde que se trate de normas de reprodução obrigatória pelos Estados”.

Com efeito, o problema que se identifica é que, tal como redigida, essa tese dá margem ao entendimento de que TJs poderiam utilizar, diretamente, norma da CF, desde que de reprodução obrigatória, como parâmetro em ADI estadual – o que foi, unanimemente, rechaçado pelo STF durante o julgamento da Rcl 383/SP.

Os precedentes subsequentes do STF que aplicaram o Tema 484-RG

Como, a partir de sua formação, o precedente adquire força normativa e se irradia para outros casos, vale verificar como o STF tem aplicado essa confusão entre os entendimentos na Rcl 383/SP e no Tema 484-RG. Para tanto, seleciona-se[6] os julgamentos das ADIs 5.646/SE[7] e 5.647/AP.[8]

Em ambos os casos, o STF analisou a constitucionalidade de dispositivos de Constituições Estaduais que atribuíram aos respectivos TJs a competência para analisar a constitucionalidade de leis municipais em face da Constituição Federal.

Ao fazê-lo, a Corte reconstruiu sua jurisprudência, analisando a evolução de seu entendimento. Em um primeiro momento, a Rcl 383/SP; depois, as Rcls 733/BA e 10.406/GO, para então, se chegar ao Tema 484-RG. A conclusão foi no sentido de conferir interpretação conforme aos dispositivos das CEs, para autorizar que TJs julguem ADIs de leis municipais em face da CF, quando o parâmetro se tratar de norma de reprodução obrigatória.

Investigando-se os precedentes invocados na fundamentação dos acórdãos, a jurisprudência não parece ser tão pacífica quanto os votos levam a crer.

Todos reproduzem a ratio decidendi da Rcl 383/SP e das Rcls 733/BA e 10.406/GO – no sentido de que, mesmo no caso de norma da CF de reprodução obrigatória, o parâmetro de controle concentrado estadual deve ser a CE –, com exceção de dois, que autorizariam o controle mesmo nos casos de omissão na norma estadual: o RE 598.016-AgR/MA e a Rcl 6.344-ED/RS.

Na Rcl 6.344-ED/RS[9], julgada 6 meses após a fixação do Tema 484-RG, a Primeira Turma, em sessão virtual, afirmou que “Essa entrada [das normas de reprodução obrigatória da CF aos ordenamentos estaduais] pode ocorrer, seja pela repetição textual do texto federal, seja pelo silêncio dos constituintes locais afinal, se sua absorção é compulsória, não há qualquer discricionariedade na sua incorporação pelo ordenamento local”. Ao fazê-lo, citou três precedentes que teriam adotado esse sentido.[10]

Ocorre que o único precedente dentre os citados na Rcl 6.344-ED/RS que traz entendimento semelhante –i.e. da desnecessidade de reprodução/remissão expressa – é exatamente o outro caso citado no julgamento das ADIs 5.646/SE e 5.647/AP: o RE 598.016-AgR/MA,[11] que assim consignou: “Essa omissão [de a CE não incorporar textualmente norma entendida pela Turma como de reprodução obrigatória] não há de, no entanto, constituir óbice capaz de justificar o não julgamento da matéria posta à apreciação do Tribunal de Justiça local”, citando como precedente um RE que nada falou a respeito, senão reafirmou o entendimento da Rcl 383/SP.

Ou seja: houve uma decisão isolada, em 2009 (RE 598.016-AgR/MA), por uma das Turmas; que, por sua vez, foi replicada em outra decisão isolada, em 2017 (Rcl 6.344-ED/RS), também por uma das Turmas. Esses posicionamentos inovadores e isolados, aliados à redação da Tese 484-RG, serviram como fundamento para decisões do Plenário, em sede de ADI, que firmaram entendimento vinculante em contradição com o que se tinha por efetiva jurisprudência “pacífica” do STF.

De qualquer forma, os precedentes firmados após o julgamento do Tema 484-RG parecem não deixar dúvidas. A jurisprudência da Corte evoluiu para admitir exatamente a Tese 484-RG: os TJs podem, sim, utilizar a CF diretamente como parâmetro de controle – independentemente de reprodução ou remissão expressa na CE –, desde que se trate de norma de reprodução obrigatória.

Conclusão

Demonstrou-se que a Tese 484-RG foi fixada em caso no qual a CE reproduzia norma de reprodução obrigatória da CF. Não houve qualquer deliberação no sentido de superar a Rcl 383/SP, nem de autorizar o controle estadual tendo a CF como parâmetro direito. No entanto, a redação da tese deu azo a precedentes posteriores que adotaram fundamento que se afasta, ao menos em parte, da ratio decidendi da Rcl 383/SP. Com efeito, a partir da Tese 484-RG, o STF parece ter adotado, como se predominante fosse, a orientação firmada em 2009 em precedente isolado – e, diríamos, esquecido – da Segunda Turma no RE 598.016-AgR/MA, que autorizou o controle abstrato estadual com base em normas da CF.

Como exposto acima, a Rcl 383/SP tinha como pressuposto o conceito formal de Constituição, no sentido de que o parâmetro do controle abstrato estadual seria tudo aquilo que estivesse na CE, independentemente de seu conteúdo. Caso a norma utilizada como parâmetro fosse de reprodução obrigatória da CF, então estaria viabilizada a revisão do acórdão pelo STF por meio de RE. Por outro lado, como pressuposto, estaria obstado o controle abstrato pelo TJ tendo por parâmetro norma extraída diretamente da CF – ou seja, não reproduzida na CE – pois, nesse caso, se estaria usurpando a competência do STF.

A nova orientação rompe com o substrato lógico estabelecido na Rcl 383/SP, já que normas de reprodução obrigatória da CF, ainda que não reproduzidas na CE, passam a compor o parâmetro de controle estadual. Ou seja, abandona-se o conceito formal de Constituição, evoluindo-se para um conceito híbrido: é parâmetro do controle abstrato estadual tanto as normas da CE (formal), quanto as normas da CF de reprodução obrigatória, ainda que não reproduzidas (material).

Por óbvio que a consistência da tese inicialmente firmada na Rcl 383/SP é colocada em xeque nessa nova conformação, na medida em que haverá sobreposição da competência do STF e dos TJs com relação ao controle concentrado da CF. Para além desse aspecto crítico, algumas consequências exsurgem nesse novo cenário.

O cabimento de ADPF contra leis municipais, por exemplo, passa a ser uma hipótese remota. É que, se os TJs podem realizar o controle de constitucionalidade tendo como parâmetro todas as normas de reprodução obrigatória – e preceitos fundamentais, logicamente, o seriam, afinal, são fundamentais –, então, pelo princípio da subsidiariedade, não caberia ADPF, porque se poderia ajuizar ADI estadual – processo que também visa à tutela da ordem constitucional objetiva e possui aptidão para sanar lesões de forma ampla, geral e imediata[12].

Ademais, é de se questionar se não seria o caso de se admitir que os TJs julguem ADIs tendo como parâmetro normas da CF de maneira indiscriminada, já que o conceito de norma de reprodução obrigatória é de difícil definição, sempre havendo uma zona cinzenta, notadamente no que concerne ao princípio da simetria. Além disso, grande parcela das normas das CEs é reprodução da CF, de maneira que o controle abstrato estadual já compete, na maioria das vezes, com o controle exercido pelo STF.

Aceitar que a CF em sua integralidade sirva de parâmetro para as ADIs estaduais poderia representar um importante passo no aprimoramento do sistema de controle brasileiro, já que seria possível imaginar um novo desenho institucional em que o STF apreciaria a constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais e municipais apenas em grau recursal, em sede de RE com repercussão geral reconhecida. Tal medida, além de conferir maior racionalidade ao sistema, extirpando a possibilidade de dupla impugnação, diminuiria a quantidade de ADIs no acervo do STF, que é um dos grandes gargalos de sua jurisdição.

[1] RE 650.898-RG/RS, rel. Min. Marco Aurélio, redator para o acórdão Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe de 24/8/2017.

[2] Rcl 383/SP, rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ de 21/5/1992.

[3] Rcl 733/BA, rel. Min. Ilmar Galvão, Tribunal Pleno, DJ de 28/4/2000; Rcl 10.406/GO, rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, DJe de 6/9/2010. Nesses casos, o STF admitiu que normas da CE de caráter remissivo – i.e. que remetem para as disposições da CF – servem como parâmetro de controle nos TJs.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Processo constitucional e democracia. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 587-588.

[5] MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 83, 89-99.

[6] Esses casos ilustram uma virada jurisprudencial, porque superou-se entendimento antigo do STF de que disposições de CEs com teor idêntico eram inconstitucionais. Nesse sentido, cf.: ADI 347-MC/SP, rel. Min, Moreira Alves, Tribunal Pleno, DJ de 26/10/1990; ADI 409-MC/RS, rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ de 15/3/1991; ADI 508-MC/MG, rel. Min. Octávio Gallotti, Tribunal Pleno, DJ de 23/8/1991.

[7] ADI 5.646/SE, rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe de 8/5/2019.

[8] ADI 5.647/AP, rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe de 17/11/2021.

[9] Rcl 6.344-ED/RS, rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe de 17/8/2017.

[10] RE 598.016-AgR/MA, rel. Min. Eros Grau; SL 10-AgR/SP, rel. Min. Maurício Corrêa; Pet 2.788-AgR/RJ, rel. Min. Carlos Velloso.

[11] RE 598.016, rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe de 13/11/2019.

[12] Essa parece ser a posição atual do STF, vide ADPF 703-AgR, rel. Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe de 25/02/2021.