O sistema de Justiça brasileiro convive com um paradoxo estrutural. Segundo o relatório “Justiça em Números 2024”, publicado pelo CNJ, o tempo médio de tramitação dos processos pendentes alcança 4 anos e 3 meses[1]. A estatística evidencia uma contradição cruel: a Constituição de 1988 assegura a todos o direito de acesso à Justiça, mas a morosidade converte esse direito em uma espécie de promessa eleitoreira, incapaz de tutelar, de modo efetivo, milhões de cidadãos que recorrem ao Poder Judiciário[2].
O artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição estabelece a razoável duração do processo e a celeridade da tramitação como direito fundamental. Mais de três décadas após a promulgação da Carta de 1988, essa cláusula permanece entre as mais desrespeitadas no Brasil, demonstrando a distância abissal entre o direito enunciado e o direito vivido por milhões de jurisdicionados.
Não se trata de preocupação recente. José Rogério Cruz e Tucci, em obra clássica (“Tempo e Processo”, 1997), já advertia que o tempo, ao lado do custo, deveria condicionar não apenas a condução processual, mas também a própria atividade legislativa[3]. Já em 1997, o Professor Tucci declarou a falência de um modelo que, mesmo após sucessivas reformas, ainda não foi capaz de enfrentar estruturalmente o problema da morosidade processual.
As respostas legislativas ao longo das últimas décadas — tutela antecipada, ação monitória, juizados especiais, CPC de 2015 — foram importantes, mas não resolveram a questão do tempo no Processo Civil. Promoveram avanços pontuais, sem, contudo, resolver o núcleo da questão: a incapacidade estrutural do Judiciário de lidar com a sobrecarga decorrente de um modelo que abriu indiscriminadamente as portas do acesso formal, sem calibrar critérios de filtragem ou adequar os ritos à natureza e complexidade das demandas.
A pandemia e a implementação da “Justiça EAD” na marra fizeram mais pela celeridade processual do que as repetidas iniciativas legislativas.
O Brasil, entretanto, preferiu privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade, opção que democratiza o ingresso, mas compromete dramaticamente a saída. O resultado é perverso: Justiça lenta para todos, mas paradoxalmente mais útil a quem menos precisa de celeridade. Nesse contexto, experiências internacionais de uma espécie de “justiça formulário”[4] revelam potencialidades ainda não adequadamente exploradas pelo sistema brasileiro. Demandas de baixa complexidade poderiam ser resolvidas mediante procedimentos padronizados e mais simplificados, mediante o uso da jurimetria, que é o que deveria sustentar um verdadeiro sistema de precedentes no Brasil.
A análise de Marc Galanter em “Why the Haves Come Out Ahead” oferece a chave interpretativa para compreender essa dinâmica perversa[5]: o tempo é estrategicamente utilizado por grandes litigantes, sobretudo quando figuram no polo passivo de demandas. Para esses repeat players, a demora não é obstáculo, mas ativo e leverage — prolonga negociações e desgasta econômica e psicologicamente o adversário
Já para os vulneráveis — consumidores, trabalhadores, pequenos empresários, hipossuficientes em geral — o tempo processual constitui um inimigo intransponível. Cada mês adicional de tramitação significa custo desproporcional à sua capacidade econômica, por vezes capaz de inviabilizar não apenas a continuidade do litígio, mas a própria subsistência familiar ou do pequeno negócio. O tempo, como se vê, não é neutro e afeta a imparcialidade da tutela jurisdicional.
É nesse cenário de assimetria temporal que instrumentos de mercado e inovação financeira podem ganhar relevância. A cessão de créditos litigiosos, a venda de expectativas de direito e, sobretudo, o financiamento por terceiros (litigation finance) surgem como mecanismos tecnicamente aptos a redistribuir o risco temporal de forma mais equitativa. A substituição processual ativa (ainda em fase de conhecimento) permite que atores econômicos mais robustos assumam voluntariamente o ônus da demora, empoderando o vulnerável e reequilibrando as forças processuais.
Esses instrumentos não são apenas inovações financeiras ou expedientes de mercado: devem ser vistas como possíveis ferramentas de inclusão social, aptas a superar assimetrias históricas estruturantes do nosso sistema de Justiça. Ao deslocar o peso econômico do tempo para agentes que possam suportá-lo, ampliam-se substantivamente as condições de igualdade material na litigância e evita-se a perpetuação de uma Justiça bifurcada: ágil para quem pode pagar pela celeridade, morosa para quem mais necessita dela.
O tempo processual, longe de constituir variável neutra ou meramente técnica, pode ser entendido como critério de exclusão social quando mal administrado pelo sistema de Justiça. Cumprir a promessa constitucional da duração razoável do processo exige mais do que reformas legislativas pontuais: impõe um diálogo institucional inovador e permanente entre Judiciário, legislador e mercado, com vistas à construção de instrumentos normativos e econômicos aptos a redistribuir, de forma sustentável, os custos sociais da morosidade processual.
[1] Referência: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2025/04/justica-em-numeros-2024.pdf?utm_source=chatgpt.com, acesso em 31 de agosto de 2025, às 09h54min.
[2] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Os reflexos do tempo no direito processual civil (anotações sobre a qualidade temporal do processo civil brasileiro e europeu). Revista de Processo, São Paulo, v. 153, p. 99-117, nov. 2007.
[3] CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
[4] Como o Formularverfahren” (Alemanha e Áustria) e a “Ordonnance d’injonction de payer” (França), por exemplo.
[5] GALANTER, Marc. Why the haves come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law & Society Review, [s. l.], v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.