“Cada um de nós é culpado de tudo e por todos“. Na célebre passagem de “Os Irmãos Karamázov”, Dostoiévski nos oferece uma provocação moral sobre a responsabilidade, que transcende a esfera individual para se projetar como um imperativo ético de solidariedade coletiva.
No epicentro dessa responsabilidade compartilhada por justiça social, encontra-se o STF, convocado a decidir o destino de milhões de brasileiros vítimas de danos em massa. No julgamento do Tema 1.270, discute-se a legitimidade do Ministério Público para promover a execução coletiva de direitos individuais homogêneos.
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Este breve ensaio busca contribuir para o debate sub judice, nutrindo duplo propósito: i) reunir fundamentos que sustentem a legitimidade do Ministério Público para a execução coletiva; ii) alertar para os riscos de retrocesso quanto à legitimidade da Defensoria Pública.
I – Colocando a problemática
Todo aquele que se aventura no estudo do processo coletivo percebe logo de saída dois grandes problemas em relação ao processo civil individual. O primeiro diz respeito à legitimidade: se a coletividade – muitas vezes indeterminada – não pode estar em juízo, a quem incumbe a defesa de seus interesses? Já o segundo refere-se à execução: uma vez reconhecida judicialmente a responsabilidade pelo dano, como assegurar a cada cidadão lesado aquilo que lhe é devido?
Ambos os desafios são faces de uma mesma moeda: os conflitos coletivos apresentam peculiaridades que os afastam dos litígios de base individual. É justamente essa distinção que justifica a necessidade de uma tutela jurisdicional diferenciada, dotada de técnicas capazes de oferecer mecanismos adequados para o tratamento destes conflitos, à luz de uma concepção ampliada de acesso à justiça.
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Ao julgar o Tema 1270 (RE 1.449.302), o STF é convidado a decidir sobre o segundo problema, o qual, como demonstrado, conecta-se umbilicalmente ao primeiro. Trata-se de definir quem deve assumir a responsabilidade pela concretização dos direitos individuais homogêneos já reconhecidos em uma sentença coletiva.
Eis a controvérsia fixada em sede de repercussão geral: “se o interesse público do qual se reveste o Ministério Público, enquanto legitimado extraordinário para propor a ação civil pública, alcança a perseguição do efetivo ressarcimento dos prejuízos globalmente causados pela pessoa que atentou contra as normas jurídicas de caráter público, lesando os consumidores, ou se a liquidação e/ou execução da sentença genérica sobre direitos individuais disponíveis deve ser processada individualmente pelos interessados”.
II – A (i) legitimidade do Ministério Público
O relator, Min. Dias Toffoli, votou pela ilegitimidade do Parquet para promover a execução coletiva de direitos individuais homogêneos, ressalvando as hipóteses de execução residual (fluid recovery) previstas no art. 100 do CDC. A tese central assenta-se na premissa de que a fase executiva veicularia interesses estritamente individuais e disponíveis, que extrapolariam as atribuições constitucionais do Ministério Público.
Essa leitura, contudo, subverte os princípios do processo coletivo e ignora a lógica de continuidade institucional que sustenta o sistema de tutela coletiva brasileiro. O paradoxo é evidente: o mesmo Ministério Público que detém legitimidade para atuar em nome da coletividade na fase de conhecimento passa, paradoxalmente, a ser considerado parte estranha à fase de liquidação e execução da sentença1.
Em termos práticos, a concretização de direitos já reconhecidos em sentença passa a depender da iniciativa atomizada dos indivíduos – em sua maioria, carentes de informação adequada, recursos financeiros ou condições reais de litigar – condicionando-se o acesso aos resultados assegurados judicialmente à execução individual.
Institucionaliza-se, assim, a indesejada lógica do “ganhou, mas não levou”, que transforma vitórias coletivas em frustrações individuais e esvazia de efetividade o sistema de tutela coletiva.
Não só. Esse entendimento estimula o ajuizamento de inúmeras ações individuais para a satisfação de créditos que, não raras vezes, poderiam ser reunidos em uma única execução coletiva2. E o faz sobrecarregando um Poder Judiciário já asfixiado por mais de 80 milhões de processos, o qual proclama como compromissos a coerência e integridade de seus julgados e a isonomia nos resultados produzidos (art. 926, CPC).
Como se vê, a execução coletiva de direitos individuais homogêneos não é apenas legítima: ela é desejável, mais eficiente e coerente com a lógica molecular do processo coletivo3.
Não por outra razão, o CDC consagra expressamente a coexistência das técnicas executivas individuais e coletivas no microssistema de processo coletivo. O artigo 97 é categórico ao dispor que “a liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82“. Tal redação evidencia uma legitimidade concorrente – e não excludente – entre as vítimas e seus sucessores e os entes legitimados para promoverem execuções individuais e coletivas4.
Essa compreensão revela-se particularmente salutar em face da realidade econômica dos litígios de massa. Em muitos casos, o custo-benefício5 da execução individual mostra-se desfavorável aos seus titulares, tornando economicamente inviável a busca pela reparação.
Paralelamente, situações de dano uniforme – como nas hipóteses de cobrança indevida de tarifas, mensalidades abusivas ou defeitos seriais em um mesmo produto – dispensam liquidações complexas, permitindo-se que o próprio magistrado promova a liquidação prévia da sentença, excepcionando-se a regra geral prevista no art. 95 do CDC.
Em ambos os casos, a execução coletiva da sentença é mais vantajosa. Interpretar o microssistema de maneira diversa implica não apenas violação ao texto legal, mas afronta aos princípios da economia processual, da máxima efetividade e da ampliação do acesso à justiça, fundamentos estruturantes da tutela jurisdicional coletiva.
Há, ademais, um elemento pragmático relevante que não pode ser desconsiderado nesse debate. A prática evidencia que as vítimas e seus sucessores – geralmente litigantes eventuais – enfrentam uma abissal disparidade de forças em relação aos réus das ações coletivas, via de regra litigantes habituais com amplo acesso a recursos jurídicos, econômicos, informacionais e tecnológicos.
Fatores como a dispersão individual das vítimas, a assimetria de informação, a vulnerabilidade técnica, a hipossuficiência econômica, a insuficiente oferta de assistência jurídica gratuita e a dificuldade de produção probatória tornam a execução coletiva não apenas conveniente, mas indispensável à consecução dos fins da tutela jurisdicional coletiva.
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As experiências dos desastres socioambientais de Brumadinho e Mariana, aliás, apontam para a essencialidade do regime concorrente de execuções individuais e coletivas para a efetiva reparação das vítimas atingidas. Dados oficiais da própria Vale S.A. revelam que a empresa indenizou apenas 14.680 pessoas atingidas pelo rompimento das barragens no caso Brumadinho, restando sem reparação individual mais de 90% do total previsto de pessoas atingidas (aproximadamente 159.192 beneficiários do Programa de Transferência de Renda)6.
Estes números ilustram categoricamente a dimensão do problema: sem a atuação das instituições legitimadas para promover a execução na forma coletiva, a imensa maioria dos atingidos permaneceria, na prática, alijada de qualquer forma de reparação.
Bem se vê, portanto, que reconhecer a legitimidade do Ministério Público para promover a execução coletiva de direitos individuais homogêneos não apenas se coaduna com o desenho normativo do microssistema coletivo, mas se impõe como exigência prática de uma jurisdição efetivamente comprometida com a justiça social.
III – Riscos à legitimidade processual coletiva da Defensoria Pública
O que está em jogo no Tema 1.270, porém, transcende a legitimidade do Parquet. Nesse ponto, merece atenção o obiter dictum constante do voto do Min. Dias Toffoli, que condiciona a legitimidade executiva da Defensoria Pública à prévia comprovação de insuficiência de recursos pelos beneficiários:
“[…] a par da relevância dos direitos sob escrutínio e da importância da instituição em si, que a Defensoria Pública só estaria autorizada a prosseguir com a liquidação e com a execução da sentença genérica em relação às pessoas que comprovarem insuficiência de recursos, ‘pois, nessa fase, a tutela de cada membro da coletividade ocorre separadamente, sendo possível atender apenas a esse grupo’”.
A prevalecer tal entendimento, não apenas se reduz indevidamente o alcance da atuação coletiva da instituição cidadã, como também se reaviva uma discussão ultrapassada e restritiva do conceito de “necessitado”, incompatível com a integralidade do modelo público de assistência jurídica previsto no art. 134 da Constituição Federal de 1988, após as modificações operadas pela EC nº 80/2014.
Ao prever a atuação da Defensoria Pública na tutela de direitos coletivos e na promoção dos direitos humanos, o constituinte derivado reformador ampliou de forma significativa o escopo de atuação institucional, reconhecendo que as necessidades da população não se restringem à pobreza material, mas abrangem situações de vulnerabilidade social, jurídica, informacional e, sobretudo, organizacional.
Essa interpretação evolutiva encontra respaldo no próprio microssistema de processo coletivo, consoante a Lei nº 13.300/2016, que atualizou o conteúdo e a extensão da legitimidade da Defensoria Pública para impetrar o mandado de injunção coletivo “quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados” (art. 12, IV).
E nem poderia ser diferente. Em um país onde mais de 88% da população enquadra-se como economicamente vulnerável7 (renda inferior a três salários mínimos), contraditório seria negar à Defensoria Pública legitimidade para a defesa e efetivação dos direitos transindividuais.
Por seu desenho institucional e vocação constitucional, a Defensoria Pública não só pode como deve figurar dentre os entes legitimados a promover à execução coletiva, isso independentemente da exigência de prova individual de hipossuficiência econômica ou da natureza do direito transindividual envolvido na demanda coletiva.
Se onde há a mesma razão deve haver o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus), a amplitude de interpretação do conceito de necessitado deve ser mantida ao longo de todas as etapas do processo coletivo, inclusive nas fases de liquidação e execução da sentença coletiva. Negar-lhe tal legitimidade posterior corresponderia a esvaziar a atuação institucional coletiva de efetividade, frustrando as necessidades sociais dos grupos que mais dela necessitam.
IV – Conclusão
O STF tem, portanto, a oportunidade histórica de reafirmar que a jurisdição coletiva não se esgota em sede declaratória, mas se projeta até a efetiva concretização dos direitos reconhecidos.
As funções essenciais à justiça – Ministério Público e Defensoria Pública – longe de meros espectadores das decisões judiciais, carregam o dever constitucional de assumir esse protagonismo sincrético (declaratório-executivo), dada sua vocação institucional para remover injustiças estruturais e proteger vulnerabilidades sociais8.
Que não se perca, na tecnicidade do debate, o horizonte de transformação social que anima o processo coletivo. Como nos adverte Dostoiévski, sejamos todos corresponsáveis por maior justiça social.
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1 “se existe interesse em se obter uma decisão, é evidente que também existe interesse em implementá-la. […] Ou há interesse social na recomposição patrimonial de cada uma das vítimas, que é o motivo que justifica o ajuizamento da ação, ou não há interesse sequer em dar início a ela”. ARENHART, Sérgio Cruz; ZANETI JR., Hermes; VITORELLI, Edilson. Liquidação e execução coletiva de obrigação de pagar quantia a indivíduos identificados: o Tema 1.270 da Repercussão Geral. Revista de Processo, vol. 357, ano 49, São Paulo: Ed. RT, nov./2024, p. 279.
2 “É preciso reconhecer que impedir os legitimados ativos coletivos de promoverem a liquidação e execução de pretensões individuais, além de contribuir para obstar o acesso à justiça, é medida que estimula o acionamento individual ao Poder Judiciário, contribuindo decisivamente para o aumento do número de demandas – que já é elevado”. ZUFELATO, Camilo. Parecer nos Autos do RExt n. 1.449.302 (Tema n. 1270), p. 15.
3 WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os problemas emergentes na práxis forense. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. As garantias do cidadão na justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 185-196.
4 Como alerta Maurílio Maia, o Tema 1.270 não trata da execução individual ou da atuação direta dos beneficiários na liquidação de sentenças genéricas, mas da possibilidade de execução coletiva por legitimados extraordinários no âmbito dos direitos individuais homogêneos. MAIA, Maurilio Casas. O tema 1.270 do STF entre legitimidade coletiva acessória e nomofilaquia. JOTA – Opinião e Análise. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-tema-1-270-do-stf-entre-legitimidade-coletiva-acessoria-e-nomofilaquia. Acesso em: 20 jun. 2025.
5 AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade econômica e processo – parte 1. JOTA – Direito dos Grupos Vulneráveis. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/vulnerabilidade-economica-e-processo-parte-1. Acesso em: 20 jun. 2025.
6 ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DE DEFESA AMBIENTAL E SOCIAL (AEDAS). Memorial nos Autos do RExt n. 1.449.302 (Tema n. 1270), p. 11.
7 ESTEVES, Diogo; AZEVEDO, Júlio Camargo de; GONÇALVES FILHO, Edilson Santana et al. Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2025. Brasília, DF: Defensoria Pública da União, 2025.
8 AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade e processo coletivo: primeiras reflexões. JOTA – Direito dos Grupos Vulneráveis. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/vulnerabilidade-e-processo-coletivo-primeiras-reflexoes. Acesso em: 20 jun. 2025.