A PEC 8/2021, em trâmite perante o Senado Federal, altera a Constituição para dispor sobre os pedidos de vista no STF, sobre a declaração de inconstitucionalidade e a concessão de medidas cautelares monocráticas.
O tema é sensível porque trata da separação entre os Poderes e mexe no equilíbrio entre eles. No entanto, é também um tema inevitável diante dos usos que o Supremo tem feito das cautelares monocráticas e da captura do tempo decisório pelos pedidos de vista.
Convém então perguntar: como pode o Legislativo estabelecer um contrapeso às disfuncionalidades que marcam o Supremo Tribunal Federal atualmente? Como estabelecer mecanismos de aprimoramento institucional que de fato contribuam para um funcionamento harmônico dos Poderes?
A PEC 08/2021 parece ser a melhor resposta produzida até aqui. E digo isso por 3 razões:
1 – Primeiro, porque limita o poder decisório monocrático dos ministros do Supremo sem reduzir sua autoridade. Pelo contrário, retoma e valoriza o Plenário do Tribunal.
2 – Segundo, porque regula o pedido de vista, impede que ele se transforme no “perdido de vista” e ainda aprimora a gestão do tempo dos julgamentos.
3 – Terceiro, porque a PEC 08/2021 é mais detalhada que a Emenda Regimental 58/2022, aprovada no fim do ano passado pelo STF.
Vejamos cada um desses três pontos.
1 – A PEC 08/2021 é positiva na limitação que faz de uma disfuncionalidade que tomou conta do Supremo e que o tem marcado nos últimos tempos: a concessão de medidas cautelares monocráticas. Nesse sentido, a PEC mitiga a monocratização e reforça a colegialidade do Supremo. É preciso dizer que, embora situações de urgência tenham levado à adoção desse mecanismo decisório, a concessão de medidas cautelares monocráticas nunca foi autorizada pela Constituição, pelo CPC, pela Lei 9.868/1999 e nem pelo Regimento Interno do STF.
A Constituição, aliás, foi expressa ao definir que o julgamento da medida cautelar em ADI é de competência do Supremo Tribunal Federal, órgão colegiado (art. 102, I, p).
A Constituição nunca autorizou medida cautelar monocrática, portanto. A Lei 9.868/1999 (Lei da ADI/ADC), também estabeleceu que a medida cautelar é colegiada – art. 10, caput. A medida cautelar monocrática em ADI até é possível, mas de forma excepcional, permitida apenas no período de recesso, por decisão do Presidente do Supremo (art. 10, caput, Lei 9.868). Assim, a Lei de processamento e julgamento da ADI também não autoriza a concessão de medida cautelar monocrática, salvo no período de recesso e por decisão do Presidente do STF.
O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ao disciplinar o processo e julgamento da ADI no âmbito do STF, também estabeleceu que o julgamento da ADI e de sua medida cautelar são de competência do Plenário do Tribunal (art. 5º, VII, X; art. 170, §1º, §3º; art. 173, todos do RISTF). Ou seja, competência colegiada [1].
O art. 21, V, do Regimento Interno, muito utilizado pelos ministros do STF quando concedem decisões cautelares monocráticas em ADI é norma de previsão geral sobre os poderes do Relator, e não sobre o processo da ADI. Ademais, o art. 21, V do RISTF não se aplica individualmente e a despeito ou em sobreposição às previsões específicas da Constituição, da Lei 9.868/99 e do próprio RISTF.
O poder geral de cautela, também muito invocado, é previsto no art. 139, IV do Código de Processo Civil. Mas, é igualmente norma geral e suas previsões devem ser aplicadas em conjunto, e não contra o processo específico de processamento e julgamento da ADI. A peculiaridade é nítida: nesse caso a tutela recai sobre a constitucionalidade de lei aprovada pelo Parlamento.
Ainda assim, ministros do STF têm concedido medidas cautelares monocráticas que suspendem os efeitos de leis. Existem caminhos e rotas de saídas possíveis para esses problemas, mas trato deles em outro trabalho. Aqui vou concentrar o olhar sobre as medidas estabelecidas pela PEC 08/21.
Embora a Emenda Regimental 58 aprovada pelo próprio STF tenha contribuído ao prever a submissão dessas medidas cautelares monocráticas imediatamente a referendo, a PEC 08/2021 avança na contenção dessa prática ao vedar expressamente concessão de decisão monocrática que suspenda a eficácia de leis ou atos normativos, com ou sem redução de texto.
Além disso, a PEC torna constitucional a previsão de cautelar monocrática excepcional durante o recesso, pelo Presidente do Supremo, e acresce ainda prazo de 30 dias para o referendo, contados da data de reinício dos trabalhos, sob pena de perda da eficácia da cautelar concedida.
A PEC estabelece, portanto, um contrapeso e uma correção ao estabelecer prazo certo e consequência nítida caso o prazo não seja respeitado.
A PEC segue o mesmo caminho em relação às decisões cautelares e de mérito em sede de ADI, ADC e ADPF. Ou seja, permite a cautelar, desde que seja colegiada, mas estabelece um prazo de 6 meses para o julgamento do mérito. Se não terminar o julgamento em 6 meses, o processo passa a ter preferência sobre todos os demais, sob pena de perda da eficácia da cautelar.
Essa previsão é bem-vinda, porque permite o exercício jurisdicional urgente com a cautelar, concede prazo razoável de 6 meses para que haja o amadurecimento procedimental das Ações (com prestação de informações, admissão de eventuais amici curiae e até mesmo realização de audiência pública) e estabelece uma consequência caso o próprio Tribunal não julgue o mérito. Ou seja, torna o Supremo mais responsável pelas suas cautelares e pelo julgamento do mérito impedindo a manipulação do tempo a qualquer tempo. É uma medida de contrapeso a eventual abuso do tempo (na concessão da cautelar ou julgamento do mérito), e de aprimoramento institucional quando estabelece consequências caso o Tribunal não julgue o caso.
2 – A PEC 08/2021 regulamenta de forma mais detalhada o pedido de vista e impede que ele se torne um “perdido de vista”.
Atualmente o pedido de vista dos Ministros do Supremo tem prazo de 90 dias (art. 134 RISTF). Passados os 90 dias, o processo fica automaticamente liberado para inclusão em pauta. Mas, dessa forma também é possível que cada ministro possa pedir vista por mais 90 dias. E de modo sucessivo. Não é comum. Mas, tampouco é impossível. E vencido o prazo, o Presidente do STF é quem decide se volta a julgar ou não o processo. Ou seja, a ER 58/2022 realmente deu um passo à frente e diminuiu o perdido de vista. Mas não impediu que sucessivos pedidos de vista bloqueiem uma decisão pelo Plenário do STF.
A PEC 08/2021 é mais detalhada e aprimora os pedidos de vista. A regulação proposta pela PEC não permite que um pedido de vista realizado por um ministro bloqueie a atuação de todo o Tribunal e, assim, impeça que uma decisão colegiada seja tomada[1].
A PEC estabelece ainda como prazo aquele da lei processual, não superior a 6 meses. O dispositivo existente hoje e com status de lei federal é justamente a previsão do Regimento Interno do STF com prazo de 90 dias. E ainda define que a vista é sempre coletiva. E que a partir do segundo pedido de vista, ele não poderá ser superior a 90 dias e nem poderá haver outro novo pedido de vista. Ou seja, a vista se torna mesmo coletiva, com prazo máximo total de 270 dias (até 180 dias da primeira vista + 90 dias da segunda vista).
E se o julgamento não for concluído, sobrestá-se o julgamento dos demais processos, salvo decisão colegiada tomada por 2/3 dos ministros do Supremo (8 ministros, portanto).
É, assim, uma regulamentação muito mais generosa em termos de tempo, mas também muito mais responsável com o tempo conferido para as vistas, também em favor da valorização do colegiado.
3 – Por fim, a PEC 08/2021 dá um passo adiante em relação à Emenda Regimental 58/2022 do STF
A Emenda Regimental 58/2022 do Supremo foi uma ótima iniciativa da ministra Rosa Weber que, de fato, minimizou alguns desses problemas apontados. Os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, inclusive, se manifestaram recentemente sobre como a ER 58/2022 já havia sido uma boa resposta do Supremo para essas situações.
No entanto, a PEC 08/2021 dá um passo adiante e não apenas minimiza, mas busca solucionar de uma vez por todas essas disfuncionalidades do STF.
A Emenda Regimental 58 do Supremo não veda a concessão de medidas cautelares monocráticas como faz a PEC 08/2021. Ou seja, a ER 58 do STF nem observa as imposições constitucionais e legais e ainda ratifica a prática das cautelares monocráticas. A PEC, no entanto, é mais ampla, detalhada e completa. E veda as monocráticas. E estabelece prazo para a validade das cautelares e também para o julgamento do mérito, sob pena de perda da eficácia da medida cautelar.
A PEC também regulamenta de forma mais completa o pedido de vista. Primeiro porque estabelece a vista como sendo coletiva. Segundo porque permite até um prazo maior do que o existente hoje (até 6 meses) e ainda apenas uma única segunda vista, com prazo de 90 dias. E estabelece como consequência da não conclusão do julgamento, o sobrestamento dos demais casos. É uma proposta que corrige os desvios dos pedidos de vista sucessivos e impede que eles, no limite, sejam usados como manipulação temporal e vedação à decisão do Tribunal.
A PEC é, portanto, mais completa que a ER 58 do STF porque recoloca a atuação jurisdicional do Supremo no eixo constitucional e estabelece prazos e consequências caso não haja observância dos prazos – seja para a concessão de cautelares, para o julgamento de mérito, seja para os pedidos de vista.
A PEC 08/2021 não resolve todos os problemas do STF, mas mitiga alguns que causam um mal danado. E ela também poderá passar por uma eventual camada de controle do próprio STF.
Por fim, três sugestões de aprimoramento do texto da PEC 08/2021: (i) que a PEC faça as alterações da Constituição no art. 97, e não no art. 93, a fim de evitar eventual arguição de inconstitucionalidade por violação à separação de poderes; (ii) que se exclua do texto da PEC a previsão de sobrestamento de todos os processos, caso o Supremo não conclua o julgamento do caso após o retorno das vistas (previsto no texto da PEC no art. 93, XVI, parágrafo único, II). Essa previsão impede decisões urgentes em outros casos e que se mostrem necessárias. A exclusão dessa previsão não prejudica as correções feitas pela PEC e ainda evita problemas imprevisíveis; (iii) tendo em vista a extensão dos prazos, que eles sejam expressamente estabelecidos em dias corridos, e não em dias úteis.
A PEC 08/2021 não resolve todos os problemas do STF, mas soluciona alguns que causam um mal danado. Não basta a letra expressa da norma, é preciso também que os próprios ministros se disponham a cumpri-la (afinal, previsões que não autorizavam decisões monocráticas já existem há tempos e prazo para vistas também sempre existiu). E se aprovada, a emenda ainda poderá passar por uma eventual camada de controle do próprio STF.
Se tem uma PEC que estabelece um contrapeso relevante e que aprimora institucionalmente o STF, de forma muito pontual, parece ser exatamente esta PEC 08/2021. Espero que o Legislativo aposte nela, e não em outras PECs que possam causar desequilíbrio e violação da Constituição.
[1] Não ignoro a possibilidade de concessão de medida liminar monocrática em casos excepcionais, mas sempre previstos e autorizados por lei específica. É o caso, por exemplo, de medida liminar monocrática ad referendum do Plenário no âmbito de ADPF (art. 5º, §1º, Lei 9.882/99); ainda que no caso de ADPF a previsão de medida liminar monocrática tenha fundamento diverso daquele previsto para a ADI. Mas, esse é tema para outro artigo. Ou então, como já apontado no corpo do texto do artigo, liminar monocrática em ADI concedida durante o recesso pelo Presidente do STF (art. 10, caput, Lei 9.868/99; art. 13, VIII, RISTF). De todo modo, a possibilidade de medida liminar monocrática deve ser interpretada restritivamente, como uma cláusula de fechamento do sistema em razão de circunstanciais inviabilidades de um julgamento colegiado e em sessão. Longe de justificar a ampliação da monocratização, as hipóteses evidenciam a sua provisoriedade e recomendam parcimônia.