Supervisão do cumprimento de sentenças pela Corte IDH: o exemplo guatemalteco

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Em 20 de outubro de 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu uma resolução de medidas provisórias e de supervisão de cumprimento em relação a 14 sentenças proferidas em face do Estado da Guatemala[1]. O fator comum a todos os casos é que a Corte IDH estabeleceu como medida de reparação a investigação, o julgamento e a eventual responsabilização por graves violações de direitos humanos cometidas durante o conflito armado interno na Guatemala, como desaparecimentos forçados, torturas e execuções sumárias ou arbitrárias.

O procedimento de supervisão de cumprimento de sentença não está previsto expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), tratado internacional que institui e dá base ao funcionamento da Corte IDH. O tribunal, no exercício do princípio competência-competência[2], consagrou o entendimento de que a supervisão de cumprimento de sentença se enquadra em suas funções judiciais.

Quando da supervisão de cumprimento da sentença do caso Baena Ricardo versus Panamá, em 2003, a Corte IDH fixou que o mandato para monitorar a implementação de suas decisões decorre dos artigos 67[3] e 68[4] da CADH. Restou evidente a ligação entre o amplo espectro decisório que o artigo 63.1[5] da CADH confere à Corte IDH para determinar as medidas de reparação de violações de direitos humanos e o poder do tribunal para definir os contornos do procedimento de supervisão, a fim de que não se deixe a cargo das partes, sob pena de se tornar inoperante o sistema tutelar de direitos previsto na CADH.

Desde logo se estabeleceu um procedimento escrito e adversarial, previsto no artigo 69 do Regulamento da Corte IDH, que consiste na elaboração de relatórios pelas partes do caso, na apresentação de observações pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na avaliação da Corte IDH, o que culmina na emissão de resoluções pelo tribunal. À Corte também é facultado convocar audiências de supervisão de cumprimento, além de poder comunicar à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, órgão político de representação intergovernamental, os casos em que os Estados não tenham dado cumprimento às sentenças, conforme o artigo 65 da CADH.

Em 2015, entrou em funcionamento uma unidade na Secretaria da Corte IDH dedicada exclusivamente à supervisão do cumprimento de sentenças, o que confere mais agilidade ao monitoramento, já que as medidas de reparação costumam ser bastante específicas. Também nos últimos anos, a Corte IDH passou a efetuar a supervisão conjunta de medidas de reparação ordenadas em sentenças de diferentes casos a respeito de um mesmo Estado, o que fomenta o diálogo entre os atores e dinamiza os trabalhos do tribunal, que dispõe de uma visão global do status de cumprimento.

Na resolução referente aos casos guatemaltecos, a Corte IDH analisou a alegação de que o Estado estaria descumprindo resoluções conjuntas de medidas provisórias e de supervisão de cumprimento de sentenças proferidas em 2019. Em tais oportunidades, a Corte IDH havia determinado ao Estado que interrompesse o trâmite legislativo e arquivasse o Projeto de Lei 5377, que pretendia reformular a Lei de Reconciliação Nacional de 1996, concedendo anistia para todas as graves violações cometidas durante o conflito armado.

Importante sublinhar que a Guatemala vivenciou um processo de transição para a paz, iniciado em 1990, que resultou na adoção da Lei de Reconciliação Nacional, colocando fim ao conflito armado interno que durou mais de quatro décadas (1960 a 1996). No âmbito da justiça de transição, a jurisprudência da Corte IDH é assente ao definir que as leis de anistias são incompatíveis com a CADH em casos de graves violações de direitos humanos, conforme, por exemplo, a sentença do Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) e Outros versus Brasil, de 24 de novembro de 2010.

Segundo reportado à Corte IDH, somente em 2021, o Estado implementou o que havia sido ordenado nas resoluções de 2019, em virtude de decisão da Corte de Constitucionalidade que tornou sem efeito a sanção e a promulgação do Projeto de Lei 5377, seguida do arquivamento da iniciativa pelo Congresso da República da Guatemala, em abril de 2021.

Embora os representantes das vítimas tenham assentido que o Projeto de Lei 5377 tenha sido arquivado, indicaram que outras duas iniciativas semelhantes estariam em trâmite: o Projeto de Lei 5920 (Ley de Consolidación de la Paz y Reconciliación) e o Projeto de Lei 6099 (Ley de Fortalecimiento para la Paz), que também objetivam anistiar as graves violações cometidas durante o conflito armado e extinguir a responsabilidade penal por todos os crimes perpetrados.

Durante o procedimento que precedeu a publicação da resolução de 2023 pela Corte IDH, o Estado da Guatemala solicitou que não houvesse uma ampliação das resoluções de 2019 para abarcar os dois novos projetos de lei, pois haveria mecanismos jurisdicionais disponíveis que permitiriam uma análise exaustiva por parte da Corte de Constitucionalidade.

Embora o projeto 5920 não tenha avançado muito, o projeto 6099 foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos do Congresso da República, em 23 de agosto de 2023. Em 27 de setembro, o plenário do Congresso remeteu o projeto de lei à Corte de Constitucionalidade, a fim de que se verifique se há violações a princípios constitucionais ou àqueles previstos em tratados internacionais. A Corte IDH recebeu informações de que a corte nacional teria rechaçado a solicitação devido à ausência de preenchimento de pressupostos legais.

Em sua avaliação, a Corte IDH reconheceu um adequado exercício do controle de convencionalidade por parte da Corte de Constitucionalidade em sua decisão de 2021. Na ocasião, o tribunal doméstico salientou que os poderes do Congresso da República para dispor sobre anistias não são ilimitados, e que um projeto de lei como o 5377 seria uma afronta às obrigações internacionais assumidas pela Guatemala, às normas de jus cogens sobre a matéria, à coisa julgada internacional em relação aos casos contenciosos interamericanos em face da Guatemala, bem como ao acesso à justiça das vítimas. Para a Corte IDH, tais parâmetros se estendem aos Projetos de Lei 5920 e 6099.

A Corte IDH apreciou, então, se estariam presentes os requisitos de extrema gravidade e urgência e iminência de dano irreparável, necessários para a concessão – ou, no caso, extensão – de medidas provisórias, nos termos do artigo 63.2 da CADH. Considerou que a aprovação dos projetos de lei seria um desacato ao ordenado à Guatemala nas sentenças dos quatorze casos. Se aprovadas, as leis passariam a obrigar que juízes decretem de ofício a liberdade imediata das pessoas processadas e condenadas, o que comprometeria o exercício do controle de convencionalidade em tempo hábil.

Ainda mais grave é o fato de que os dois projetos de lei preveem sanções aos juízes que assim não procederem, o que compromete a autonomia e a independência do exercício da magistratura. Inclusive, a Corte IDH expediu, em 2022, medidas provisórias com o objetivo de proteger a vida e a integridade pessoal de um magistrado e de uma promotora guatemaltecos responsáveis pelas investigações e processos penais relativos a violações de direitos humanos ocorridas em seis dos quatorze casos sob análise. Tem-se notícia de que os funcionários estatais teriam se exilado.

Para a Corte IDH, a afetação da independência judicial, a crescente impunidade de crimes contra os direitos humanos na Guatemala e a possível violação à coisa julgada internacional tornaram ainda mais necessária uma decisão internacional. Dessa forma, na resolução de 2023, a Corte IDH, exercendo o controle de convencionalidade, manteve e ampliou as medidas provisórias outorgadas em 2019, requerendo ao Estado da Guatemala que empreenda as ações necessárias para que se tornem sem efeito ou não se conceda vigência às iniciativas de lei 5920 e 6099.

A supervisão conjunta do cumprimento das sentenças guatemaltecas engendra algumas reflexões, das quais destaco três. A outorga de medidas provisórias durante a fase de implementação de uma sentença é medida que a Corte IDH tem adotado com certa frequência, a fim de proteger o efeito útil de seus julgamentos e coibir novas violações de direitos humanos.[6] A conjugação de ambos os procedimentos (supervisão de cumprimento de sentença e medidas provisórias) é possível graças à ampla margem de discricionariedade de que dispõe o tribunal para monitorar o cumprimento de suas decisões e encontra fundamento no artigo 27.3 de seu Regulamento[7].

Especificamente sobre a situação na Guatemala, chama à atenção a rediscussão de temas relativos à anistia. A Guatemala é o Estado com o segundo maior número de sentenças proferidas pela Corte IDH (trinta e sete), muitas das quais concernem aos desdobramentos do conflito armado interno. Os episódios objeto da resolução de 2023 servem de alerta: a região latino-americana não está – e, talvez, nunca tenha estado – imune a ataques e retrocessos às suas bases democráticas, ainda em consolidação. As medidas provisórias da Corte IDH e seu caráter expedito revelam-se, portanto, como importante mecanismo para a salvaguarda de direitos, sobretudo porque possibilitam intervenções urgentes por parte da Corte IDH, às quais também cabe aos Estados responder rapidamente.

Finalmente, o fato de a supervisão de cumprimento de sentença integrar as funções judiciais da Corte IDH faz com que o procedimento acompanhe a complexidade das reparações: quanto mais detalhadas e estruturais as medidas reparatórias, mas longo será o monitoramento. O exemplo da Guatemala é emblemático, pois as quatorze sentenças contempladas pela resolução de 2023 foram proferidas entre os anos de 2002 a 2018. Resta saber se o dever de investigar, processar e julgar responsáveis por violações de direitos humanos será efetivamente cumprido, ou se a Corte IDH seguirá monitorando suas decisões por muitos anos, sob pena de arquivá-las sem a implementação satisfatória das medidas.

[1] Casos Bámaca Velásquez, Myrna Mack Chang, Maritza Urrutia, Molina Theissen, Masacre de Plan de Sánchez, Carpio Nicolle y otros, Tiu Tojín, Masacre de Las Dos Erres, Chitay Nech y otros, Masacres de Río Negro, Gudiel Álvarez y otros (“Diario Militar”), García y familiares, Miembros de la Aldea Chichupac y comunidades vecinas del Municipio de Rabinal, y Coc Max y otros (Masacre de Xamán).

[2] O princípio “competência-competência” consagrou-se quando do aperfeiçoamento da jurisdição internacional e significa que o tribunal dispõe de poder para determinar o alcance de sua própria competência para decidir sobre o mérito de um caso e/ou para praticar quaisquer atos jurisdicionais.

[3] Artigo 67: “A sentença da Corte será definitiva e inapelável. (…)”.

[4] Artigo 68.1: “Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.”.

[5] Artigo 63.1: “Quando decidir que houve violação de um direito ou liberdade protegidos nesta Convenção, a Corte determinará que se assegure ao prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade violados. Determinará também, se isso for procedente, que sejam reparadas as consequências da medida ou situação que haja configurado a violação desses direitos, bem como o pagamento de indenização justa à parte lesada.”.

[6] Em relação ao Brasil, os representantes das vítimas do caso Favela Nova Brasília solicitaram medidas provisórias ao longo do cumprimento da sentença, em virtude da ocorrência de chacina na Favela de Jacarezinho, em maio de 2021. Em resolução de 21 de junho de 2021, a Corte IDH concluiu pela improcedência, pois as medidas provisórias solicitadas excederiam a relação com o objeto do caso sob supervisão.

[7] Artigo 27.3: “Nos casos contenciosos que se encontrem em conhecimento da Corte, as vítimas ou as supostas vítimas, ou seus representantes, poderão apresentar diretamente àquela uma petição de medidas provisórias, as quais deverão ter relação com o objeto do caso.”.