Subvenção para investimento e anterioridade tributária

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No Brasil, a criação de um benefício fiscal é sempre comemorada, ainda mais se o benefício fiscal se destinar a alguns poucos grandes contemplados. Mas, se o cenário se modifica e o Estado Fiscal necessita regulamentar ou mesmo revogar um benefício fiscal, rapidamente a linguagem é estampada nos principais periódicos especializados: “medida abusiva”, “finalidade exclusivamente arrecadatória”, “vai afastar investidor” e assim por diante. Com o crédito fiscal de subvenção para investimento não é diferente.

No final de 2023, surgiu a Lei 14.789. Mais exatamente há três dias do fim do ano. A norma regulou um benefício fiscal importante, que afeta grandes empresas, embora sejam a minoria das empresas do país: empresas que apuram pelo lucro real e recebem subvenções para investimentos.

Subvenções para investimentos são uma espécie de subvenção econômica em que o ente estatal confere um tipo de auxílio para que a empresa amplie sua atividade econômica. Não se trata de uma ajuda pura e simples para a empresa que está em crise. A ideia é conceder um estímulo à empresa, para que amplie sua atividade e traga mais eficiência econômica com a geração de mais empregos e negócios, de modo que toda a sociedade se beneficie.

Talvez a palavra auxílio não seja a mais adequada. Mexer em auxílios é sempre um problema. Ainda mais quando estes auxílios beneficiam grandes empresas. Mas, o fato é que não houve revogação de benefício fiscal. Ocorreu, tão somente, a regulamentação dos efeitos da subvenção para investimento na apuração do lucro da empresa. Principalmente quando as subvenções são concedidas por outros entes federativos.

O lucro é uma importante base econômica para a tributação federal. É o parâmetro, por exemplo, para a incidência do imposto de renda (IRPJ) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) das empresas. Se estados e municípios, discricionariamente, pudessem influenciar nesse base econômica, a arrecadação federal restaria comprometida. Neste caso, aí sim, o federalismo estaria sob ameaça.

Por exemplo, se qualquer benefício fiscal concedido por estados e municípios pudesse virar crédito fiscal para restringir a base de cálculo do IRPJ e da CSLL, a arrecadação desses tributos seria afetada. Estados e municípios seriam responsáveis por influenciar as receitas fiscais da União. E, na verdade, foi isso que motivou a norma, diante da grande quantidade de recursos perdidos: aproximadamente 50 bilhões em 2022.[1] Isso, sim, viola o pacto federativo. Mas, falarei sobre federalismo em outra oportunidade. Quero falar de anterioridade tributária, sem ingressar em política fiscal ou na justiça da norma.

Li, recentemente, um ensaio do professor Fernando Facury Scaff em que sustenta um interessante argumento.[2] Diante da importância e influência do professor, acredito que seja relevante fazer, com a devida vênia, alguns apontamentos para o debate. O ensaio parte de algumas premissas que seriam complexas para tratarmos nesta curta exposição. O próprio professor as evita como, por exemplo, a relação entre o conceito de receita e a renúncia de receita. Vou me ater, portanto, a sua explicação porque a Lei 14.789 violaria a anterioridade tributária.

De acordo com o professor, a Lei 14.789 violaria a anterioridade tributária, especificamente, a “noventena”, que proíbe que se cobre tributos antes de decorridos noventa dias da data em que publicada a lei que os aumentou.  Para o professor, por se tratar de uma lei oriunda de um projeto de lei de conversão, é a partir da publicação desta lei que se deveria contar o prazo da noventena e não da data da publicação da medida provisória, que teria sido rejeitada.

A medida provisória referida é a MP 1185, que foi publicada no Diário Oficial da União em 31 de agosto de 2023. Já a Lei 14.789 foi editada no mesmo ano, em 29 de dezembro. A publicação da norma no diário oficial marca o início do prazo legislativo, já a edição da norma, marca o encerramento.

Nas palavras do professor, a MP 1185 “não foi aprovada, mas convertida em Projeto de Lei de Conversão (PLC), tendo este sido aprovado e se transformado na Lei 14.789/23, publicada em 29 de dezembro de 2023, com início de vigência a partir de 1º de janeiro de 2024. Logo, não foi aprovada uma MP (art. 62, §3º, CF), mas um PLC, o que gera outros efeitos jurídicos (art. 62, §12, CF), sendo necessário reconhecer que o aumento de carga tributária que tal norma traz não pode ser aplicado de imediato, devendo obedecer a noventena. Aqui estamos de volta a um passado que deveríamos ter deixado de lado”.

Para entender essa questão da anterioridade tributária, é importante verificar o que a Constituição estabelece. O art. 62 § 3º da Constituição afirma que as medidas provisórias devem ser convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogáveis por igual período. Essa situação, então, confere prazo máximo de cento e vinte dias, a partir da publicação da medida provisória, para que o Congresso edite a lei de conversão.

O art. 62 § 2º, por sua vez, que trata de majoração e instituição de tributos, afirma que a medida provisória deve ser convertida em lei até o último dia do ano em que foi editada, para que seus efeitos possam persistir no exercício seguinte. Já o art. 62 § 12 estabelece que “aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto”.

As medidas provisórias são, então, um modo de o Poder Executivo iniciar o processo legislativo, que obriga o Congresso a editar uma lei de conversão ou reprovar a medida provisória. Mesmo que a lei de conversão altere a medida provisória, contudo, esta permanecerá em vigor até a sanção ou veto do projeto. Para que a medida provisória não regule o período que esteve em vigor, o Congresso necessitaria editar decreto legislativo, como aduz o art. 62 § 3º e 11 da Constituição. Este último parágrafo afirma que “não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas”.

Não é, portanto, a simples existência da lei de conversão que leva à conclusão de que a medida provisória foi rejeitada. Ao contrário, a Constituição obriga que haja uma lei de conversão, para que o conteúdo da medida provisória continue a produzir efeitos no exercício seguinte, por meio de uma nova forma legislativa. Se a medida provisória é integralmente aprovada, não é levada à sanção ou veto. Apenas se converte em lei ordinária. De outro lado, se houver alteração da medida provisória, com emendas parlamentares, haverá necessidade de sanção ou veto presidencial.

Portanto, quando existir uma lei de conversão, é provável que a medida provisória tenha sido aprovada. Caso seja rejeitada ou perca a eficácia, a Constituição obriga que haja um decreto legislativo, sob pena de seus efeitos perdurarem no período em que vigorou.

Sob o aspecto formal, então, o Congresso respeitou o prazo de conclusão do processo legislativo de conversão da MP 1185 previsto na Constituição. A lei de conversão – a Lei 14.789 – foi editada cento e vinte dias após a publicação da medida provisória, suas alterações foram levadas à sanção presidencial e a vigência ocorreu no ano seguinte ao de sua publicação.

Sob o aspecto material, é preciso tratar a anterioridade tributária muito além do formalismo. Não se trata apenas de respeito a prazos ou investigar significados semânticos, como se a linguagem existisse fora de um contexto. A anterioridade tributária, pois, comporta um valor. Um valor que está relacionado ao mundo real.

A anterioridade tributária, em verdade, visa evitar que o contribuinte seja surpreendido com a norma. A anterioridade tributária, principalmente a noventena, impede que de um dia para o outro o contribuinte tenha que realinhar sua gestão tributária e modificar todo o seu planejamento. A Constituição, pois, entende que noventa dias são suficientes para que o contribuinte se planeje, desde que respeitada a anterioridade tributária de exercício. Importante, então, verificar se houve alguma modificação brusca entre a MP 1185 e a Lei 14.789, que causasse surpresa ao contribuinte.

O que se nota da comparação dos atos legislativos é que a Lei 14.789 apenas melhorou a redação da medida provisória e trouxe alguns benefícios. Nenhum direito foi suprimido, em relação à medida provisória. Por exemplo, no art. 4º, a lei trouxe a habilitação por omissão. Significa que, se a Receita Federal do Brasil não se manifestar no prazo de trinta dias, a pessoa jurídica estará automaticamente habilitada. No art. 6º, melhorou a redação, ao especificar numericamente o percentual da alíquota de 25%, ao invés de mencionar “inclusive a alíquota adicional”.

No art. 7º, a Lei 14.789 retirou do inciso II importante requisito de controle de benefícios fiscais. A MP 1185 exigia para a habilitação “a conclusão da implantação ou da expansão do empreendimento econômico”. Amparado na lei, a pessoa jurídica pode se habilitar sem que tenha realizado qualquer implantação ou expansão do empreendimento. Isso não impede, ressalte-se, que a Receita Federal instaure procedimento fiscalizatório para apurar a efetiva destinação da subvenção, para eventual lançamento tributário.[3] O que a lei veda é que se exija comprovação da implantação ou expansão do empreendimento no momento da habilitação. No art. 10, houve a diminuição do prazo para ressarcimento dos valores, para aquelas pessoas jurídicas que não desejarem realizar a compensação.

Houve, ainda, a criação de um capítulo exclusivo para a possibilidade de transação tributária especial e autorregularização específica. A transação refere-se a dívidas anteriores, a fim de encerrar contencioso judicial e administrativo, decorrentes da exclusão em desacordo com o art. 30 da Lei 12.973, de 2023.[4] E a autorregularização específica refere-se a débitos não lançados sobre o mesmo tema. Dentre as várias formas e prazos de parcelamentos, a lei de conversão previu a possibilidade de redução de até 80% da dívida ou débito consolidados.

No tema principal da norma, portanto, não verificamos nenhuma modificação substancial, que pudesse surpreender o contribuinte. Tanto os contornos principais da habilitação, quanto da apuração e utilização do crédito fiscal já estavam previstos na medida provisória. Assim, ainda que se entenda que houve majoração de tributo, seja no aspecto formal, seja no aspecto material, não houve qualquer violação à anterioridade tributária.

Sustentar violação da anterioridade tributária, nesta situação, é ver apenas uma face, quando na verdade o valor que o princípio veicula possui múltiplas facetas.

[1] SENADO. Sumário Executivo de Medida Provisória nº 1.185, de 30 de agosto de 2023. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/>. Acesso em 11/02/2024.

[2] Disponível em <https://www.conjur.com.br/2024-fev-05/subvencoes-para-investimento-recebem-tratamento-surreal-na-lei-14-789-23/>. Acesso em 11/02/2024.

[3] O STJ deixou clara essa possibilidade ao fixar a tese do tema 1182 (v. REsp n. 1945110, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 26/04/2023, DJe de 12/06/2023).

[4] O dispositivo foi revogado pela MP 1.185 e pela Lei 14.789. Ele estava assim redigido: Lei 12.973/2014, art. 30, § 4º: “Os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao imposto previsto no inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”.