No Brasil, desde 2018, o sistema eleitoral e político vem tendo sua credibilidade minada por importantes autoridades, influenciadores e milícias digitais. Com a eleição de 2022, esse fenômeno se intensificou, ocorrendo algo semelhante ao que foi observado na eleição americana de 2016 e 2020; isto é: alegações infundadas de fraude e mobilizações pedindo golpe de estado contra o resultado apurado nas urnas.
Nessa conjuntura, jornalistas como a Juliana Dal Piva, jornalista experiente, passaram a investigar e denunciar a atuação ilegal desses grupos antidemocráticos e reportar suas ações e métodos.
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Juliana Dal Piva também fez diversas reportagens sobre o patrimônio da família do ex-presidente Jair Bolsonaro e se tornou uma das maiores especialistas no tema, o que o levou a escrever diuturnamente colunas para os maiores veículos de imprensa do país, e apresentou um podcast que, por sua relevância e qualidade, obteve uma audiência de mais de 5 milhões de downloads: “A vida secreta de Jair”.
A destacada trajetória de Juliana Dal Piva acabou atraindo a ira de alguns contra seu trabalho, o que lhe causa constantes ataques e verdadeiras campanhas difamatórias, em sua maioria carregadas com ataques misóginos, fake news e crimes.
Tendo esse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará, no próximo dia 14 de outubro, o Agravo Interno no Recurso Especial nº 2578927/SP, que envolve a jornalista Juliana Dal Piva e o advogado Frederick Wassef, conhecido por sua atuação em casos ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro.
O caso, que há anos desperta a atenção da comunidade jurídica e da imprensa, extrapola a esfera individual das partes e se insere no debate contemporâneo sobre liberdade de expressão, direito à privacidade e violência de gênero contra jornalistas mulheres no Brasil.
No centro da controvérsia, está a divulgação, por parte da jornalista, de mensagens recebidas via WhatsApp, após ser alvo de ofensas e ameaças por Wassef, em reação à publicação de uma reportagem de interesse público. A divulgação do conteúdo da conversa foi utilizada pela jornalista como estratégia de autodefesa, buscando preservar, por meio do exercício do direito à liberdade de expressão e liberdade de imprensa, sua segurança e reputação profissional.
Agora, no STJ, a discussão ganha contornos mais amplos: o julgamento serve de termômetro para medir como a Corte Superior vem equilibrando direitos fundamentais em colisão, especialmente quando o exercício profissional da imprensa é atacado por meio de condutas intimidadoras.
A liberdade de expressão ocupa posição central no ordenamento jurídico brasileiro, recebendo status de sobredireito e sendo ainda protegida quando se trata de críticas, mesmo duras, dirigidas a agentes políticos e figuras públicas, conforme consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O texto constitucional reforça essa proteção ao vincular a liberdade de expressão à garantia de acesso à informação, um atributo essencial da liberdade de imprensa e instrumento indispensável para o fortalecimento da democracia.
Embora não exista hierarquia formal entre os direitos fundamentais, decisões do STF em ações de controle concentrado, como ADPF 130. ADI 4815, ADI 4451 e ADPF 572. indicam que a Corte confere prestígio qualificado à liberdade de expressão, posicionando-se em consonância com a melhor jurisprudência nacional.
Essa proteção encontra respaldo também em normas internacionais ratificadas pelo Brasil, especialmente no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), tratados que consagram a liberdade de expressão como direito robusto e fundamental.
Contexto do caso: exercício ético do jornalismo, intimidação e autodefesa
O conflito judicial teve origem em uma Ação Cominatória cumulada com pedido de indenização por danos morais, proposta no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Após a publicação de uma reportagem assinada por Juliana Dal Piva, resultado de extensa investigação jornalística, o advogado Frederick Wassef encaminhou mensagens de conteúdo intimidatório e vexatório à jornalista, em tom agressivo e pessoal. Sentindo-se ameaçada, Juliana decidiu tornar pública a comunicação recebida, expondo o episódio como forma de resguardar sua integridade e publicizar o comportamento abusivo.
O juízo de primeira instância entendeu que ambas as partes teriam excedido os limites do exercício regular de direitos, condenando-as reciprocamente por danos morais. Contudo, em sede de apelação, a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) reformou parcialmente a sentença, reconhecendo a licitude da conduta da jornalista e a excepcionalidade do caso, em que a exposição de mensagens privadas se justifica diante do teor intimidatório e do interesse público envolvido.
Inconformado, Wassef interpôs Recurso Especial, posteriormente rejeitado em decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Bellizze, relator original do processo. O advogado então apresentou Agravo Interno, agora sob relatoria da ministra Daniela Teixeira, que levará o caso à apreciação da 3ª Turma do STJ.
O embate jurídico: direito à privacidade vs. liberdade de defesa de direito próprio
O caso Dal Piva vs. Wassef traz à tona o delicado limite entre o direito à privacidade e o exercício regular do direito de defesa. De um lado, o agravante sustenta que a divulgação das mensagens privadas teria violado sua intimidade, prevista no artigo 5º, X, da Constituição Federal. De outro, a tese de defesa de Juliana Dal Piva argumenta que a exposição foi medida necessária e proporcional, enquadrando-se no artigo 188, inciso I, do Código Civil (CC), que exclui a ilicitude quando o ato se dá em exercício regular de um direito. O Tribunal de origem reconheceu que a jornalista não invadiu indevidamente a esfera privada de Wassef. A divulgação, nesse contexto, não foi arbitrária, mas sim instrumento legítimo de autodefesa.
No ano de 2021, a Terceira Turma do STJ, em precedentes como o REsp 1.903.273, já havia consolidado o entendimento de que a divulgação de comunicações privadas pode ser lícita quando utilizada como meio de defesa em casos excepcionais, especialmente para proteger a honra, a dignidade e a segurança pessoal, sem que isso fira a garantia do direito à privacidade previstos constitucionalmente e nos artigos 20 e 21 do CC.
Assim, a pretensão recursal de Wassef encontra óbice nas Súmulas 7 e 83 do STJ: a primeira impede o reexame de provas em sede de Recurso Especial, e a segunda veda a rediscussão de tema já pacificado pela jurisprudência da Corte.
Liberdade de informação e democracia: o alcance do julgamento
A discussão ultrapassa os limites do caso concreto. O julgamento no STJ sobre o caso Dal Piva vs. Wassef é emblemático para o debate jurídico e político contemporâneo sobre a proteção da imprensa livre e o combate à violência de gênero. A decisão que vier a ser proferida reforçará o entendimento consolidado no Superior Tribunal de que a divulgação de comunicações privadas é lícita quando indispensável à defesa de direitos fundamentais, e de que a intimidação de jornalistas configura atentado à liberdade de imprensa e à democracia.
A expectativa é que o julgamento da 3ª Turma, sob relatoria da ministra Daniela Teixeira, reafirme a jurisprudência pacificada da Corte e reconheça, mais uma vez, que não há ilicitude na conduta de quem reage a ameaças e ofensas para preservar sua dignidade e segurança.
Perspectiva de gênero e o papel da Justiça
Um aspecto de grande relevância no julgamento é a perspectiva de gênero. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Resolução CNJ 492/2023), orienta magistradas e magistrados a considerarem o impacto diferenciado das violências e discriminações sofridas por mulheres em litígios judiciais.
No âmbito internacional, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada pela ONU em 1979, é um tratado fundamental que visa eliminar a discriminação contra as mulheres em todas as suas formas. O Comitê CEDAW emitiu a Recomendação Geral nº 35 sobre violência de gênero contra as mulheres, atualizando a Recomendação Geral nº 19, que aborda a necessidade de os Estados adotarem medidas para prevenir a violência de gênero e evitar a revitimização de mulheres no sistema de justiça.
Outra convenção relevante é a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, adotada em 1994. Este tratado internacional reconhece a violência contra a mulher como uma violação dos direitos humanos e estabelece mecanismos para sua prevenção, punição e erradicação.
Essas normativas nacionais e internacionais buscam assegurar que mulheres não sejam submetidas a novas violências ou traumas durante processos judiciais, promovendo um ambiente mais sensível e equitativo no trato de casos que as envolvem.
O caso Dal Piva vs. Wassef deve ser compreendido dentro dessa moldura: trata-se de uma mulher jornalista intimidada no exercício legítimo de sua profissão, reagindo a uma conduta agressiva e desproporcional.
No mundo, a liberdade de expressão e de imprensa são pressupostos básicos em qualquer conceito maduro de regime democrático e o julgamento desse caso, ao indeferir o pleito de Wassef, pode garantir que esse direito não esteja desprotegido. No entanto, no Brasil, o cenário não poderia ser mais negativo. Como aponta o Relatório Global de Liberdade de Expressão 2020/2021 , o nível de agressão pública ao trabalho de jornalistas e comunicadores nesse período é o maior desde o fim da ditadura militar, o que justifica nosso trabalho.[1]
Nessa perspectiva, o julgamento no STJ é um sinal institucional de reconhecimento da violência de gênero no ambiente informacional e de reafirmação da importância da liberdade de imprensa como pilar democrático.
O julgamento do caso Dal Piva vs. Wassef transcende a análise jurídica pontual, configurando-se como um marco simbólico na proteção de mulheres jornalistas e na consolidação de um ambiente democrático plural. Ao reconhecer a violência de gênero no contexto informacional, o STJ não apenas resguarda a liberdade de expressão individual, mas também reafirma o papel do Estado como garantidor de direitos fundamentais em sociedades marcadas por desigualdades estruturais.
Esse entendimento envia uma mensagem clara: intimidação e retaliação contra profissionais da imprensa não encontram amparo no Judiciário, reforçando que o exercício da profissão jornalística, especialmente por mulheres, deve ocorrer em condições de segurança, respeito e equidade, consolidando, assim, um precedente essencial para a proteção da democracia brasileira.
[1] https://artigo19.org/2021/07/29/relatorio-global-de-liberdade-de-expressao-2020-2021/