STF validou a prevalência do mercado sobre a dignidade da pessoa humana?

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Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!”, dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a coordenação acadêmica do professor, advogado e consultor trabalhista, Dr. Ricardo Calcini.

O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas às sextas-feiras. E a você leitor(a) que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a #pergunte ao professor.

Neste episódio de nº 115 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:

Pergunta ► O STF validou a prevalência do mercado sobre a dignidade da pessoa humana?

Resposta ► Com a palavra, o Professor Ricardo José Macedo de Britto Pereira.

O Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a externalização ampla da produção, mediante a adoção da terceirização trabalhista e das cadeias produtivas de forma ilimitada, baseando-se na liberdade econômica e na teoria da firma de Ronald Coase. Como desdobramento, o STF concluiu que a Constituição autoriza a contratação de trabalho fora do padrão de proteção trabalhista e da competência da Justiça do Trabalho, acolhendo diversas reclamações constitucionais[1] para afirmar a competência da Justiça comum, conforme previsões contratuais, contra pronunciamentos da Justiça do Trabalho que identificaram fraudes nessas contratações sem vínculo empregatício.

A interpretação do STF na matéria representa um dos mais graves retrocessos na história constitucional brasileira, quando a Constituição de 1988 completa 35 anos. Enquanto a atuação firme e corajosa do STF para conter ataques antidemocráticos foi fundamental para a sobrevivência da Constituição, a Corte a fragiliza em matéria trabalhista, colocando-a a serviço e nas mãos de seus inimigos. Submeter o Direito do Trabalho e a competência da Justiça do Trabalho às escolhas de agentes do mercado é caminhar na contramão do modelo constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária, desenvolvida, erradicada da pobreza e da marginalização e vocacionada para a redução das desigualdades e eliminação das práticas discriminatórias (art. 3º, CF).

O STF examinou os limites à terceirização em atividade-fim contidos na Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), modificando o entendimento de que a matéria seria infraconstitucional, envolveria análise fático-probatória e eventual violação ao princípio da legalidade se daria apenas indiretamente. Assim foi julgado o RE 958.252, mas, em embargos de declaração, o STF deu uma guinada para reconhecer a repercussão geral, Tema 725, e dar provimento ao recurso.[2] A tese consagrada expressa a licitude da terceirização e outras formas de divisão de atividades entre pessoas jurídicas, independentemente do objeto do contrato social, assegurando-se a responsabilidade subsidiária em caso de inadimplemento. Na ocasião foi também julgada a ADPF 324 e posteriormente o STF confirmou a constitucionalidade das leis (Leis 13.429/2017 e 13.467/2017) que liberaram a terceirização em todas as atividades empresariais.[3]

O resultado desses julgamentos não representaria, por si só, rompimento com o sistema de proteção ao trabalho, na medida em que preservou a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços e alguns votos registraram que a liberação da terceirização não significava autorizar violação a direitos trabalhistas ou permitir intermediação ilícita de mão-de-obra. Contudo, a argumentação utilizada pela corrente vencedora expandiu a liberdade de contratação, permitindo afastar a proteção trabalhista e a competência da Justiça do Trabalho e, consequentemente, sua missão constitucional de apreciar e julgar a existência, conforme a primazia da realidade, dos elementos fático-jurídicos configuradores da relação de emprego.

O STF adotou uma narrativa romantizada da terceirização e das cadeias produtivas, como estratégia empresarial moderna para alcançar eficiência, racionalidade e maior produtividade, em benefício de toda sociedade e dos trabalhadores.  Porém, ocultou a dura realidade destas práticas quando acobertam violações trabalhistas para a redução de custos empresariais, gerando elevado passivo trabalhista, inclusive resultante das formas mais violentas de exploração no trabalho.[4] Essa narrativa fica patente no voto do relator, que indica a empresa Foxconn, responsável pela linha de montagem de equipamentos da Apple, como parceria empresarial exemplo de “sadia competição”.[5] No entanto, na literatura especializada[6], Foxconn aparece como exemplo de degradação das condições de trabalho, sendo que diversas matérias jornalísticas denunciaram opressão e humilhação de trabalhadores, que eram obrigados a trabalhar até a exaustão, aumentando não só o número de adoecimentos e acidentes, mas levando os trabalhadores a retirarem a própria vida.[7]

A inclusão da liberdade econômica no conteúdo da liberdade jurídica (art. 5º, II, CF), “como consectário da dignidade da pessoa humana”[8], atribuindo-lhe proteção máxima e importância, representa inversão constitucional que substitui a centralidade da pessoa humana pela primazia do mercado, à semelhança do que ocorreu na denominada era Lochner da Suprema Corte dos Estados Unidos.[9]

Em Lochner, a Corte julgou inconstitucional lei do estado de Nova Iorque limitando a jornada de trabalho de padeiros, por vislumbrar violação ao devido processo da 14ª. Emenda, que assegura a liberdade, ao lado da vida e da propriedade, entendendo estar implícita a liberdade econômica de celebrar contratos sem interferências. O STF, em voto que acompanhou a corrente majoritária no Tema 725, chegou a mencionar a Era Lochner, porém no sentido de que o TST atuava na “tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria”.[10] Contudo, a era Lochner é mais identificada por incluir na Constituição um direito não expresso de liberdade econômica de celebrar contratos que inviabilizou a proteção social pela via do Legislativo. Como observou Oliver Holmes Jr., em histórico voto divergente, a Corte, ao concluir pela inconstitucionalidade da lei, utilizou teoria econômica que a Constituição norte-americana não incorporou em seu texto.

A suposta liberdade de não se submeter à legislação trabalhista e à competência da Justiça do Trabalho contraria comandos expressos da Constituição de 1988. A Constituição não é indiferente ao regime jurídico de trabalho, como dá a entender o STF. O compromisso constitucional é claro no sentido de assegurar direitos, além de outros, e logicamente interpretações, que assegurem a melhoria das condições sociais dos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, CF).

Da mesma forma, em relação à competência da Justiça do Trabalho, a Emenda Constitucional 45/2004 foi expressa em submeter à justiça especializada as controvérsias oriundas das relações de trabalho, e não apenas de emprego, como era na redação original (art. 114, CF). Após quase 20 anos de vigência da referida emenda, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho ainda é tímida e bem aquém da extensão de seu texto. É como se o trabalho e a Justiça do Trabalho, que vive a realidade trabalhista no seu dia a dia, fossem elementos de intrusão no texto constitucional, tratados com desconfiança ou desdenho, além de reiteradamente atacados.

A liberdade econômica ampliada também contraria a matriz kantiana que inspirou a constitucionalização da dignidade humana nas constituições do pós-guerra. Kant[11] contrapôs o campo das coisas, dotadas de preços e substituíveis por equivalentes, do das pessoas humanas, acima de todo preço e detentoras de dignidade. Os preços são relativos e cambiáveis enquanto dignidade é absoluta, não suscetível de cálculo ou precificação. Essa construção visa impedir a dominação dos seres humanos e seu tratamento como coisa para a satisfação de interesses dos mais poderosos. Nesta linha, a Declaração de Filadélfia, incorporada à Constituição da Organização Internacional do Trabalho, proclama: “o trabalho não é uma mercadoria”.[12]

Nos últimos tempos, entretanto, com a invasão do mercado nas esferas da vida, a inversão do imperativo categórico kantiano tornou-se rotina ou, como observou Stephen Lessenich[13], política global imperante no regime capitalista. O sociólogo alemão examina o processo de externalização de forma mais ampla, baseada na divisão desigual de oportunidades e dos riscos. A externalização transfere a terceiros, os mais pobres e pouco desenvolvidos, os custos e os danos provocados ao meio ambiente e às pessoas como resultado dos processos de acumulação de riquezas.

A desigualdade é estrutural nesse processo, de modo que sua preservação é necessária para os destinatários dos prejuízos não deixarem de cumprir a função de suportar as descargas de todo lixo e sujeira que a acumulação gera. Sem proteção social e políticas públicas para combater desigualdades, difunde-se propaganda enganosa de que os avanços na economia representam possíveis vantagens para os mais pobres. Polanyi[14] já havia identificado o isolamento da economia, orientada pelos imperativos do mercado e não pelas necessidades das sociedades, que são materializadas e convertidas em mercadorias (commodities).

O mercado assume dimensão ampliada para controlar, além da produção dos bens e serviços, o dinheiro, o trabalho e a terra, remunerados respectivamente por juros, salários e aluguéis, conforme a lógica mercantil. Trata-se de uma ficção, ou manobra, porque fatores diretamente associados a vida humana são inseridos no mercado para eliminar formas orgânicas sociais e dar lugar a estilos de vida individualizados e atomizados.

O STF também se baseia na teoria da firma de Ronald Coase, para respaldar o poder do empresário de definir pela internalização ou externalização das atividades. A tendência atual é as firmas se concentrarem em poucas atividades, valendo-se da terceirização para as demais, o que contribui para o aumento da produção econômica e para “o bem-estar material da população do mundo.”[15]

A firma, em Coase[16], é organizada para evitar os custos das transações formalizadas por contratos e centralizar o poder empresarial para definir a utilização dos fatores de produção. Quanto mais complexa a divisão do trabalho, maior é a necessidade de integração do poder de decidir e controlar, para enfrentar momentos de incertezas e evitar situações caóticas e não administráveis.

Coase vai além e distingue o empregado do contratante independente, ponto não mencionado pelo STF. O empregado é aquele que, por direito do empregador, está sob seu controle, diretamente ou por meio de um preposto. O poder do empregador de controlar ou interferir na atividade do empregado determinará quando o empregado vai ou não trabalhar, qual será a tarefa e como será executada. Um contratante independente, ao contrário, irá entregar ao empresário um resultado, sem controle ou interferência durante o processo de execução do trabalho. Coase, diferentemente de como o STF entende, não levava em conta o rótulo dado à relação de trabalho, mas o modo como a atividade se desenvolvia.

Se no passado, referida teoria que reforça o poder empresarial desfrutou de grande prestígio, na atualidade vem sendo revisada para se ajustar a demandas empresariais em realidade bem distinta.[17] A firma, como foi concebida no período em que Coase desenvolveu a sua teoria, era baseada na verticalidade fordista. Hoje, as organizações empresariais observam modelos mais flexíveis e híbridos. As novas formas de organização utilizam mecanismos de cooperação, em que as relações de autoridade se mesclam com relações de confiança e com o cumprimento espontâneo das regras e diretrizes, incorporando valores éticos e políticos, sem descuidar da eficiência econômica.

A ideia de “coalização de culturas” envolve o jogo de vários princípios organizacionais, mediante a coexistência e combinação de hierarquia, igualitarismo e autonomia individual, assim como de democracia liberal, participativa e deliberativa. Dar voz aos envolvidos previne conflitos e estimula altos níveis de coordenação interna, que é uma vantagem comparativa na competição econômica. A propósito, é o ambiente propício à valorização da negociação coletiva que o STF anunciou ter compromisso, ao julgar os Temas 1046 e 935.

Wendy Brown[18], estudiosa das tendências antidemocráticas nas sociedades contemporâneas, ressalta o “alcance radicalmente estendido do privado”, a “desconfiança da política” e a “rejeição do social” para normalizar desigualdades e degenerar democracias. A liberdade passa a ser exercida como ferramenta autoritária, que se volta contra pautas emancipatórias e a própria democracia, produzindo ataques contra a Constituição e o constitucionalismo. É também liberdade orientada pelo mercado, de perseguir objetivos privados, sem interferências, em que o âmbito privado é expandido para substituir o Estado e a proteção social.

A jurisprudência do STF de expansão do privado e da liberdade econômica no lugar da proteção social se alinha às tendências referidas por Brown, fragilizando a Constituição. Apenas a sua defesa plena a assegurará como genuíno estatuto da igualdade[19]e impedirá que se transforme em ferramenta dos poderosos para oprimir e explorar os menos favorecidos. Essa defesa plena da Constituição passa, necessariamente, pela valorização do trabalho constitucionalmente protegido e da competência da Justiça do Trabalho.

[1] STF, Rcl 56.285, DJE 30.03.2023, entre diversas.

[2] STF, RE 958252, DJE 13/09/2019.

[3] STF, ADI 5685, DJE 21.08.2020, entre outras.

[4] No Brasil, os casos de trabalho em condições análogas a de escravo e infantil, majoritariamente nas regiões norte e centro-oeste, sempre contam com alguma modalidade de intermediação. No sul do país, trabalhos nessas condições ocorreram por meio de terceirização e cadeias de produção na premiada indústria do vinho e na produção de arroz. https://reporterbrasil.org.br/2023/04/vinicola-flagrada-com-trabalho-escravo-no-rs-ostentava-o-selo-great-place-to-work. https://racismoambiental.net.br/2023/05/12/basf-firma-acordo-de-r-9-milhoes-em-caso-de-resgatados-em-fazendas-de-arroz-no-rs.

[5] STF, RE 958252, DJE 13/09/2019, p. 43.

[6] WEIL, David. The Fissured Workplace: Why Work Became So Bad For So Many And What Can Be Done To Improve It. Havard University Press, 2014.

[7] https://www.theguardian.com/technology/2017/jun/18/foxconn-life-death-forbidden-city-longhua-suicide-apple-iphone-brian-merchant-one-device-extract.

[8] STF, RE 958252, DJE 13/09/2019, p. 34.

[9] Lochner v. New York, 198 US 45 (1905). A era Lochner vai de 1905 até o julgamento do caso Parrish, quando a Suprema Corte considerou constitucional lei estadual assegurando salário mínimo para trabalhadoras. West Coast v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937).

[10] STF, RE 958252, DJE 13/09/2019, p. 229.

[11] KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 77 e 78.

[12] https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—americas/—ro-lima/—ilo-brasilia/documents/genericdocument/wcms_336957.pdf

[13] LESSENICH, Stephan. La Sociedad de la Externalización. Trad. Herder Alberto Círia. Barcelona:  S.L., 2019, N.P.

[14] POLANYI, Karl. A grande transformação. As origens de nossa época. RJ: Editora Campus, 2000, p. 89.

[15] STF, RE 958252, DJE 13/09/2019, p. 47.

[16] COASE, R. “The nature of the firm”. Economica, 4, 1937, p. 386-405.

[17] FREGA, Roberto. “Firms as coalitions of democratic cultures: towards an organizational theory of workplace democracy.” Critical Review of International Social and Political Philosophy, 2022. DOI: 10.1080/13698230.2022.2113225.

[18] BROWN, Wendy. “O Frankstein do neoliberalismo: liberdade autoritária nas ‘democracias’ do século XXI”. Neoliberalismo, neoconservadorismo e crise em tempos sombrios. Chiara Albino et all. (org.). Recife: Seriguela, 2021, p. 92-150.

[19] PEREZ-ROYO, Javier. Curso de Derecho Constitucional, Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 87.