STF vai decidir sobre nova forma de trabalho intermediada por apps

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No Brasil, a ausência de legislação específica sobre a natureza jurídica da relação entre as plataformas digitais e os motoristas e entregadores que as utilizam alimenta uma discussão jurídica que tem se restringido, de forma retrógrada e desatualizada, à dicotomia entre haver ou não haver vínculo de emprego, nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), entre os trabalhadores e as respectivas plataformas.

A Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) e suas associadas têm a mais absoluta convicção de que os fatos mostram que essa nova forma de relação de trabalho não se adequa às rígidas regras previstas na CLT, seja por não estarem presentes os requisitos caracterizadores de uma típica relação de emprego (pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação), seja porque as características inovadoras dessa nova forma de trabalho não dialogam com um diploma legal pensado em 1943, em plena era industrial, de modo que sequer os motoristas parceiros desejam estar submetidos a tais regras, como apontou a pesquisa do Datafolha[1].

Acerca especificamente do debate jurídico sobre o tema no Brasil, recentemente, o ministro Luiz Fux incluiu na pauta de julgamentos da sessão virtual da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) as Reclamações 59.404 e 61.267, ambas oriundas de processos de Minas Gerais, onde se discute o reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e empresas de aplicativo. Apesar das inúmeras decisões monocráticas já proferidas acerca do tema, no sentido de afastar a existência de vínculo[2], será a primeira vez que um órgão colegiado da mais alta corte do país analisará a questão.

Segundo se extrai da leitura dos autos, o tribunal de origem reconheceu o vínculo de emprego entre o motorista de aplicativo e a plataforma que realiza a intermediação do serviço. Inconformada com a decisão, a empresa Cabify apresentou Reclamação ao Supremo, uma vez que o reconhecimento de vínculo no caso em análise representaria ofensa a julgados já proferidos pela corte, que reconhecem expressamente a constitucionalidade de outras formas de relações de trabalho diferentes daquela prevista na CLT.

Apesar dos efeitos jurídicos de eventual decisão nos autos restringirem-se às partes do processo, não podemos deixar de reconhecer a relevância da discussão sobre o tema – trabalho intermediado por aplicativos – para toda a sociedade nos dias de hoje. Nesse sentido, a Amobitec não poderia se omitir em exercer a sua função institucional de trazer dados e informações sobre o setor para apoiar o debate.

Por diversas oportunidades, tribunais já se debruçaram sobre este tema, reconhecendo, de modo majoritário, que não se trata de uma relação de emprego nos moldes previstos na CLT, mas sim de uma nova forma de trabalho, intermediada por plataforma digital, que surge com o advento da tecnologia.

Nesse sentido, constata-se que o trabalho intermediado pelos aplicativos de mobilidade de pessoas e de entrega de mercadorias é um fenômeno relativamente recente e que as discussões a seu respeito devem ocorrer a partir de um entendimento efetivo desse novo modelo de negócios.

As plataformas digitais, que operam aplicativos, intermedeiam a usuários previamente cadastrados a oferta de serviços por meio de soluções tecnológicas que organizam a demanda para milhões de profissionais independentes e de estabelecimentos comerciais. Entregadores e motoristas utilizam as plataformas para dar escala à sua atividade e, consequentemente, gerar renda. O tomador desses serviços é o usuário final, ou seja, quem pede uma refeição ou entregas de supermercado, ou o passageiro que solicita uma viagem para se locomover. A plataforma é, claramente, mera intermediadora.

Tal arranjo jurídico, cuja legalidade já foi inclusive reconhecida pelo STF em Repercussão Geral (Tema 967)[3], consagra o papel das plataformas como intermediadoras de uma nova relação de trabalho. Nesse sentido, vale destacar um trecho do voto do atual presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, então relator do RE 1.054.110, que foi apreciado em conjunto com a referida ADPF:

“Penso que nós temos de aceitar como uma inexorabilidade do progresso social o fato de que há novas tecnologias disputando mercado com as formas tradicionais de oferecimento de determinados serviços. (…) digo que há um conjunto de novas tecnologias que se impõem e merecem uma demanda relevante da sociedade. Evidentemente, a melhor forma de o Estado lidar com essas inovações e, eventualmente, com a destruição criativa da velha ordem não é impedir o progresso, mas, sim, tentar produzir as vias conciliatórias possíveis”.

A consolidação da jurisprudência no Supremo no sentido de assegurar a constitucionalidade de relações de trabalho distintas daquela prevista na CLT é extremamente importante para o desenvolvimento do país. Como destacou o decano da corte, ministro Gilmar Mendes, no julgamento de processo de sua relatoria (ADC 48), que discutia a constitucionalidade de diferentes formas de relações de trabalho, que não aquela prevista na CLT:

“(…) a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção. Ao contrário, o princípio constitucional da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégias empresariais dentro do marco vigente (CF/1988, art. 170). A proteção constitucional ao trabalho não impõe que toda e qualquer prestação remunerada de serviços configure relação de emprego (CF/1988, art. 7º)”.

Como ressaltou o ministro Barroso em sua posse na presidência do STF, necessita-se de “segurança jurídica para que haja um bom ambiente para o desenvolvimento da economia e dos negócios no país, com incentivo ao empreendedorismo, ao investimento e à inovação”.

Especificamente sobre o tema em questão, as recentes decisões monocráticas proferidas pelos ministros Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Cristiano Zanin refletem o posicionamento do STF em reconhecer novas modalidades de trabalho consagrando, ao mesmo tempo, a liberdade econômica e de organização das atividades produtivas. As decisões mostram evidente tentativa dos ministros em direcionar os Tribunais do Trabalho para que em suas decisões considerem a existência de novas formas de trabalho que surgem e surgirão na medida da evolução econômica.

O que se tem em pauta, portanto, é a ratificação da jurisprudência da corte, no sentido de que os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1, inc. III) também estão respeitados em relações jurídicas não regidas pela CLT, como foi ratificado na ADC 48, por exemplo.

Adiciona-se ao debate jurídico os dados positivos acerca dos benefícios que esse novo modelo de negócios introduz em toda a sociedade.

Segundo dados de pesquisa[4] realizada pelo Centro Brasileiro de Análise Planejamento (Cebrap), atualmente o número de trabalhadores que exercem atividades intermediadas por aplicativos no Brasil é de quase 1,7 milhão, considerando motoristas e entregadores. Ainda segundo a pesquisa, os ganhos líquidos observados para as duas categorias são superiores ao salário-mínimo e à remuneração média do mercado para pessoas com mesmo nível de escolaridade.

Uma das premissas deste novo modelo é a flexibilidade, em nível inexistente em qualquer outra atividade. Os profissionais, por serem independentes, escolhem livremente e em qualquer momento as horas que querem trabalhar, podendo atuar simultaneamente em plataformas concorrentes. Essa flexibilidade é vista como principal atrativo e defendida pela maioria absoluta dos trabalhadores, que recusa a ideia de um vínculo trabalhista nos moldes da CLT.

De acordo com o estudo do Cebrap, cerca de 70% dos motoristas e entregadores consideram a flexibilidade e autonomia como as principais vantagens desse modelo. No mesmo sentido, pesquisa Datafolha[5] de 2023, também realizada entre motoristas e entregadores, constatou que a flexibilidade e autonomia para definir quando e onde trabalhar é o principal motivo para dirigirem ou realizarem entregas com as plataformas, com cerca de 85% de tais trabalhadores avaliando tal razão como importante ou muito importante. Ainda segundo o levantamento, 75% dos trabalhadores de aplicativos, sejam motoristas ou entregadores, preferem manter a atual autonomia a serem enquadrados nas rígidas regras da CLT.

Fato é que a flexibilidade e a autonomia permitem aos trabalhadores de aplicativos adaptarem a rotina de trabalho às suas rotinas de vida. Além disso, parcela considerável de motoristas e entregadores mantém outras atividades econômicas, o que demonstra que os aplicativos são relevantes fontes complementares de renda para essas pessoas. Atualmente, 48% dos entregadores e 37% dos motoristas afirmam ter outros trabalhos, concomitantes ao trabalho exercido por intermédio dos aplicativos.

Os números apresentados buscam dar uma visão objetiva das características e do que representa o trabalho intermediado por plataformas no país e sua importância para a sociedade nos dias de hoje, o que torna dificílimo pensarmos na vida cotidiana sem a existência dos aplicativos de mobilidade de passageiros ou de entregas de mercadorias. Essas ferramentas são parte do dia a dia de milhões de usuários e fonte essencial de renda para milhares de trabalhadores.

Por fim, mas não menos importante, a Amobitec reafirma seu entendimento sobre a necessidade de se debater uma regulação para essa nova relação de trabalho. A ausência de norma específica para regulamentar a questão traz elevada insegurança jurídica para todos os atores envolvidos. É necessário construirmos urgentemente um marco legal para o setor.

Por isso, desde maio a entidade vem participando ativamente dos esforços liderados pelo Poder Executivo para a formulação de uma nova legislação para o trabalho intermediado por plataformas, por meio do Grupo de Trabalho instituído pelo Decreto 11.513/23. O debate tem avançado bastante nos últimos meses no sentido da construção de uma legislação atual, que seja adequada às novas formas de trabalho e aos novos tempos, combinando a proteção de direitos dos trabalhadores e a preservação da capacidade de inovação exigida pelos novos modelos de negócio. Como o STF vem reiterando em suas decisões recentes, não há qualquer dicotomia entre flexibilidade e autonomia, de um lado, e proteção do trabalhador, de outro.

Fica claro, portanto, que as discussões no âmbito regulatório e no Judiciário não podem desconsiderar o papel das plataformas enquanto intermediadoras da relação entre motoristas/entregadores e usuários, nem muito menos contrariar a própria essência deste tipo de atividade, que permite conciliar estudos, atividades pessoais e outras fontes de ganhos econômicos.

[1]  https://uber.app.box.com/s/nzll2w8da6hlg84lubjn5h2y08ka6o0s

[2] Reclamação 61.267, Reclamação 59.404, Reclamação 60.347, Reclamação 59.795, Reclamação 63.414, Reclamação 63.823, Reclamação 64.018

[3] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 449, de relatoria do Ministro Luiz Fux e Recurso Extraordinário 1.054.110, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso

[4] https://amobitec.org/com-dados-ineditos-de-99-ifood-uber-e-ze-delivery-pesquisa-mostra-quem-sao-e-quanto-ganham-motoristas-e-entregadores-no-brasil/

[5] https://uber.app.box.com/s/nzll2w8da6hlg84lubjn5h2y08ka6o0s