A discussão sobre a devolução dos valores de tributos recolhidos a mais por consumidores de energia elétrica volta à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (13/8).
O cenário da retomada do julgamento é de uma maioria já formada pela constitucionalidade da lei que obrigou o ressarcimento. Agora, a preocupação das empresas, dos consumidores e do governo está em lacunas a serem resolvidas pelos ministros e que alteram a sistemática de devolução dos valores, como o tempo de ressarcimento, o início do tempo de contagem e a dedução dos gastos das distribuidoras com as ações judiciais.
O tema interessa consumidores, distribuidoras e o governo federal porque impacta a conta de energia elétrica e pode gerar repercussões em outros setores, como o de gás. O desfecho do julgamento é, no momento, uma das principais variáveis mapeadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que pode influenciar na projeção de reajuste médio da tarifa de energia elétrica e, consequentemente, trazer impactos inflacionários.
Validade da lei 14.385/2022
A discussão que chegou ao Supremo é a validade da Lei 14.385/2022, que obrigou as distribuidoras de energia elétrica a devolverem aos consumidores tributos pagos a mais nas contas de energia elétrica — como consequência do julgamento da “tese do século”, que retirou o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins.
Ainda não está clara como será a conclusão do julgamento — os próprios ministros entendem que são muitas variáveis que estão em jogo e que podem trazer impactos econômicos e sociais. Mas a partir do que já foi colocado nos votos e nas discussões, eles devem delimitar algum tempo de devolução para quantificar os valores.
Prescrição
Uma das principais indefinições é sobre a prescrição — isto é, por quantos anos retroativos os consumidores teriam direito ao ressarcimento. Os ministros vão decidir se esse período deve existir e, em caso afirmativo, se será de 5 ou 10 anos. A definição da prescrição pode diminuir o valor de repasse calculado até agora pela Aneel, que considerou a devolução de todo o montante cobrado a mais.
Até o momento, apenas o ministro Flávio Dino se manifestou contra a fixação de um prazo prescricional. Outros discutiram se seria de 5 ou 10 anos. Os ministros Cristiano Zanin, Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli defendem prescrição de 10 anos e Dino se mostrou disposto a aderir a essa corrente. Neste caso, o prazo está relacionado à prescrição do Código Civil. Já os ministros Luiz Fux e André Mendonça votaram pela prescrição de 5 anos, conforme o Código Tributário Nacional.
Se for definida a prescrição, ainda não está claro também a partir de quando ela começaria a contar: da edição da lei, em 2022; do julgamento da “tese do século”; ou do momento do ingresso da ação pelas empresas.
As diversas correntes de prescrição levaram a Advocacia-Geral da União (AGU) a incluir nos autos um memorial com os impactos na conta de energia dos brasileiros e na inflação.
Segundo a União, já foram devolvidos aos usuários de energia elétrica, via processos tarifários, R$ 43,3 bilhões de reais (valores nominais), os quais representam cerca de R$ 54 bilhões de reais (corrigidos pela Selic). Além desse montante, caso mantido o procedimento atual de devolução, estima-se que ainda restem cerca de R$ 19 bilhões, em valores corrigidos, a serem considerados nos próximos processos.
De acordo com o documento apresentado ao STF, das 51 concessionárias de distribuição, 20 já concluíram o processo de devolução nos processos tarifários e outras 5 não possuem créditos.
Entre as demais 26 concessionárias, para as quais resta o saldo de R$ 19 bilhões, várias estão em estágio final de devolução, sendo que, para grande parte dessas, o montante residual a ser devolvido representa valor inferior ao já revertido nos processos tarifários.
Impacto nos consumidores
O governo calcula que em eventual cenário de limitação por meio da prescrição de 10 e 5 anos, os consumidores passariam a ter de devolver mais de R$ 4,6 bilhões e R$ 26,7 bilhões.
A Aneel aponta que, caso acolhida a tese de “prescrição” de 10 e 5 anos, o impacto negativo para os consumidores no efeito tarifário anual será de um aumento adicional médio de 6,8% a 13,3%, respectivamente.
Na avaliação de Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia Elétrica, qualquer cenário de prescrição é ruim para o usuário de energia elétrica porque deve impactar os preços. E, por isso, a defesa da entidade é para que prevaleça o voto do ministro Flávio Dino, sem prescrição.
“O maior agressor do IPCA foi a energia elétrica. A Aneel reconhece que o aumento da energia elétrica neste ano vai superar a inflação – a previsão da Aneel é de 6,5% e o IPCA está com uma previsão de 5,7%”, calcula.
Na visão do advogado Lucas Fracca, do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), o melhor voto para os consumidores é o do ministro Flávio Dino, mas ele acredita que não prevalecerá. O instituto também defende que o consumidor não suporte o ônus de custos indiretos das empresas, como os gastos com o processo judicial, por exemplo.
“A nossa opinião enquanto defesa do consumidor é que se a cobrança foi indevida, tanto o imposto quanto os custos indiretos também foram indevidos. Então teria que ser feita a restituição completa, devidamente corrigida, atualizada monetariamente”.
Diante da maioria formada, nos bastidores, as distribuidoras tentam conseguir no STF a menor prescrição e, que, ao menos, os custos indiretos, como advogados e custas judiciais na ação sobre a “tese do século”, sejam ressarcidos às empresas.
A ideia é evitar que as concessionárias sejam desestimuladas a ingressar com ações judiciais que beneficiem os consumidores, como neste caso. Procurada, a Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), autora da ação no STF, informou “que acompanha com atenção a tramitação sobre o assunto no Supremo Tribunal Federal”.
Mercado de gás
Embora a Lei 14.385/2022 em discussão no Supremo seja específica sobre energia elétrica, os efeitos do julgamento podem ser estendidos a outros setores regulados. Cálculos da Abrace Energia indicam que os consumidores de gás podem ser ressarcidos em até R$ 3,62 bilhões.
A Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás) é uma das entidades preocupadas com o julgamento do STF. A representante empresarial entende que, na prática, a lei possui um escopo mais abrangente, podendo servir de paradigma para diversos outros setores regulados, incluindo o setor de gás. Por isso, anexou um documento no processo demonstrando a preocupação.
Na visão da entidade, o julgamento do STF desfavorável às distribuidoras de energia elétrica pode desestimular as empresas ao ajuizamento de ações de repetição de indébito, uma vez que o valor a ser ressarcido não ficará com as empresas, mas com os consumidores.
Segundo a Abegás, o repasse integral previsto na Lei n. 14.385/2022 irá beneficiar, sem qualquer justificativa econômica, os consumidores industriais, que correspondem a cerca de 84% dos usuários do setor de gás.
No STF, a entidade pediu a inconstitucionalidade da lei e, caso não seja atendida, que sejam deduzidos do termo “integral” os valores incidentes a título de IR e CSLL, assim como as despesas e custos incorridos pelas concessionárias com o ingresso e manutenção das ações judiciais. Ainda, que sejam excluídos como possíveis beneficiários os consumidores industriais, os consumidores inadimplentes e os consumidores que não compunham a base de clientes das concessionárias no período em que ocorreram o pagamento indevido dos tributos.
Algumas concessionárias de gás pelo país já começaram a discutir uma possível devolução de valores. Nota técnica da Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) de dezembro de 2022 mostrou possíveis formas e valores de devolução. No entanto, as empresas de gás aguardam a diretriz vinda do julgamento do STF. Por enquanto, não há regulamentação do formato de devolução dos valores aos consumidores no caso do gás, visto que a lei questionada no STF refere-se apenas à energia elétrica.
Associações de consumidores de gás – como indústrias – têm defendido que não é preciso lei específica para o gás de modo a garantir o ressarcimento. A leitura é que a devolução está garantida pela Lei de Concessões (8987/1995), no artigo 9º, §3º, por conta da política tarifária a que as concessionárias estão submetidas. Portanto, na análise dessas associações, o fim do julgamento do STF servirá para travar as amarras da devolução, uma vez que as empresas estão esperando uma definição da Corte. Esse raciocínio apareceu na argumentação do voto do ministro Alexandre de Moraes, quando ele votou.
“No dia seguinte do julgamento do Supremo, nós vamos bater na porta das agências reguladoras. Nós já apresentamos para algumas agências reguladoras estaduais um pleito de devolução e eles nos devolviam sempre com essa resposta: “Olha, a gente tá de olho no julgamento do Supremo”, afirma Fernanda Fiorentini, advogada da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro).