Uma das principais características do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) é, além da plurifasia — incidência verificada em sucessivas operações de circulação e comercialização de mercadoria, a não cumulatividade.
Em linhas bastante gerais, isso implica dizer que o contribuinte poderá creditar-se, em cada operação relativa à circulação de mercadorias inserida no campo de incidência do ICMS, do montante cobrado nas etapas anteriores pelo mesmo ou outro estado da Federação, inclusive o Distrito Federal.
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Não obstante, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico pátrio e garantir a competitividade do produto nacional no mercado externo, o Poder Constituinte assegura, desde a versão original do texto constitucional de 1988, imunidade tributária às operações que destinem mercadorias ao exterior.
Adicionalmente à não incidência do imposto nas operações de exportação, veio à lume em 2003, a Emenda Constitucional (EC) n. 42 que, dentre outras importantes alterações, passou a garantir ao contribuinte exportador o direito à “manutenção e o aproveitamento do crédito do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”, ainda que a sua operação de saída não se submeta ao ICMS. É o que se depreende da leitura da alínea “a” do inciso X do parágrafo 2º do artigo 155 da Constituição Federal.
Contudo, ao arrepio do texto constitucional, que não impôs qualquer restrição ao pleno e imediato gozo do direito ao creditamento dos montantes incidentes na cadeia produtiva de bens destinados à exportação, o legislador complementar, ao editar a Lei Kandir (LC n. 87/96 e suas alterações posteriores), criou verdadeiras barreiras temporais ao exercício desse direito a crédito, especialmente nas operações envolvendo a aquisição de bens destinados ao uso e consumo do estabelecimento.
Nesse sentido, o artigo 33 da Lei Complementar nº 87/96 estabelece que, nas operações relacionadas às aquisições de bens para uso e consumo no processo produtivo, o creditamento somente estará autorizado a partir de 1º de janeiro de 2033, segundo redação dada pela Lei Complementar nº 171/2019. Anote-se que o início dessa fruição já foi postergado inúmeras vezes, de forma a se equiparar a verdadeiro calote institucionalizado e acinte à moralidade.
Já no tocante ao direito ao creditamento de bens destinados ao ativo fixo, que contribuem para a produção de bens destinados à exportação, a controvérsia reside em saber se esse direito poderia ser de alguma forma relativizado por comando infraconstitucional, como aquele que consagra o critério do crédito físico. Ou seja, no entender do Fisco, se os bens foram adquiridos a título de ativo fixo e não se integram à mercadoria final a ser exportada, não haveria liame para a sua conexão com a exportação imune e, com isso, os créditos relativos à aquisição desses bens deveriam ser estornados, por força do artigo 31, II do Convênio ICMS 66/88.
Em razão das barreiras criadas pela Lei Kandir, inúmeros contribuintes deixaram de escriturar, ou estornaram, créditos relativos à aquisição de materiais de uso e consumo ou ativo imobilizado, que, embora tenham integrado o custo de produção, não foram fisicamente incorporados à mercadoria comercializada, nem se desgastado na produção de tais produtos, mesmo quando destinados à exportação.
Por esse motivo, com fundamento na notável inconstitucionalidade dessas limitações veiculadas pela legislação infraconstitucional, inúmeros contribuintes vêm se socorrendo no Poder Judiciário.
Os temas, em razão de sua notável relevância, foram recebidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sede de repercussão geral (Temas n. 633, RE 704.815/SC, e 619, RE n. 662.976), em razão da interposição de Recursos Extraordinários pelos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Em ambos os casos, a repercussão geral da matéria – isto é, sua relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, e que ultrapasse os interesses subjetivos da causa – foi reconhecida pelo Supremo há mais de 10 anos, mas apenas neste ano foi incluída na pauta de julgamentos.
No bojo do Tema n. 633 (RE 704.815/SC) de repercussão geral, o STF analisará “a possibilidade de creditamento, após a Emenda Constitucional 42/2003, do ICMS decorrente da aquisição de bens de uso e de consumo empregados na elaboração de produtos destinados à exportação, independentemente de regulamentação infraconstitucional. Questiona-se a autoaplicabilidade da referida emenda constitucional e seus efeitos sobre a Lei Complementar 87/1996, como norma de imunidade tributária”.
Em razão da similaridade da matéria, também será analisado o Tema n. 619 (RE nº 662.976/RS), em que se discute “a possibilidade, ou não de aproveitamento, nas operações de exportação, de créditos de ICMS decorrentes de aquisições de bens destinados ao ativo fixo da empresa”.
O julgamento da matéria pelo Plenário Virtual do STF foi iniciado em 22 de setembro mas, após os votos do relator, ministro Dias Toffoli, e os ministros Rosa Weber, Edson Fachin e André Mendonça. Todos negaram provimento ao recurso extraordinário fazendário e propuseram o cancelamento do tema n. 619, em razão de sua similaridade com o Tema n. 633. O julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro Gilmar Mendes.
Em seu voto, o relator, ministro Dias Toffoli destacou a inaplicabilidade da diferenciação entre “crédito físico” e “crédito financeiro” ao caso concreto. Isso porque o primeiro deles decorre do princípio da não cumulatividade e que permite a regulamentação pelo legislador complementar. Já na segunda hipótese, crédito financeiro, o direito à apropriação e escrituração do crédito decorre de benesse constitucional, na redação inaugurada pela Emenda Constitucional nº 42/03.
Nesse sentido, de forma bastante acertada, reconhece o relator a impossibilidade da limitação ou restrição do direito do contribuinte ao aproveitamento do crédito por norma complementar: “Não tendo a Carta Federal estabelecido impedimento de cunho temporal no que diz respeito à manutenção e ao aproveitamento desses créditos, não poderia a lei infraconstitucional institui-los“.
Conforme já exposto alhures, não pode o legislador complementar, sob pena de afronta ao texto constitucional e, inclusive, à não-cumulatividade, impor restrições ou condições ao direito ao creditamento pelo contribuinte nas operações destinadas à exportação (imunidade tributária) de bens adquiridos para compor o ativo permanente ou para uso e consumo na produção.
Parece-nos certo, então, afirmar que o direito ao creditamento de ICMS, previsto na Carta Magna, é norma de natureza plena e autoaplicável e que não permite restrição ou limitação posterior pelo legislador complementar ou ordinário.