O Supremo Tribunal Federal (STF) recentemente fixou tese em caso que puniu jornalista por declaração caluniosa de entrevistado, um resultado que desagradou associações de jornalistas. O caso reforça tendência recente em que o tribunal tem se mostrado mais preocupado em controlar comunicações críticas – justamente quando essas críticas começaram a se voltar contra os próprios ministros, poucos anos atrás.
Como já argumentei em estudo sobre o inquérito das fake news, os ministros do STF têm se preocupado com a circulação de acusações, notícias falsas ou ameaças contra funcionários da corte e familiares. O fenômeno foi precipitado, em 2019, com a chegada do bolsonarismo ao governo federal, um projeto político agressivo e que não se furtou em contestar o controle constitucional da corte e ameaçar seus membros.
Nas décadas anteriores, o STF apresentava uma série de casos de grande visibilidade na defesa da liberdade de expressão e da imprensa, incluindo o fim da Lei de Imprensa até a permissão de biografias sem autorização prévia.
Pode parecer uma ruptura de um STF liberal e pró-imprensa para uma corte mais restritiva no campo da liberdade de expressão e crítica aos jornalistas. Mas os ministros sempre destacaram que os jornalistas poderiam ser punidos posteriormente por abusos, mesmo nos julgamentos da Lei de Imprensa e das biografias sem autorização. Como defendi em minha tese de doutorado na USP, publicada no livro “Censura, Justiça e Regulação da Mídia na Redemocratização”, o que o STF procurava evitar era o controle prévio do que podia ser dito ou de quem podia dizê-lo.
A corte sempre deixou aberta a possibilidade de responsabilização posterior, e mesmo nos anos que liberava biografias e incinerava a Lei de Imprensa dos tempos da ditadura militar, já eram frequentes os casos em que a corte permitia ou reforçava punição de jornalistas para proteger direitos da personalidade, como imagem, honra e reputação.
Essa tendência só ganhou mais visibilidade pois casos recentes envolvem críticas ou denúncias contra os ministros, como os casos do inquérito das fake news e da censura à revista Crusoé e a condenação de repórter a pagar indenização por livro-reportagem com críticas contra o ministro Gilmar Mendes, como apontei em pesquisa publicada com a doutoranda Ester Marques.
Se a punição de críticos da corte já atraía preocupações, o novo caso de punição de veículo jornalístico por declaração de entrevistado ganha força ainda maior pela repercussão geral. Na tese fixada na última quarta-feira (29), o STF indicou que jornalistas podem ser punidos a posteriori por “entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro”, em duas condições: se no momento da publicação da entrevista o jornalista ignorou “indícios concretos da falsidade da imputação” e se faltou “dever de cuidado na verificação da veracidade”.
Pode parecer uma responsabilização comedida: afinal, seria somente punida a ignorância de má-fé e o descuido por imperícia. Ao menos limita os estragos potenciais do julgamento anterior, que elevava a insegurança jurídica a níveis tão elevados que mesmo entrevistas ao vivo colocariam os profissionais de imprensa quase que automaticamente na mira da Justiça. Por exemplo, se a fonte insinuasse que uma personalidade política é corrupta, bastaria ao jornalista indicar em seguida que as acusações ainda estariam pendentes a investigação ou julgamento para afastar a possibilidade de punição?
É importante relembrar que o jornal deste caso específico fora condenado em instâncias inferiores pois o entrevistado negara ter dado a declaração acusatória falsa, e já não havia mais gravações da fala. O STF poderia ter destacado esse ponto na tese fixada, indicando que a responsabilidade caberia ao jornalista ou ao veículo caso não pudessem comprovar que a calúnia seria realmente do entrevistado. Esse seria um limite que reforçaria a responsabilidade de entrevistadores e entrevistados, atribuindo aos últimos as consequências legais decorrentes de eventuais falas problemáticas.
Na tese fixada, também foi desprezada a preocupação em ouvir o “outro lado”, dando espaço para o acusado poder se defender, como originalmente defendido pelo ministro Edson Fachin, no início do julgamento, em 2020. Fachin também defendia um limite mais restritivo, considerando que o caso só poderia ter repercussão ampla ao tratar de informações suspeitas, disseminadas em período autoritário, visto que a entrevista problemática repercutia acusação falsa do período da ditadura militar.
Em suma, aqueles que tendem a ganhar com a nova jurisprudência do STF são os que procuram novas oportunidades de litigância na indústria das indenizações. A decisão também abriu nova oportunidade para representantes políticos do bolsonarismo apresentarem-se como defensores da liberdade de expressão. Assim como o então presidente Jair Bolsonaro já defendera, em 2019, a imprensa contra o STF no caso da censura da Crusoé, desta vez o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) criticou a corte, construindo paralelo entre o que vê como uma perseguição política contra seu pai e o cerceamento da imprensa que muito provavelmente emergirá da decisão da última quarta-feira.
Não se pode ignorar que os Bolsonaro frequentemente ameaçam, incitam agressões e litigam contra jornalistas com frequência tão grande que levou inclusive à condenação do ex-presidente por dano moral coletivo contra profissionais da imprensa. Todavia, o bolsonarismo assume o inusitado papel de paladino da liberdade de imprensa quando lhe convém — ou seja, naquelas ocasiões em que lideranças de extrema direita veem uma oportunidade para atrair holofotes e combater a mídia tradicional. Assim, segue a erosão da credibilidade da imprensa para além dos círculos radicalizados e o consequente empoderamento dos maiores perseguidores de jornalistas que, embora sujeitos a equívocos, estão comprometidos com a democracia.