Stablecoins globais: entre a inovação financeira e o desafio regulatório

  • Categoria do post:JOTA

Com o G20 se deslocando este ano para a África do Sul, os desafios estruturais da arquitetura financeira global permanecem centrais para a cooperação multilateral. Entre eles, a regulação das stablecoins globais – isto é, ativos virtuais com alcance internacional, geralmente lastreados em moedas fiduciárias percebidas como fortes – segue sendo uma questão crítica para economias emergentes e países em desenvolvimento.

A ordem executiva emitida em janeiro pelo governo Trump reforça a urgência desse debate ao priorizar “a promoção e a proteção da soberania do dólar dos Estados Unidos, incluindo ações para fomentar o crescimento de stablecoins legítimas e lastreadas no dólar em todo o mundo”. Essa postura tende a consolidar a já predominância das stablecoins denominadas em dólar nos mercados globais.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

O mercado de stablecoins ultrapassou US$ 210 bilhões em 2025, com um crescimento de 59% em 2024, representando atualmente 1% dos dólares em circulação no mundo. No Brasil, a consulta pública do Banco Central 111/2024, encerrada em fevereiro, discutiu a extensão das regras cambiais e de gestão de fluxos de capital internacional às stablecoins referenciadas em moeda estrangeira.

O domínio do dólar é evidente: a moeda representa 49,1% dos pagamentos transfronteiriços, 57,4% das reservas internacionais,  e está presente em 88% das transações cambiais. Ainda mais impressionante é o percentual da capitalização de mercado das stablecoins vinculadas ao dólar americano: 99%.

Esse dado demonstra o reforço da hegemonia dessa moeda também na criptoeconomia global, o que levanta preocupações políticas em relação à soberania monetária, à estabilidade financeira e à supervisão regulatória para os demais países do mundo. Afinal, a tecnologia de registro distribuído, que sustenta a emissão e a negociação desse tipo de ativo, não tem fronteiras.

Em policy brief para o Think 20 (T20) no Brasil, escrito em coautoria com Matheus Cangassu, eu analiso as stablecoins como uma nova forma jurídica e tecnológica de moeda privada internacional. Esses ativos podem aumentar a liquidez e a eficiência das transações transfronteiriças por meio da tecnologia de registro distribuído, como a blockchain, ao oferecer, por exemplo, benefícios relacionados à liquidação instantânea de transações, à redução de intermediários e dos custos correspondentes, e ao aumento da transparência e da segurança de operações financeiras.

Não é por acaso que esse mercado tem despertado o crescente interesse de instituições financeiras e fintechs globais, que buscam garantir uma fatia do mercado de pagamentos transfronteiriços. Embora as stablecoins já sejam amplamente utilizadas na criptoeconomia como moeda intermediária entre ativos virtuais, elas vêm ganhando espaço em mercados tradicionais de economias emergentes e em desenvolvimento em competição com o serviço bancário para pagamentos internacionais, notadamente em setores como o de commodities.

No entanto, a proliferação de stablecoins globais em mercados não regulados pode trazer riscos substanciais à estabilidade financeira. A ausência de regulamentação harmonizada e de supervisão transfronteiriça eficaz cria vulnerabilidades institucionais, que exigem coordenação multilateral.

A ascensão das stablecoins parece guardar semelhanças históricas com o desenvolvimento do mercado de eurodólar, surgido entre as décadas de 1950 e 1960, como um mercado offshore de ativos bancários denominados em dólares, fora do alcance da jurisdição americana. No entanto, enquanto os eurodólares operam atualmente sob um arcabouço regulatório mais estruturado e relativamente harmonizado — ainda que complexo e fragmentado —, as stablecoins globais permanecem amplamente fora das estruturas regulatórias atuais.

Enquanto os bancos emissores de eurodólares estão sujeitos à supervisão regulatória de suas jurisdições, os emissores de stablecoins frequentemente operam sem um domicílio jurídico definido, dificultando a implementação de regras sobre proteção ao consumidor e de requerimentos quanto à solvência e à liquidez dessas entidades. Como destacamos no policy brief, a falta de transparência e de auditoria dos maiores emissores de stablecoins, principalmente os que não seguem políticas claras de lastro e resgate 1:1, adiciona complexidade ao seu enquadramento regulatório.

A mitigação desses riscos exige uma ação coordenada entre organizações internacionais e reguladores nacionais. O policy brief  para o T20 propõe recomendações estratégicas para equilibrar inovação financeira e segurança jurídica para o setor. Um passo essencial é ampliar a coleta de dados estatísticos sobre transações com stablecoins, pois a falta de informações padronizadas dificulta a formulação de políticas eficazes. Sob a liderança do G20, organizações internacionais devem expandir seu monitoramento para garantir uma supervisão mais robusta do uso de stablecoins entre diferentes jurisdições.

Outro ponto crucial é o alinhamento de marcos regulatórios nacionais. A fragmentação normativa abre espaço para arbitragem regulatória, dificultando um controle mais eficaz sobre esses ativos. O relatório do Financial Stability Board (FSB), publicado em 2024, com análise de questionário respondido por 73 autoridades ao redor do mundo, mostrou que, enquanto algumas economias de mercado emergentes e em desenvolvimento avançam na regulamentação das stablecoins, muitas ainda enfrentam obstáculos que podem atrasar sua implementação, se comparadas a economias avançadas.

Em média, apenas 35% do primeiro grupo de países possui regulamentação de stablecoins globais alinhada internacionalmente, parcial ou totalmente, contra 63% das economias avançadas. Além disso, muitos países de economia emergente ou em desenvolvimento ainda não definiram um plano claro para regular esse tipo de ativo virtual (36%).

A integração das stablecoins ao sistema financeiro regulado exige mecanismos robustos de gestão de riscos. Defende-se a adoção de um marco regulatório alinhado ao Regulamento de Mercados de Criptoativos (MiCAR) da União Europeia, que estabelece critérios claros para emissão e supervisão de stablecoins, aproximando sua regulamentação do mercado financeiro tradicional sob o princípio de “mesma atividade, mesmo risco, mesma regulação“. Contudo, economias emergentes devem considerar medidas adicionais para lidar, por exemplo, com a gestão de fluxos internacionais de capital.

Outro desafio urgente é o fortalecimento da segurança jurídica e contratual em transações com stablecoins. Como esses ativos funcionam, na prática, como títulos ao portador, há necessidade de reconhecimento legal e enforcement de contratos entre diferentes jurisdições. Os Princípios da UNIDROIT sobre Ativos Digitais e Direito Privado oferecem uma base para a padronização jurídica entre os países do G20.

É essencial que economias emergentes e em desenvolvimento participem mais ativamente da formulação e da implementação de normas globais para stablecoins globais. Propostas de regulamentação harmonizada também deveriam considerar seus desafios monetários específicos. A cooperação e a negociação multilateral e regional podem viabilizar a criação de standards para gerir o impacto das stablecoins atreladas ao dólar, ao mesmo tempo em que aproveitam suas vantagens tecnológicas.

Com a presidência do G20 na África do Sul, o momento para agir é agora. O Brasil, com sua experiência regulatória inovadora no setor financeiro, pode desempenhar um papel central nesse debate regulatório internacional.