O juiz Orlando Gonçalves de Castro Neto, da 1ª Vara do Juizado Especial da Fazenda Pública, condenou o estado de São Paulo a indenizar em R$ 6 mil, por danos morais, uma pessoa que se identifica como não-binária que não conseguiu emitir seu novo documento no Poupatempo. Para o magistrado, não há razão juridicamente relevante para distinguir entre transgêneros binários cujo direito a alteração de nome e gênero já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pessoas não-binárias, como a parte autora do processo.
Conforme consta no processo, a recusa à extradição do documento ocorreu porque, para que ele fosse expedido, o interessado deveria informar a qual gênero pertence, se feminino ou masculino. Por não se identificar com nenhum dos gêneros convencionais, a parte autora não conseguiu expedir o documento.
De acordo com Castro Neto, a identidade de gênero encontra amparo no art. 3º, inciso IV da Constituição, que consagra o direito ao respeito à diferença e a não discriminação, correlacionados à livre expressão sexual.
”Nesse contexto, o uso do nome social é uma das maneiras de garantir o respeito às pessoas transexuais, evitando constrangimentos públicos desnecessários, ao permitir a identificação da pessoa por nome adequado ao gênero com o qual ela se identifica”, pontuou o juiz.
Desse modo, avaliou que a resistência dos servidores em não realizar a expedição de documentos pessoais sem a identificação do gênero, ”em que pese já houvesse retificação registrária indicando expressamente sexo ‘não especificado’, é conduta apta a ensejar violação de direitos da personalidade da parte requerente, em especial o nome, honra, imagem, vida privada e dignidade da pessoa humana, todos garantidos pela Constituição Federal (arts. 1º, III; 5º, X) e em diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”.
Na sentença, o magistrado destaca que, nessa direção, foi fixada a tese jurídica com Repercussão Geral (Tema 761) no STF, estabelecendo que:
“I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;
II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’;
III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;
IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.”
Também avalia que ao presente caso se aplica os fundamentos do julgamento ADI 4275/DF, realizado pelo STF em 2018. A fundamentação se baseia no fato de que a alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. Além disso, prevê que ”a pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental”.
Sendo assim, ponderou que ”conquanto a ADI tenha estabelecido orientação tendo em vista transgeneridade binária, seria incongruente admitir-se posicionamento diverso para a hipótese de pessoa não-binária uma vez que, também nesta, há dissonância entre nome e sexo atribuídos no nascimento e a identificação da pessoa, devendo igualmente prevalecer sua autonomia da vontade”.
O processo tramita sob o número 1002200-32.2022.8.26.0053 no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). O estado de São Paulo recorreu da decisão.