O ministro Luís Roberto Barroso, atualmente ocupando a cadeira de presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e, por conseguinte, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vem apresentando, em aparições públicas e em votos na Suprema Corte, princípios ou vetores para orientação de suas decisões em questões trabalhistas.
Seriam as seguintes, ipsis litteris: “(i) garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho; (ii) preservação do emprego e aumento da empregabilidade; (iii) formalização do trabalho, removendo os obstáculos que levam à informalidade; (iv) melhoria da qualidade geral e a representatividade dos sindicatos; (v) valorização da negociação coletiva; (vi) desoneração da folha de salários, justamente para incentivar a empregabilidade; e (vii) fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego” (vide, representando todas os demais, o voto na Reclamação 56.285).
Com exceção de dois dos princípios elencados, como a garantia de direitos fundamentais e a valorização da negociação coletiva, que encontram respaldo expresso na Constituição, os demais não possuem qualquer aderência ao texto constitucional e têm provocado estranhamento tanto em juristas como em cientistas políticos. Além de constitucionalmente extravagantes, esses “vetores” parecem muito mais adequados na boca de um político (liberal) ocupante ou postulante a cargos nos Poderes Executivo ou Legislativo.
Vamos analisá-los, um a um.
O vetor de “preservação do emprego e aumento da empregabilidade” poderia até, aparentemente, encontrar respaldo no inciso VII do art. 170 da Constituição, que trata dos princípios da ordem econômica. No entanto, é voltado para a determinação de políticas públicas, completamente inadequadas para desenho e autoimplementação por uma corte constitucional. Além disso, nunca poderia vir isolado dos demais princípios previstos no mesmo artigo, como a função social da propriedade, a valorização do trabalho humano e a justiça social, que também têm íntima relação com as questões trabalhistas e estão todos ausentes da lista dos vetores pinçados, capciosamente, pelo ministro.
Qual foi a razão da escolha desse princípio em particular e não dos demais, igualmente protegidos pela Constituição? Quem acompanha as palestras de Barroso, especialmente quando convidado a falar em conclaves empresariais, já percebeu que ele parte da ideia controversa de que “menos legislação trabalhista gera mais emprego”. O ministro, aliás, já comparou o mercado de trabalho ao mercado de imóveis, dizendo que a simplificação da lei de locação ampliou a oferta de aluguéis (ele apenas “esqueceu” que a Constituição protege especialmente os trabalhadores, que são pessoas humanas – e não coisas como imóveis).
Já a escolha do suposto princípio “formalização do trabalho, removendo os obstáculos que levam à informalidade” é ainda mais grave. Como uma Suprema Corte pode remover obstáculos que levam à informalidade? Mas antes disso: como o Judiciário pode fazer o levantamento desses obstáculos? Teria competência (em ambos os sentidos)? E depois de identificá-los, o que faria: desenharia uma legislação para combatê-los? Criaria políticas públicas amplas para a retirada desses obstáculos? Ou julgaria conforme o senso comum, baseado em visão ideológica que entenderia o Direito do Trabalho como um estorvo para a formalização, visão completamente dissociada da realidade, como mostram as pesquisas empíricas?
Na prática, o que a maioria no STF tem feito é “remover” o art. 7º como um suposto “obstáculo” à empregabilidade, “legalizando” relações jurídicas que artificialmente transformam trabalhadores em “patrões de si mesmos”, tornando letra morta todo o elenco constitucional de direitos sociais da Constituição.
O absurdo dos tais “vetores” não para por aí. Veja-se o próximo da lista: “melhoria da qualidade geral e a representatividade dos sindicatos”. Como pode a Suprema Corte determinar que sindicatos sejam qualitativamente “melhores” e “representativos” para além do que já consta do texto constitucional?
Isso absolutamente não é função do Poder Judiciário e a premissa revela a consabida arrogância intelectual do ministro Barroso. Quem deve “melhorar a qualidade” dos sindicatos são os próprios trabalhadores no exercício da sua representação (sindical e parlamentar). Ainda mais porque “melhor qualidade” é conceito relativo e dependente de análise subjetiva. São sim da alçada do Supremo Tribunal garantir condições de liberdade sindical, algumas, inclusive, negadas pela nossa própria Constituição.
Contudo, se é para “melhorar” a qualidade da representação, aceitará o STF um sindicato formado tanto por empregados diretos como por terceirizados da mesma empresa, fortalecendo a unidade, solidariedade e representatividade da classe trabalhadora? Irá a Suprema Corte determinar a “inconstitucionalidade da norma constitucional”, via mutação, que obriga o sindicato único? Deverá rever todas as decisões que limitam a liberdade sindical, como a manutenção da obrigatoriedade do registro sindical e da limitação do número de diretores em um sindicato?
E que dizer então da pífia jurisprudência do STF em matéria de dispensa em massa, que obriga o empregador a comunicar o fato à entidade sindical, sem, contudo, lhe conferir qualquer poder de barganha (RE 999435)? Por que não aplicou nesse caso a “melhoria da qualidade e representatividade dos sindicatos”?
E o mais estranho de tudo: Barroso afirma a preocupação com representatividade dos sindicatos em julgamentos nos quais afasta o vínculo de emprego e legitima “pejotizações” fraudulentas, cujo resultado é… o esvaziamento da representação sindical! Ou seja, trabalhadores subordinados que num passe de mágica viram patrões de si próprio e com isso não são mais representados por sindicatos ou beneficiados por negociação coletiva. O ministro elenca um princípio e decide contrariamente a ele.
O “vetor” seguinte é ainda mais assombroso: “desoneração da folha de salários, justamente para incentivar a empregabilidade”. Aqui temos uma demonstração bruta de ideologia e falta enorme de Constituição. A oneração ou desoneração da folha de pagamentos é uma escolha eminentemente política, que deve ser analisada a partir de estudos de impactos, que, por óbvio, somente podem ser feitos pelo Executivo e decididos conjuntamente com o Legislativo. O espanto vem com o simplismo da fórmula: desoneração da folha = aumento da empregabilidade. Aqui vale lembrar a sentença sábia de H. L. Mencken: “Para todo problema complexo existe uma solução simples – e completamente errada”.
Conforme estudos aprofundados, a partir de dados da realidade e não de visão ideológica ou de interesses empresariais, a desoneração da folha não tem efeito sobre o volume dos empregos. E, ainda que assim não fosse, a “oneração” da folha de pagamento (para custeio do FGTS, INSS, seguro-desemprego e sistema S) é uma decisão da Assembleia Constituinte de 1987/88 e, ao que saibamos, não foi conferido ao ministro Barroso, até o momento, poder constituinte reformador.
E o que dizer da premissa “fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego”? Aqui, novamente, temos nada mais do que simples slogan ideológico que deleita as plateias empresariais do ministro Barroso e soa como música aos ouvidos do patronato anfitrião das festas galantes de Lisboa.
Para começar, a assertiva quanto à peculiar “estatística” é rigorosamente falsa. O cruzamento do número de trabalhadores formais e informais despedidos anualmente com o número de ações propostas a cada ano na Justiça do Trabalho aponta que cerca de 10% dos trabalhadores ajuíza ação trabalhista após o término da relação de emprego (ver aqui os detalhes).
Então, ao contrário do que o ministro sustenta em suas decisões judiciais, a propositura de ação trabalhista é exceção e não regra (aliás, quando recorre a “estatísticas” na área trabalhista, Barroso nunca indica a fonte e já cometeu terrível gafe em palestra no estrangeiro, ao dizer, baseado em nada, que “o Brasil concentra 98% das ações trabalhistas do mundo”).
A propalada “imprevisibilidade” nas relações jurídicas laborais é apenas o fenômeno comum e natural do direito que ocorre em todos os segmentos da vida social e econômica do país, afetado por constantes mudanças de políticas econômicas e transformações tecnológicas, que atingem não só o direito do trabalho, mas também o civil, o empresarial, o consumerista, o previdenciário, o administrativo etc.
E dentre estes, os direitos trabalhistas são dos mais estáveis, sendo amplamente conhecidos por trabalhadores (mesmo os mais simplórios) e empresários, já que fixados em perene legislação consolidada e afim (constantemente atualizada pelo legislador) e sedimentados na vasta jurisprudência do TST e do próprio STF.
Toda empresa tem acesso a consultorias jurídicas que podem fazer, como de fato fazem, análise de risco, com cálculos assustadoramente precisos de custo-benefício, que indicam inclusive, em vários casos, incentivos ao descumprimento das normas. Isso se dá da mesma forma como as empresas que contratam consultoria tributária para gestão de riscos dessa área.
A suposta “cultura” brasileira de “propor reclamações trabalhistas”, quando ocorre, é em verdade decorrente do descumprimento das normas trabalhistas pelo empregador, o que é demonstrado pelas estatísticas divulgadas pelo CNJ, presidido pelo próprio Barroso. Segundo o seu relatório “Justiça em Números 2024”, o item mais demandado em todos os ramos da Justiça, com 13,24% do total, é relacionado à rescisão do contrato de trabalho.
É o famoso “vá procurar os seus direitos”, ouvido pelos trabalhadores na hora da dispensa, quando saem de mãos abanando. Despedir o trabalhador sem pagamento de verbas rescisórias é muito “barato”, pois pode-se reduzir e parcelar o débito até extrajudicialmente, com a chancela da Justiça do Trabalho.
Ou seja, a litigância maior na Justiça do Trabalho não decorre de um direito “incerto”, “impreciso” ou “duvidoso”, ou menos ainda de “demandismo predatório” de vorazes advogados trabalhistas, mas sim de incentivos sistêmicos que facilitam a vida do empregador e dificultam a do empregado. É pura e simplesmente descumprimento de norma incontroversa.
Quando a Justiça do Trabalho recebe uma ação trabalhista sobre verbas rescisórias não pagas, quem está promovendo a litigiosidade é o empregador e não o empregado. Não se ouve do presidente do STF qualquer preocupação no sentido de resguardo imediato das verbas alimentares dos trabalhadores. Aliás, o ministro, na ADPF 501, votou em 2022 pela inconstitucionalidade da Súmula 450 do TST, que penalizava o empregador que não paga as férias na época própria, julgamento cujo resultado mais óbvio é o incentivo a mais descumprimento da legislação trabalhista.
O que se percebe na seleção caprichosa de princípios feita pelo ministro Barroso – seja pela subtração de alguns presentes de forma explícita na Constituição, seja pela inclusão de outros inexistentes ou de liame frágil e duvidoso com ela –, é uma visão sobrecarregada de ideologia liberal.
Curiosamente, esses “princípios” criados pelo magistrado são aplicados sempre para decidir contra o trabalhador e impedir que se lhes assegurem os direitos do art. 7º da Constituição. Isto é, uma principiologia voltada à não aplicação de normas expressas e induvidosas da Carta de 1988. Da forma pueril e inconsequente como vem sendo adotada, essa concepção distorcida da normatividade constitucional tem o potencial de produzir resultados deletérios e regressivos aos direitos sociais, sendo o principal deles a negação do próprio Direito, em especial do Direito do Trabalho.
Quando juízes constitucionais inventam princípios constitucionais que não existem para justificar suas preferências ideológicas, não é apenas o direito que está em risco – é a própria democracia. O ministro Barroso, que tanto apreço manifesta pelo regime democrático, o está derruindo com seu ativismo ilegítimo, inconstitucional e nefasto em matéria trabalhista.