Sociedade de mercado: o papel do direito e da teoria econômica na sua transformação

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Na coluna passada, destaquei o livro Sociedade de Mercado, de Don Slater e Fran Tonkiss[1], para o fim de mostrar, dentre outros tópicos, o papel do direito – especialmente do direito contratual – e da teoria econômica para a produção da nossa realidade, o que muitas ocorre por meio da reprodução e retroalimentação de estruturas de poder já existentes. No presente artigo, gostaria de mostrar a importância de ambos para a sua modificação.

Com efeito, muitos dos atuais problemas da sociedade de mercado, tanto no Brasil como no âmbito global, têm como uma de suas causas a insensibilidade do direito privado e da teoria econômica dominante – diante das amarras do formalismo e da pseudo-neutralidade – e a recusa de ambos em assumir o seu papel no arbitramento de valores e na correção de desigualdades estruturais da nossa sociedade.

Entretanto, a obra de Slater e Tonkiss[2] mostra também como a maior oxigenação do pensamento econômico e das ciências sociais vem possibilitando novas reflexões para superar o mencionado conservadorismo, valendo destacar os seguintes pontos principais:

1) crítica da separação artificial entre economia/teoria econômica e sociedade/ciências sociais[3], a partir de novas abordagens que procuram entender a ação econômica no contexto da ação social, ressaltando a importância dos laços sociais e de várias outras formas de coordenação entre as pessoas que não o auto-interesse e o mecanismo de preços[4].

Com isso, fica claro, como ensina Frank Dobbin[5], que é impossível tratar do fenômeno econômico sem considerar o poder, a cognição, os networks e as instituições, aí incluído o direito. Logo, para entender o mundo real, é fundamental compreender como esses vetores interagem para produzir a realidade e as suas desigualdades – como as raciais e as de gênero – e como esses mesmos vetores podem interagir para produzir resultados menos discriminatórios.

2) compreensão do papel das instituições, assim entendidas as regras, rotinas e normas pelas quais a atividade econômica e a troca de mercado são ordenadas[6]. Nesse sentido, sob várias perspectivas, vertentes como a economia institucional vêm possibilitando importantes diálogos com as demais ciências sociais e com o direito, uma vez que as regras jurídicas ocupam importante papel dentre as instituições formais.

O olhar institucional reforça a conclusão, já exposta no artigo anterior[7], de que as leis contratuais constituem e restringem os processos de mercado, mediando o interesse dos que têm propriedade e poder com os interesses dos que não têm[8].

Além da explicitação do arbitramento de valores e interesses inerentes à formatação dos mercados, a economia institucional, especialmente em vertentes como a de Douglas North e Geoffrey Hodgson, procura explicar as diferentes formas organizacionais não só a partir do critério da eficiência, mas sobretudo com base no papel das relações de poder, ao que se associa o caráter dinâmico e contingente dos fenômenos econômicos[9]. Assim, adota-se uma perspectiva evolutiva sobre o desenvolvimento das instituições e seus efeitos intencionais ou não[10].

É essa análise que possibilita concluir pelas funções mais ou menos inclusivas das instituições, tal como já apontado na famosa obra de Acemoglu e Robinson[11], abrindo uma nova fronteira de reflexões sobre como é possível, apesar das dificuldades, fazer mudanças institucionais, inclusive por meio do direito.

3) afastamento dos modelos ideais e excessivamente teóricos dos mercados, buscando aproximar a análise econômica de uma realidade cada vez mais caracterizada por falhas de mercado, concorrência imperfeita e assimetria informacional, reconhecendo igualmente que os fenômenos de mercado são insuscetíveis de amplo controle ou modelagens absolutas[12].

4) compreensão dos vetores do comportamento humano que não apenas o auto-interesse, com o que se reforça a importância dos laços sociais, fortes ou fracos, das redes informais ou extensas para as trocas e de outros vetores, como autoridade, confiança, lealdade, costume ou conexão pessoal[13].

Tais vetores podem ter importâncias diversas conforme se trate de relações de mercado, relações dentro da empresa ou relações em redes[14], o que faz com que Slater e Tonkiss concluam que “(…) parece claro que mercados, hierarquias e redes – e seus princípios de coordenação (preço, autoridade e confiança) existem ao mesmo tempo e em estreita inter-relação.”[15]

Apesar do aumento de complexidade da análise econômica, é inequívoco que tal abordagem, por ser mais fidedigna à realidade, possibilita instrumentos mais apurados para entender o papel do direito e da teoria econômica para a formatação e a transformação dos mercados.

5) expansão daqueles que devem ser considerados atores econômicos, a fim de incluir, tal como ensina Michel Callon, economistas, advogados, profissionais de marketing e outros, que interagem por meio de combinações, associações, relações e estratégias de posicionamento[16] .

Com isso, ganha proeminência o papel de advogados e economistas, assim como se ressalta o papel da teoria econômica e da produção jurídica para a conformação dos mercados e para a tomada de decisões sobre aspectos cruciais da sua existência, tais como os processos de “embutidura” ou “desembutidura”, ou seja, em que medida uma ação social ou determinado bem poderá ingressar no mercado a partir de processos contínuos que não são puros nem permanentes[17].

Uma das principais conclusões dessa maior amplitude de análise econômica é a de que “o enquadramento das ações de mercado e das instituições de mercado envolve não apenas certas tecnologias de cálculo, mas também lutas pelo significado e pelo poder”[18], razão pela qual a produção do conhecimento é tão estratégica.

6) compreensão do papel do conhecimento econômico, a partir da ideia de que “a teoria econômica não é simplesmente um comentário sobre processos econômicos reais externos a ela”, pois “faz parte da constituição e funcionamento dos mercados”[19]. A partir daí, a própria teoria econômica é vista como um fenômeno cultural, tecnologia de representação da sociedade[20] ou verdadeiro discurso que constrói os mercados, os indivíduos econômicos e as relações comportamentais[21].

Assim como a construção da realidade tem ocorrido prioritariamente pela perspectiva do individualismo, assim como da quantificação, modelagem e abstração de casos particulares[22], outros horizontes podem ser pensados. A partir do momento em que a teoria econômica, como ensina Callon, é vista como ator econômico que, longe de apenas observar como a economia funciona, também a molda e formata[23], o seu protagonismo no arbitramento de valores ganha proeminência.

Na verdade, segundo Slater e Tonkiss[24], o mesmo raciocínio pode se estender a diversas disciplinas que, assim como o marketing, a contabilidade e os estudos de gestão, ao mesmo tempo em que formalizam as práticas já existentes no mercado, trazem-nas de volta por meio da formação e da educação profissional. Da mesma maneira, tais conclusões são aplicáveis ao direito e ao seu modo de produção.

Daí a importância da formação dos profissionais que formatam os mercados, tais como advogados e economistas, a fim de que ao menos tenham consciência das escolhas valorativas que estão por trás do seu ofício.

7) compreensão mais fidedigna da relação entre Estado e mercados, a partir do reconhecimento de que as grandes economias decorrem da combinação entre a ação dos mercados e a ação dos governos[25]. Acresce que, uma vez introduzidas as questões de concorrência imperfeita e informação inadequada, a eficiência dos mercados não pode mais ser assumida, o que realça o papel dos governos para que os mercados sejam competitivos e eficientes, inclusive por meio da correção de falhas e externalidades[26].

Mais do que isso, essa nova visão coloca em xeque a ideia de que a principal – quando não a única – fonte de distribuição e redistribuição de recursos sociais deve ser o mercado, mostrando que o governo e outras instituições, como o direito, precisam também assumir a sua parcela de responsabilidade nas hipóteses em que o mercado não consegue distribuir adequadamente os recursos sociais e, o que é mais importante, quando é necessário transformar estruturas de poder desiguais ou iníquas, como as que permitem as discriminações raciais e de gênero.

A partir daí, tanto a teoria econômica, como o direito – não apenas o direito público, mas também o direito privado – ganham protagonismo, na medida em que fica claro que dificilmente a superação de desigualdades estruturais poderá ocorrer apenas pelos mecanismos de mercado, sem as correspondentes modificações institucionais.

[1] SLATER, Don; TONKISS, Fran. Sociedade de Mercado. Mercados e Teoria Social Moderna. Tradução de Carlos Nougué. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

[2] SLATER, Don; TONKISS, Fran. Sociedade de Mercado. Mercados e Teoria Social Moderna. Tradução de Carlos Nougué. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

[3] Slater e Tonkiss (Op.cit., pp. 123-124) citam a famosa frase de Durkheim, segundo a qual “o jurista, o psicólogo, o antropólogo, o economista, o estatístico, o linguista, o historiador – todos eles avançam em suas investigações como se as várias ordens de fatos que estão estudando formassem mundos independentes. No entanto, na realidade, esses fatos se interligam em todos os pontos.” Concluem que foi uma manobra que possibilitou separar a economia das outras ciências sociais, deixando o comportamento racional para a primeira e o comportamento irracional (afetivo, regrado, ritual, desviante, costumeiro) para as últimas, especialmente para a sociologia e antropologia.

[4] Slater e Tonkiss (Op.cit., pp. 127-132) exploram a obra de diversos autores, dentre os quais Polanyi, que viu a sociedade de mercado como um “desembutimento” do comportamento econômico das instituições e normas sociais, demonstrando que, ao lado da troca, a reciprocidade e a redistribuição são também importantes modos de interação e alocação econômica. Outro autor mencionado é Durkheim, para quem as transações comerciais dependem da compreensão compartilhada das pessoas sobre os termos da troca, pois “mesmo em um contrato nem tudo é contratual”.  Além disso, retratam novos estudos e exemplos recentes que apontam o papel prático dos fatores não econômicos – como laços sociais, normas culturais – nos processos de alocação material.

[5] DOBBIN, Frank. The new economic sociology: a reader. Princeton: Princeton University Press, 2004.

[6] Slater e Tonkiss, Op.cit, p. 144.

[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/sociedade-de-mercado-o-papel-do-direito-e-da-teoria-economica-na-sua-construcao-03072024?non-beta=1

[8] Slater e Tonkiss, Op.cit., pp. 139-140.

[9] Slater e Tonkiss, Op.cit. p. 143.

[10] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 143.

[11] ACEMOGLU, Daron; ROBINSON, James. Why nations fail, Currency, 2013.

[12] Slater e Tonkiss (Op.cit., pp. 75-79) Aliás, os autores mostram a pertinência das críticas da Escola Austríaca à abordagem neoclássica em razão da desconsideração ad assimetria informacional. Nesse sentido, dedicam-se a explicar as diferenças da Escola Austríaca, que concebe os mercados não a partir das tendências formais ao equilíbrio, mas sim a partir de processos de concorrência dinâmicos e que avançam através do tempo. Logo, os processos econômicos são vistos como contingentes, dependentes do contexto, imprevisíveis  e – porque a informação é imperfeita – incertos. O próprio mecanismo de preços é visto como um sinal de informação ou sistema de significado compartilhado entre atores de mercado e não como mecanismo neutro que alimenta oferta e demanda. Assim, os mercados podem ser vistos como ricas redes de informação, como ordens complexas e espontâneas, mas que não podem ser propriamente controladas nem modeladas. Consequentemente, a abordagem austríaca identifica o problema de informação inadequada como uma falha fundamental na abordagem neoclássica, já que a concorrência imperfeita produz e é produto das falhas de informação.

[13] Slater e Tonkiss (Op.cit., pp. 144-146) destacam obras como as de Granovetter, ao explicar a importância dos laços fracos ou das redes extensas informais ou instrumentais para as trocas, mostrando como empresas ou hierarquias se organizam por relações tanto formais como informais, com diferentes vetores de coordenação, aí incluída a própria confiança. No interior das empresas por exemplo, a vida é governada mais por relações técnicas do que competitivas, para além de questões de confiança, lealdade, costume ou mesmo conexão pessoal que transcendem ou contradizem a impessoalidade das relações puras de mercado.

[14] Idem.

[15] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 145.

[16] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 147.

[17] Slater e Tonkiss, Op.cit., pp. 147-148.

[18] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 154.

[19] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 247.

[20] Slater e Tonkiss, Op.cit., pp. 247-248.

[21] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 250.

[22] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 248.

[23] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 249.

[24] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 249.

[25] Slater e Tonkiss, Op.cit., p. 77.

[26] Slater e Tonkiss, Op.cit. p. 80.