Sociedade de mercado: o papel do direito e da teoria econômica na sua construção

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Para os que gostam de reflexões sobre direito, economia e sociedade, o livro Sociedade de Mercado, de Don Slater e Fran Tonkiss[1], é uma excelente oportunidade para refletir sobre diversos aspectos da formação da sociedade de mercado, dentre os quais o papel do direito e da teoria econômica para a produção da nossa realidade.

Antes de entrar nesse ponto específico, é preciso esclarecer o que os autores entendem por sociedade de mercado e como ela foi plasmada. Isso porque Slater e Tonkiss diferenciam os antigos locais de comércio – caracterizados por uma “uma socialidade concreta e pública, em que a troca está embutida em relacionamentos culturais, sociais e políticos localizados”[2] e por uma concorrência aberta entre indivíduos autônomos – dos mercados modernos, mais aproximados a espaços conceituais e abstratos de trocas, cada vez mais independentes das pessoas e dos lugares particulares, transcendendo qualquer ambiente cultural específico e não raro substituindo a concorrência pelo conluio[3].

Outro importante atributo dos mercados modernos é que “o centro de poder passa gradualmente dos mercados públicos locais para mercados privados cada vez mais sofisticados”[4]. Aliás, os mercados privados emergiriam “das tentativas de escapar precisamente dos tipos de regulação que tornam os mercados públicos competitivos e transparentes”[5].

Para os autores, tal transformação apenas foi possível a partir de uma Modernidade que pretendeu se libertar das tradições e laços antigos, passando a acreditar em uma ordem social racional que poderia emergir espontaneamente das relações entre indivíduos livres e racionais coordenados por um mercado que tenderia ao equilíbrio e geraria harmonia social[6].

Foi esse o contexto que propiciou o surgimento da sociedade de mercado, assim entendida a sociedade na qual a troca de mercado fornece um princípio organizador – e o mais importante deles – para as diversas esferas da vida social[7]. Como fenômenos intrinsecamente relacionados a tal transformação, os autores mencionam a divisão do trabalho, a mercantilização, a monetarização, a quantificação, o cálculo e a presunção de cooperação pacífica[8].

Logo, a sociedade de mercado apresentaria as seguintes características básicas: (i) mercados considerados como sistemas integrados de trocas; (ii) agentes econômicos vistos como atores que perseguem interesses privados dentro do mercado a partir de uma racionalidade calculista; e (iii) interesses privados concorrentes que são reconciliados por meio de acordos de preços, já que o mecanismo de preços funciona como agente coordenador dos mercados[9].

Sob vários aspectos, tal configuração decorre da premissa smithiana de que você não poderia fazer por você mesmo o que pode comprar por menos – princípio da vantagem comparativa. Assim, a necessidade de procurar o trabalho alheio para satisfazer a maior parte das nossas necessidades resultaria em um sistema em que cada indivíduo vive pela troca – vindo a ser, em alguma medida, comerciante – dando azo a um sistema denso de interdependência econômica[10].

Entretanto, a harmonia do sistema, acolhida pelo que Joseph Stiglitz chama de teoria padrão da economia moderna, foi construída a partir de pilares muito frágeis e idealizados, tais como (i) concorrência perfeita, no contexto da qual os preços são estabelecidos livremente por meio da interação entre a oferta e demanda em um mercado que tende ao equilíbrio; (ii) bens homogêneos; (iii) número suficiente de compradores e vendedores para prevenir que qualquer ator afete significativamente os preços; (iv) compradores e vendedores com conhecimento completo dos bem e custos[11] e (v) protagonismo do mecanismo de preços, com a desconsideração do vasto número de relações econômicas que são coordenadas por outros fatores[12].

Até por decorrer de inúmeros reducionismos e descolamentos do mundo real, essa configuração da sociedade de mercado, longe de ser o produto natural ou espontâneo das interações humanas, apenas foi possível a partir de uma sofisticada construção social e política, para a qual tanto o direito como a teoria econômica ofereceram contribuições indispensáveis.

Com efeito, nem mesmo se poderia cogitar da sociedade de mercado sem a regulação jurídica da propriedade e do contrato. Não é sem razão que Slater e Tonkiss concluem que “a transição para a sociedade de mercado foi revolucionária no modo como as obrigações sociais passaram a ser mediadas por contrato”[13].

Ocorre que a importância da disciplina jurídica do contrato não se restringe apenas à viabilização das trocas econômicas, mas sobretudo à conformação das trocas econômicas a uma específica visão de mundo, baseada em dois pressupostos básicos: (i) a liberdade formal dos indivíduos, com a completa desconsideração das desigualdades reais e do lugar de cada um na ordem cultural e (ii) possibilidade de que, como regra, tudo possa ser vendido e traduzido em termos formais de cálculo, a partir de um valor monetário[14].

Sob essa perspectiva, coube ao direito privado (notadamente ao contratual[15]) e à teoria econômica refletirem e plasmarem essa cosmovisão. O direito dos contratos foi, portanto, influenciado pelo mesmo individualismo metodológico que caracterizou a teoria econômica ao longo do século 19 e foi determinante para a sua evolução para a economia neoclássica. Ao pressupor que os atores sociais são formalmente iguais, ambos negligenciaram as reais desigualdades estruturais, tais como a de gênero, raça e classe[16].

Como bem mostrou Weber, a condição de calculabilidade inerente à sociedade de mercado está associada ao formalismo jurídico “no qual aos conceitos jurídicos, tais como o de contrato e o de propriedade, são dadas definições claras e exequíveis que são – mediante instituições burocratizadas – aplicadas impessoalmente”[17]. Para Slater e Tonkiss, esse argumento é compartilhado por Marx, Durkheim e Karl Polanyi: “livres mercados requerem esquemas estatais formais e entendimentos informais que estruturem e reforcem as transações de mercado.”[18]

Entretanto, é preciso entender que a consequência da adoção absoluta e irrestrita do individualismo metodológico – e do formalismo que lhe é inerente – é a inviabilização de que tanto a teoria econômica quanto o direito privado (notadamente o contratual) possam considerar – e muito menos atenuar ou resolver – as desigualdades do mundo real, ainda mais diante da lógica da quantificação que igualmente caracteriza a sociedade de mercado. Como concluem Slater e Tonkiss:

“Ao olhar para a sociedade de mercado primeiramente como uma sociedade capitalista, o pensamento moderno concentra-se na desregulamentação formal pela qual todos os fatores de produção estão livres para competir nos mercados, buscando maximizar seus lucros e salários. Ao mesmo tempo, a condição dessa liberdade formal é a expropriação dos meios de produção, que cria profundas desigualdades de mercado e compulsões: os trabalhadores simplesmente não competem nos mesmos termos que aqueles que possuem capital; as mulheres historicamente não têm o mesmo acesso que os homens ao mercado; a escravidão e o trabalho contratado indicaram a disposição da sociedade de mercado para ignorar até mesmo as liberdades formais do capitalismo liberal no impulso pelo lucro. Assim, pensada como uma nova ordem social, a sociedade de mercado apresentava um rosto de Janus: por um lado, a liberdade formal e a coordenação; por outro, a desigualdade sistêmica e a opressão.”[19]

“(…) a sociedade de mercado representou o domínio de uma logica implacável de quantificação e racionalidade formal sobre a vida social, produzindo desigualdade, desordem social, perda de valores substanciais e destruição das relações individuais e sociais.”[20]

Como se pode observar, o individualismo metodológico e o formalismo, longe de serem escolhas neutras, são opções valorativas que geram importantes efeitos distributivos (ou não distributivos). Ao abrirem mão de questionarem o status quo, tanto o direito privado como a teoria econômica acabaram se tornando, sob diversos aspectos, instrumentos conservadores de perpetuação de desigualdades.

O mais preocupante desse processo é que nem um nem outro costumam reconhecer a dimensão real do seu papel na atual conformação dos mercados, sob o fundamento de que são ciências, saberes ou instrumentos meramente técnicos.

Nesse sentido, no que diz respeito à teoria econômica, Slater e Tonkiss apontam que uma das principais realizações da economia neoclássica, ao lado da priorização da abordagem matemática para o conhecimento econômico, foi a de tratar alocações de mercado e eficiências como questões técnicas e não morais ou políticas, de forma que a própria economia seria uma ciência neutra[21].

Raciocínio equivalente sempre foi utilizado em relação ao direito privado, seara na qual é comum a compreensão de que, por mais que necessário para a constituição da sociedade de mercado, o seu papel se limitaria a intervir nos mercados, de forma técnica e neutra, para viabilizar as trocas com eficiência e segurança.

Ocorre que, como já se viu, a opção pela neutralidade acaba sendo a defesa do status quo, ainda que ao preço da manutenção das suas iniquidades. Está mais do que na hora de entender que tanto o direito privado como a teoria econômica tiveram e têm o importante papel de arbitrar os valores que devem prevalecer na sociedade de mercado e que suas escolhas apresentam claras consequências distributivas.

[1] SLATER, Don; TONKISS, Fran. Sociedade de Mercado. Mercados e Teoria Social Moderna. Tradução de Carlos Nougué. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

[2] Op.cit., pp. 25-26.

[3] Op.cit., pp. 21-26.

[4] Op.cit., p. 26.

[5] Op.cit., pp. 28-29.

[6] Op.cit., p. 253.

[7] Op.cit., p. 11.

[8] Op.cit., pp. 33-34.

[9] A enumeração apresentada decorre do agrupamento das características apresentadas pelos autores (Op.cit., pp. 58-59).

[10] Op.cit., pp. 62-64.

[11] Op.cit., p. 59.

[12] Os autores (Op.cit., p. 79) apontam a contribuição de Stiglitz, ao demonstrar que um vasto número de relações econômicas fundamentais, inclusive as que se estabelecem dentro da empresa, não é governado por preços, pois os agentes econômicos se utilizam de outras referências ou fontes de informação. Acresce que há transações específicas, como financiamentos e investimentos de longo prazo, em que o risco econômico e a incerteza não podem ser respondidos por sinais de preço. Os autores (Op.cit., p. 82) também tratam da obra de Amartya Sen, ao destacar a importância das chamadas soluções de compromisso, tais como cuidado, amor e camaradagem.

[13] Op.cit., p. 32.

[14] Op.cit., p. 32.

[15] A rigor, as reflexões ora expostas são compatíveis em maior ou menor grau com todas as demais áreas do direito privado. Entretanto, como Slater e Tonkiss priorizam a análise do direito contratual, a presente autora também se concentrará na referida delimitação temática, tão somente em prol de conseguir um diálogo mais estreito com a obra mencionada.

[16] Op.cit., p. 50.

[17] Op.cit., p. 103.

[18] Op.cit., p. 103.

[19] Op.cit., p. 38.

[20] Op.cit., pp. 253-254.

[21] Op.cit., pp. 67-71.